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Fomos dados em espetáculo ao mundo: o drama divino e humano em Kevin Vanhoozer, parte 2 de 2

A ‘Pala delle Convertite’, ou ‘A Sagrada Trindade’, de Sandro Botticelli (1491-1493)

por Fabrício Tavares de Moraes

Agostinho acreditava que a consciência realmente inquiridora deparar-se-ia sempre com os vestigia trinitatis – os vestígios da Trindade presentes em toda a ordem criada, inclusive no próprio ser do homem, como na tríade de memória, inteligência e vontade, partes integrantes e inseparáveis da mente humana, três potências que subsistem numa mesma alma. Para o bispo de Hipona, esses sinais, mais do que meras alegorias, são o testemunho da crença na conformidade entre a inteligência individual e a inteligibilidade do mundo.

Essas tríades, como é óbvio, permitem analogias várias, mas a que presentemente nos interessa, e que retoma a primeira parte do ensaio, é a que diz respeito à constituição do drama e – conforme o raciocínio do ensaio anterior –  também daquilo que, na teologia cristã, unifica a matéria e os valores: nomeadamente, a história da redenção. Temos, portanto, o mythos (o enredo), o pathos (o sentimento gerado) e o télos (a intencionalidade). Segundo a perspectiva aristotélica, o télos visado é a kátharsis, a catarse ou purificação dramática-emocional, que provoca temor e piedade. A análise mais sucinta leva à compreensão de que os três elementos do drama estão indissoluvelmente intricados e são dependentes entre si.

Para Kevin Vanhoozer, as estruturas do cânone, da história e do drama também são igualmente balizadas por esses três fundamentos que, na história do pensamento ocidental, são por vezes designados respectivamente de: princípio ativo, estrutura e finalidade; ou se queremos uma analogia com a epistemologia escolástica: objeto material, objeto formal e objeto formal terminativo.

Desse modo, “na Criação: o Pai é seu princípio gerador, o Filho é sua forma de estruturação, o Espírito é o dinamismo que a dirige para seu télos e a leva à sua conclusão”. Porém, além das possíveis ressalvas seculares, o primeiro questionamento que contesta uma visão da história como drama divino-humano é justamente o esfacelamento das categorias que mencionamos até o presente momento. Isto é, dificilmente aqueles que sustentam essa perspectiva não serão criticados pelo seu “falogocentrismo”, o horrível neologismo criado por Jacques Derrida que sintetiza sua crítica ao falo (a masculinidade), por causa de sua excessiva valorização como agente interpretativo, e ao logos, devido à sua intransigência e exclusivismo na investigação do real.

É o próprio Derrida que, quando aludia à ideia de perdão dos pecados, acrescentava duramente: “se é que tal coisa existe”. Mas, supondo que o reino imanente da linguagem seja tudo que há, não podemos nos esquecer das palavras de Heidegger, quando da eclosão dos totalitarismos e violência das massas: “só um deus pode salvar-nos ainda”.

Nesse sentido, nos dias de hoje, é plausível a crença em palavras de ordem que, se não constituíam, ao menos conceituavam a isto que chamamos de Ocidente? Em outras palavras, ethos (etos), gnosis (conhecimento), logos (razão, proporção), physis (natureza) e mesmo philosophia (o amor à sabedoria) são ainda possíveis, ou permanecem sendo, como dizem os pós-estruturalistas, máscaras para as respectivas vontades de poder das ideologias?

Afinal, não é o mesmo Heidegger que identificou em Sócrates a causa para a senectude do Ocidente – isto é, justamente naquela filosofia que a maioria de nós, se não a totalidade, considerava o berço da cultura ocidental?

Ora, talvez haja uma terceira via entre a dúvida de Derrida e o clamor de Heidegger: um espaço vazio entre a submissão à força deste mundo e o esmagamento sob uma transcendência impassível. Para Balthasar, o modelo do drama evita o “duplo abismo de uma sistemática em que Deus, Ser absoluto, é apenas o Impassível diante de quem o mundo em movimento encena seu drama, e uma mitologia que absorve Deus no mundo e faz com que ele seja uma das partes em conflito dos processos do mundo”.

É curioso, portanto, que o modelo do drama para a compreensão do relacionamento entre Deus, homem, mundo e história paute-se antes na unidade narrativa (ou canônica) do que na sistematização dogmática – levando em conta que estamos numa época em que a simples ideia de especificação é interpretada como separatismo ou segregacionismo.

Mas o ponto mais interessante é a coincidência com o crescimento do interesse literário em relação à Bíblia por parte de grandes críticos literários. Dentre eles, Frank Kermode, com seu Guia Literário da Bíblia, e também Robert Alter e Harold Bloom, com suas respectivas interpretações de suas origens judaicas a partir da literatura, e vice-versa.

É claro, tudo isto a partir do trabalho seminal dos dois maiores críticos literários do século XX: Northrop Frye, especificamente suas análises da poesia de William Blake e seu Código dos Códigos, obra que trata da influência da Bíblia na literatura ocidental; e Eric Auerbach, no seu clássico Mimesis.

À vista disso, alguns hoje levantam a questão se a literatura é também um instrumento de investigação, uma ferramenta cognitiva. Ainda quando não adotam posições nesse debate, é certo que muitos exegetas, até então influenciados pelo método histórico-crítico, que concebia o cânone como uma bricolagem naïve, perceberam, nas Escrituras cristãs, a recorrência de símbolos e leit-motifs; a pluralidade de gêneros; e uma espécie de unidade narrativa que se cristaliza no conceito de aliança. Um exemplo claro é o motivo do êxodo, que se manifesta ao longo do cânone: a saída e peregrinação de Abraão, a libertação de Israel do cativeiro egípcio, o retorno do povo do exílio babilônico e a partida de Cristo em direção à crucificação em Jerusalém.

Retomando, pois, nosso ponto: entre o mundo e a transcendência há uma unidade narrativa – um télos que conduz a encenação do drama divino-humano, ou teodrama. “O drama tem a vantagem de combinar os elementos narrativos de sequência e configuração com elementos dos atos de fala que habilitam pessoas (incluindo leitores) a entrar em relação dialógica com o assunto. O teodrama tem certa semelhança com a metanarrativa, com a importante diferença de que, ao contrário da maioria das metanarrativas, o teodrama é polifônico”. A polifonia provém da convergência do diálogo que se instaura entre Deus e os homens e do colóquio que se estabelece na intratextualidade dos vários autores canônicos.

Michel Benamou, observando as múltiplas correntes designadas de pós-modernas, afirmava que o conceito de encenação é praticamente onipresente hoje na cultura: a arte, por exemplo, é, em grande parte, performance gerada e desfeita no seu próprio ato. Para Benamou, encenação é a prática por excelência que unifica a pós-modernidade. Tendo isso em mente, talvez percebamos mais claramente as palavras de Vanhoozer, para quem “a redenção tem uma natureza própria de drama”.

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Fomos dados em espetáculo ao mundo: o drama divino e humano em Kevin Vanhoozer, parte 1

Fabrício Tavares de Moraes

Fabrício Tavares de Moraes é Professor Adjunto da UFMA. É também tradutor e Doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London).