ReflexãoSociedade

Futuro: prognósticos e oportunidades pós-pandemia

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“If winter comes, can Spring be far behind?”

Shelley

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“Almond Blossom”, Van Gogh, 1890

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por Alexandre Pasqualini

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I.

Para reproduzir com fidelidade o provável sentimento com que todos, hoje, leem a palavra futuro quando pensam no que o destino reserva para os próximos anos, vários pontos de exclamação e interrogação deveriam se suceder ao longo da página. Quando a realidade se satura de angústia, até as palavras se assustam, se enfraquecem, se comovem, se sentem humilhadas. Até as palavras, por assim dizer, buscam socorro na ênfase, denunciando a vulnerabilidade humana diante da incerteza, da dúvida, da insegurança.

O mundo se depara com uma nova crise e, como quase sempre, não dispõe de um saber visionário infalível, capaz de discernir qual acervo de virtudes, caprichos ou fraquezas irá, ao fim e ao cabo, prevalecer. Mas, a essa altura, depois de tantos séculos de erros e acertos, uma coisa segura talvez possa ser dita com serenidade, prescindindo de pontos de exclamação e de interrogação: seja qual for o futuro, sua eventual atrocidade ou grandeza estará menos nos fatos e mais nas falhas ou na lucidez dos homens. Quando, do futuro, olharem o presente como passado, os homens enxergarão uma única imagem refletida no espelho: o seu rosto.

As crises sempre correm pelos corredores da surpresa e, como diria E. Dickinson, o todo da coisa, hoje, não virá de uma vez só. Tudo será gradual e, como de hábito, existirá lugar seja para a esperança, seja para o temor.

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Emily Dickinson

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No atual mapa das previsões, há escalas que sobem e descem, mas nenhuma apenas sobe ou desce. Todas parecem conduzir a planos e panoramas mistos feitos de avanços e retrocessos e todas, à falta de provas insofismáveis, confessam incorrer no escusável crime de opinião, cujos pontos cegos pedem auxílio ao diálogo para remediar equívocos inexoráveis.

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II.

Nas escalas que mais descem do que sobem, talvez movidas pela convicção íntima de que o novo é sempre velho – plus ça change, plus c’est la même chose – prevalecem prognósticos negativos:

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O nacionalismo, que já ensaiava monólogos locais, pode se transformar em um numeroso e sinfônico coro marcial. Participando da ação dramática e permitindo que, no centro do palco, os protagonistas percam o pudor, o nacionalismo poderá regurgitar sombrios preconceitos, abusando, aqui e ali, da palavra necessidade (e seus consectários emergenciais), em prejuízo do Estado Democrático de Direito. Não se deve esquecer a advertência atribuída ao Dr. Johnson e repetida por Melville: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

À medida que a idade avança, uma das piores tristezas para as pessoas familiarizadas com a história, é descobrir que, de tempos em tempos, a estupidez humana volta a buscar no ódio e na desarmonia um modo irresponsável de dar sentido à vida. O pensamento neoconservador – nada a ver com Edmund Burke – marcha nessa linha, e várias barbaridades praticadas na política eclodem da junção entre essa ignorância do passado e aquela loucura intermitente que, como coisas resgatadas das sombras, usa a razão como disciplinado e sagaz apetrecho das paixões.

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Samuel Johnson

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A União europeia poderá se fragmentar. Ressentidos com uma unidade que não foi capaz de socorrer seus membros quando mais reclamavam auxílio, muitos europeus se mostram saudosos de um refúgio nacional ilusório. As queixas, vindas, primeiro, da periferia (ex. Grécia), trouxeram outras consigo (ex. Inglaterra, Itália), localizadas, agora, no núcleo natal formado pelos precursores da União Europeia. Agindo como se não tivessem um passado às costas e não tivessem sofrido tantas e tão frequentes perdas, muitos europeus negligenciam que, no século passado, o nacionalismo envolveu a Europa em chamas, em duas guerras mundiais sangrentas. Por isso, as consequências da provável e centrífuga desunião, que se avizinha, podem ser muito mais graves do que as que levam os europeus a acreditar nela. Mais uma vez, podem praticar, no curto prazo, um consequencialismo inconsequente, cego para os não menos prováveis e perversos efeitos que, no médio e longo prazos, serão legados às próximas gerações.

Eis uma pequena mostra do quão perigosamente frágeis são a vida e a lucidez e do quão assustadoramente sedutora ainda é a “grandiosidade antiquada” (Wallace Stevens) dos espíritos destrutivos. O absurdo é um privilégio autoral das criaturas racionais. Só os racionais podem ser irracionais. E, infelizmente, muitos não entendem que os problemas da união, para serem sanados, reclamam, ao contrário, mais e maior união. Muitos não entendem, em síntese, que o principal problema da união sempre foi e continua sendo a desunião, sobretudo quando se origina dos displicentes respeito, zelo e adesão aos seus valores estruturantes.

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Wallace Stevens

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A globalização corre o risco de ceder espaço a uma maré de desglobalização, acompanhada pelos humores perversos do antagonismo geopolítico. Nessa etapa, a Rússia de Putin e os EUA de Trump já assumiram a liderança do retrocesso. Só para citar um passado que pode ser levado mais longe nos anos subsequentes, China e EUA, em 2019, subiram no ringe e desferiram golpes fiscais, alfandegários e cambiais contra o livre comércio. Nesse clima, quando as políticas públicas internas fracassarem, o impulso natural será, de modo oportunista, apontar o dedo indicador para os adversários externos. A lógica amigo-inimigo poderá aprofundar, então, sua influência deletéria nas relações políticas, em todas as órbitas. Invertendo a máxima dos evangélicos, quem não for aliado será adversário. Contudo, isso nunca deu certo e, se a experiência do passado serve para premunir erros futuros, tudo indica que jamais dará bons frutos.

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O ambiente de polarização, já denunciado pela Ciência Política, permite antever clima propício para vindimas abundantes, mas de péssima qualidade.

A rivalidade e o ódio sempre foram êmulos constantes da ação humana e, acima de tudo, da pobreza humana. E preconceitos ideológicos para lá de anacrônicos, cuja insânia dogmática, desde o pós-guerra, regrediu em face do avanço científico e do arejamento das ideias, poderão encarcerar espíritos em uma nova ortodoxia conventual, exagerando divergências e fomentando intrigas entre facções – quer na política, quer na academia, quer, ainda e principalmente, na interação social. Em vez da ousadia do “eu penso”, em vez da coragem da dúvida que primeiro duvida de si mesma, uma maioria poderá renunciar ao andar ereto, reverenciando cartilhas e entoando palavras de ordem. A política poderá voltar a ser um capítulo da história da religião e da história do messianismo laico, não sendo desprezível o perigo de que, em alguns países, ambos possam se dar as mãos.

Mais.

Em todos os continentes, o autoritarismo voltou a ter título de eleitor. Contudo, é uma cepa híbrida. Usa a democracia como hospedeira. O atual autoritarismo, na sua versão mais astuta, gera tiranias sem tiranos. Trata-se, portanto, de uma modalidade, sob certo aspecto, bem mais perigosa do que as anteriores, em que as convicções não são menos intolerantes e odiosas do que ligeiras, descuidadas, inconsistentes – irracionais, enfim. O resultado poderá ser a mais grave das pandemias: a da leviana irreflexão digital.

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Os EUA, que, depois do governo Obama, mas mesmo antes, preferiu se enfeudar dentro de suas fronteiras, poderá se isolar e até renegar as Instituições Multilaterais para cuja criação (não importam aqui os erros cometidos) tanto se empenhou depois da 2ª grande guerra. Os países, como os homens (e os países mais do que os homens) veem o que querem, em especial quando olham ou de muito longe, ou de muito perto. E parece que, nos dias atuais, as duas coisas estão acontecendo nos EUA. Sem exagero, a paixão extremada por si mesma está afastando a América do seu melhor, quer em relação a si mesma, quer em relação ao mundo. Emerson, um dos pais da cultura americana, costumava dizer que “o homem é o pigmeu de si mesmo”. Isso talvez nunca tenha sido tão verdadeiro como hoje quando se contempla a paisagem humana na América. A “religião americana da independência” pode se extraviar em uma autodestrutiva religião do isolamento, como se vê, por exemplo, no resgate por Trump do lema “America First” de Charles Lindbergh.

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Charles Lindbergh (NPR)

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As mais das vezes, políticas públicas reclamam elementos mínimos, iguais e sinérgicos de consenso e de cooperação. Pois há enorme risco de que o acanhado espaço reservado ao consenso, jungido ao unilateralismo das questões paroquiais, converta-se em opositor da colaboração cosmopolita, sempre carente da maior união de esforços possível. Os programas destinados ao enfretamento integrado de problemas globais – como mudanças climáticas, terrorismo, racismo, xenofobia, erradicação da pobreza, difusão dos direitos humanos, etc. – podem ser fragilizados. O possível deslizamento da globalização poderá também redundar no correlato deslizamento da cooperação internacional. Assim como os homens, conceitos e ideais perecem, morrem. Vários foram até vítimas de covardes assassínios. E, agora, uma boa geração de políticas públicas (nutrida por valores universalizáveis e por certezas dinâmicas cuja relevância poucos na ciência duvidam) podem ser relegadas ao esquecimento e reverter ao pó.

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O mundo poderá experimentar um longo ciclo de empobrecimento, sem ainda ter superado todos os danos, em várias latitudes e longitudes do globo (ex. Brasil), da crise financeira de 2008. As cadeias de comércio, até ontem guiadas por custos globais, poderão ser alvo de interesses estratégicos chumbados a conveniências geográficas bem recortadas no mapa, sobretudo quando se tratar de produtos destinados a suprir necessidades básicas. As fronteiras, não só como limite territorial à circulação de pessoas, podem recobrar, tirando partido da preocupação sanitária, forte e impermeável função aduaneira. O livre intercâmbio de mercadorias, ao que tudo leva a crer, pode diminuir, acarretando redução proporcional no comércio exterior. Quando as ideias gravitam em torno do medo, até os interesses materiais, no plano geral, costumam contabilizar perdas, embora, aqui e ali, possam beneficiar determinados interesses particulares (ex. indústria farmacêutica).

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A desigualdade, que, desde sempre, foi um problema, deu, nos últimos 30 anos, provas de palpável agravamento. Pois o decênio vindouro, se nada for feito, poderá, em função da pandemia, reforçar a trajetória ascendente das disparidades sociais. Vários bons e recentes estudos econômicos, sociais, históricos e jurídicos foram publicados, voltando atenção para o problema da desigualdade. Embora não se trate de tema capaz de produzir unanimidades e certezas esféricas, não seria nenhum exagero ponderar que, malgrado os dissensos, há documentado consenso de que a desigualdade é uma das graves disfunções que afligem o mundo. E, agora, por causa dessa primeira grande peste do milênio, o fenômeno poderá adquirir novo empuxo.

As pestes foram flagelos muito comuns no passado. Shakespeare nasceu, viveu e escreveu em meio a pestes. Em Romeu e Julieta, foi a quarentena, durante uma peste, que impediu Friar Lawrence de entregar a Romeu a carta que revelaria os planos de Julieta. Esse drama, para além da atmosfera do teatro elisabetano, mostra que as epidemias não são igualitárias nem no contágio, nem em suas repercussões. Há bons estudos reveladores de que os efeitos econômicos das pestes, no século XVII, foram profundamente desiguais. Cidades localizadas na península itálica, por exemplo, perderam mais do que outras. Sua influência regrediu no cotejo com outras regiões da Europa. Há, também, estudos de história econômica que demonstram que as cidades americanas, durante a gripe espanhola, experimentaram impactos e recuperações econômicas desiguais, inclusive por causa de estratégias mais ou menos rigorosas no enfrentamento da doença. O certo, entretanto, é que, se não houver políticas públicas compensatórias, as desigualdades, dentro e fora das cidades, dentro e fora das regiões, dentro e fora dos países, poderão aumentar e, junto com elas, as atribulações políticas – pedindo socorro a um eufemismo.

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O Friar Laurence de Henry William Bunbury

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III.

Nas escalas que mais sobem do que descem, iluminadas, talvez, pela experiência sensível de que, apesar de tudo, o presente é sempre uma oportunidade para evoluir e fazer evoluir – “o começo é o presente” (D. H. Lawrence), a manhã do mundo é agora – prevalecem, não prognósticos, mas oportunidades positivas:

A segregação física, por razões humanitárias, poderá servir de estímulo à compensatória aproximação, por meio da tecnologia. A circulação de bens e pessoas pode minguar, nunca, porém, a circulação de ideias e, sobretudo, de fraternidade e tolerância. Pessoas e negócios estão aperfeiçoando a capacidade de viver e de trabalhar on line.

Salvo melhor juízo, os avanços tecnológicos apresentam um saldo histórico benfazejo. Não fosse a Teoria da Evolução de Darwin até a ética ainda estaria às voltas com obscurantismos e preconceitos criminosos.

Com efeito, os progressos da tecnologia, quando respeitam padrões mínimos de transparência e crivo intersubjetivo, poderão aproximar pessoas distantes no espaço. Num período de escassez de meios, isso poderá, inclusive, ajudar a minimizar custos. Certo, toda tecnologia reclama cuidado e redobrada atenção tanto no seu desenvolvimento intrínseco como no seu uso e, acima de tudo, no resguardo efetivo da dignidade do homem e da vida em tais mecanismos de interação social. As máquinas, em que já foram depositadas exageradas esperanças de ganhar mais e de trabalhar menos, também podem frustrar as recentes expectativas de tornar as distâncias menores e de levar solidariedade, calor humano e atendimento célere a maiorias desassistidas.

Medicina à distância, administração pública digital – são valiosas possibilidades, só para citar dois casos de tremenda relevância, para que o presente, hoje testemunha ferida pela fatalidade, possa transformar o futuro em rica ocasião para dar largos passos evolutivos. São duas áreas em que a tecnologia pode ensinar os homens a serem mais humanos. E, invocando, mais uma vez, a sabedoria de Emerson, não é preciso, em tais situações, acender uma vela para assistir ao sol nascer.

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Emerson

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A crise enseja nova ocasião para que se possa compreender melhor o protagonismo regulador do Poder Público. A era das privatizações poderá aprender, finalmente, que, ainda quando privado, todos os negócios e atividades têm, quanto aos fins últimos e gerais, relevância pública. Nas últimas décadas, privatizou-se tudo, até a Constituição. Cada intérprete faz com a ordem jurídica o que quer e bem entende. Ao sabor das circunstâncias, das contas de chegar e da conveniência política, o sentido mínimo das normas foi privatizado. Não é só na política que o consequencialismo de curto prazo tem produzido decisões inconsequentes.

Ora, quando o arbítrio sobre as exceções vira a regra, a regra é o arbítrio. E não deixa de ser arbítrio só porque veste toga. Aliás, esse é o mais perigoso tipo de autoritarismo. Ele esbulha os nossos principais bens públicos: as regras, princípios e valores constitucionais.

Nesse sentido, um dos primeiros e fundamentais passos para compreender melhor o protagonismo regulador do Poder Público será restabelecer o prestígio e a autoridade da Constituição, que não podem ser arredados ao influxo das preferências de ninguém – nem mesmo da suposta sabedoria responsiva dos Ministros das Supremas Cortes.

Mas não é só.

Ainda na seara do Poder Público, há uma chance de ouro para virar a página do dogmatismo ideológico – à esquerda e à direita.

Chega de teorias que são feitas para os outros viverem nelas e amargarem os seus custos, sobretudo os existenciais.

Nesse momento, a exemplo dos poluentes nocivos à saúde e ao meio ambiente, três (3) tipos de Estado devem ser jogados na lata de lixo da história:

(a) o que gasta sem contar recursos de que não dispõe;

(b) o que vive da aventura de locupletar corporativismos (públicos e privados), sacrificando a sociedade na ponta do punhal da ineficiência e dos privilégios; e

(c) o que cruza os braços diante da falaz igualdade de oportunidades, para, ato contínuo, com elegante, discreta e cínica economia de gestos, desviar o olhar das vítimas de suas omissões comissivas.

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Mais do que nunca, está na hora de amadurecer, de forma gradual, uma visão mais qualitativa do que quantitativa na análise, avaliação e fomento do desenvolvimento econômico. A atividade produtiva não deve buscar legitimidade tão somente no calculus, expresso no crescimento das cifras. Ainda quando o Estado Estacionário (Stuart Mill), com crescimento zero, se revele quimérico, parece necessário exigir e universalizar, de forma sustentável, paradigmas de desenvolvimento cada vez mais equânimes e qualitativos, inclusive nos quesitos da desigualdade e do meio ambiente. Desconectada da preocupação prevalente com o humano no humano, a quantidade, por assim dizer, apoia a sociedade de fora para dentro, mas a corrói de dentro para fora. Numa frase: a quantidade quase sempre destrói antes de empreender os adiados saltos de qualidade, em especial – vale repetir – nas esferas da igualdade e da sustentabilidade ambiental.

Por isso, qualidade e quantidade, a primeira guiando a segunda, devem se fundir, máxime no que concerne ao desenvolvimento econômico. E apertando com mais força na tecla da qualidade, há, hoje, um motivo adicional para redobrar a atenção e investir em qualidade: a qualificação do trabalho. Nas décadas vindouras, as pessoas terão que se reinventar, e uma economia mais qualitativa do que quantitativa também deve assumir compromissos com o aperfeiçoamento e com a ampliação da produtividade do trabalho, o que não diminui, tampouco prescinde, da responsabilidade pessoal de cada um. O trabalho não evoluirá se os trabalhadores também não assumirem o aperfeiçoamento e a evolução com um empenho de todos.

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John Stuart Mill

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Poucas vezes na história, o mundo se confrontou com tamanha necessidade de se governar, em especial no que diz respeito às instâncias públicas de controle e regulação, a partir de modelos preditivos e precaucionários com esteio em dados empíricos. Mais do que sempre, a ciência e o diálogo transparente continuam sendo os aliados menos falíveis da trajetória humana. Há muitos despropósitos que poderiam ser evitados se as autoridades e a cidadania dessem mais atenção aos dados empíricos.

Uma velha máxima prudencial adverte: quando os especialistas estão de acordo, a opinião contrária não deve ser havida como correta. Por isso, o homem comum, bem como a autoridade pública fariam melhor se suspendessem seu juízo divergente, acatando padrões, condutas e protocolos assentados, quer pela orientação científica predominante, quer pelos precedentes históricos bem-sucedidos. Sim. A ciência também erra. Mas ainda é o aliado menos errático da humanidade e, sem dúvida, o que mais sabe ouvir e o que menos desdenha o grito dos feridos.

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Numa perspectiva “multigeracional” congraçadora dos vivos, dos mortos e dos vindouros (Edmund Burke), chegou a hora de atinar que, bem-entendida, a sustentabilidade pressupõe a busca permanente do mais amplo e positivo impacto (presente e futuro) na vida. Esse impacto não se contenta com o mínimo ético e jurídico de apenas banir, com fundamento no princípio constitucional da sustentabilidade, efeitos negativos, comprometedores do amanhã. Antes, esse impacto se empenha em extrair da ação humana a maior quantidade e qualidade possível de “positive goods” (Bacon) para todos. Os que se encontram sitiados pela devastação até da Natureza, vida das vidas, começam a se contentar com a ideia de que não há outro bem que não seja a ausência do mal. Bacon foi mais longe e chegou a escrever que “aqueles que estão no inferno pensam que não há outro paraíso”. Contudo, o bem que a sabedoria e o futuro sustentável almejam não se restringe à privatio mali. Prevenir o mal é importante, mas não basta. É necessário ir além, produzindo impactos positivos, indutores de novos e mais amplos impactos benfazejos. Em resumo: o mal é uma privação do bem, mas o bem não é mera privação do mal.

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Edmund Burke (BBC 4)

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Há, finalmente, uma abertura para que se possa, mais uma vez, compreender a política não como fonte de revelação da verdade, mas, antes, como guardiã da tolerância e do diálogo. Numa época em que a religião e os fundamentalismos voltaram a ungir candidatos e a formular index prohibitorum, vale a pena recordar a mais valiosa lição que a política apreendeu com a religião: as ideias, como a fé, não devem ser fonte de catecismos, tampouco de ortodoxias impossíveis, mas, acima de tudo, de humilde reconhecimento do mistério e, portanto, de aceitação da dúvida como fonte de certezas sempre provisórias, sempre abertas ao diálogo.

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IV.

Um novo inverno chegou. Talvez a primavera custe a despontar, colorindo o horizonte. Não importa. O importante é fazer as melhores escolhas possíveis, sabendo que o presente, no futuro, será julgado não só pelo mal que soube evitar, mas, antes de tudo, pelo bem que deixou de fazer. Enfim, sabedoria e futuro sustentável sabem que serão julgados não apenas pelo que de ruim deixaram de fazer, porém pelo que de bom poderiam ter feito – e não fizeram.

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“Spring at Barbizon”, Jean-François Millet, 1873

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Alexandre Pasqualini

Alexandre Pasqualini é Presidente do Instituto Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público – IBRAED e Coordenador-Geral da Revista Interesse Público.