Sociedade

O caso George Floyd nos EUA e no Brasil

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(REUTERS/Caitlin Ochs)

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Este ensaio é fruto de uma parceria entre três pesquisadores, que emprestaram sua visão dos acontecimentos recentes para prover um debate acerca do racismo na mídia e na sociedade, no Brasil e nos Estados Unidos. Para tanto, o presente trabalho foi divido em três partes: (i) a visão da Dra. Danielle Kilgo, enquanto cidadã negra e americana, sobre como se estrutura o racismo nos Estados Unidos e por que há um protesto mundial sem precedentes pedindo por justiça para a população negra; (ii) em seguida, apresenta-se ao debate a Dra. Rachel Mourão, revelando-nos o contexto em que as reações à violência sofrida pela população negra americana e brasileira ecoam na sociedade, focando na reverberação na mídia; e (iii), por fim, Irapuã Santana tenta decodificar a influência dos protestos americanos pautando a questão racial no Brasil.

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Parte I: O racismo no sistema americano, por Danielle Kilgo

Dessa vez, George Floyd foi derrubado e teve um joelho em seu pescoço. Mas antes disso, houve várias formas de cessar a respiração de homens, mulheres e crianças negros. Breonna Taylor estava deitada em sua cama, dormindo, Philando Castile estava sentado no banco de passageiros de um carro parado durante um engarrafamento, John Crawford III tinha uma pistola de pressão numa mercearia, enquanto Tamir Rice, com apenas doze anos, tinha uma arma de brinquedo numa mesa de piquenique. Por sua vez, Rekia Boyd estava com seus amigos num parque. São tantos nomes que a lista pode voltar no tempo por séculos.

A cena do assassinato de Philando Castile (Wikimedia Commons)

Para pessoas negras, a história mostra que existe risco mortal e uma pena robusta nos rotineiros encontros com a polícia. Estereótipos negativos, que falsamente categorizam negros como mais violentos, mais criminosos e mais agressivos são materializados por representações falaciosas nos jornais e mídias de entretenimento.

No entanto, o racismo e suas consequências são mais profundos que as percepções da população negra como ameaça. Seus assassinatos são considerados pelo sistema de justiça como uma espécie de vingança e isso se verifica quando há a absolvição dos assassinos de pessoas negras, como que os protegendo, bem como na ausência de parâmetros federais de controle do comportamento policial.

Oficiais de polícia são defendidos por seus departamentos e pelos efeitos do sistema de justiça tradicional. Apesar dos registros de diversas queixas por abuso de poder, são mantidos em seus postos ou transferidos para outros, sem que haja uma punição de fato. Mesmo os policiais aposentados permanecem como parte de uma irmandade, o que traz a questão do corporativismo em voga.

E assim seguimos ouvindo sobre o ciclo da ameaça, assassinato e absolvição acontecendo sempre, de novo e de novo.

Nesse sentido, o que é diferente da década passada é que nós podemos ouvir e ver. Nós vemos muitas dessas mortes pela lente de uma câmera, graças às colocadas nos uniformes dos policiais, as de segurança de prédios e as dos cidadãos armados com seus celulares.

Obviamente que evidências visuais não formam necessariamente um caminho para a justiça, mas têm o condão de construir uma narrativa fora dos limites de proteção das cortes judiciais.

Para alguns, a exposição rotineira a esses vídeos serve como um lembrete habitual necessário para entender que esse problema não é esporádico. A morte de George Floyd não é, de forma alguma, um evento isolado. Essas narrativas visuais são a evidência concreta imprescindível para definir os limites do racismo e identificá-lo, nos dias atuais, para que seja possível reconhecer seu efeito letal nas comunidades negras.

Estudando o racismo na mídia e na sociedade desde 2011, podemos atestar que um lembrete habitual não é o suficiente para inspirar protestos transnacionais e solidários que vemos hoje.

O debate “pós-racial” que seguiu a eleição de Barack Obama fortaleceu a posição de que a população dos Estados Unidos não repara na cor das pessoas, mas sim em sua capacidade, o que ajudou a colocar o país numa cultura de polarização, numa guerra, na qual existiria ou não o racismo em detrimento das pessoas de cor.

Antes do assassinato de George Floyd, os vídeos não tinham o mesmo impacto que vemos ocorrer atualmente, com os protestos nunca vistos.

O que há de diferente agora?

A pandemia, que mata desproporcionalmente os negros nos Estados Unidos (outra consequência do racismo sistêmico), reduziu o nosso ritmo agitado e superocupado de vida, mantendo-nos em nossas casas e dando mais tempo para prestar atenção na humanidade.

É o efeito arrepiante do racismo e o tempo para prestar atenção que leva as pessoas às ruas hoje. É o efeito arrepiante do racismo ao redor do mundo e o tempo dado pela pandemia para viver que levou as pessoas às ruas em dezenas de países...

Parte 2: Os movimentos da mídia, por Rachel Mourão

Desde a morte de Trayvon Martin em 2012, evento que deu início ao movimento Black Lives Matter, a relação entre a imprensa e manifestantes é alvo de críticas por retratar movimentos antirracismo de forma incompleta, imprecisa e focada em incidentes de violência e vandalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma imprensa é criticada por dar espaço às demandas de movimentos de direita, ainda que esses grupos acreditem que jornalistas são esquerdistas, propagadores de fake news e antipatriotas.

Essa relação tumultuada entre imprensa e movimentos sociais tem sido objeto de pesquisa há décadas no campo da comunicação, que cunhou o termo paradigma do protesto para explicar como manifestantes são retratados pela mídia.

O preceito do paradigma é básico: movimentos sociais precisam de exposição midiática para conseguir atingir a população em massa, mas, quando conseguem, são retratados de forma negativa, afetando a opinião pública. Isso acontece porque as normas do jornalismo privilegiam três coisas: conflito, espetáculo e a versão das fontes governamentais.

Na prática, décadas de análise de conteúdo revelam que a cobertura midiática sobre protestos quase sempre têm como foco principal a violência, o número de prisões, a obstrução de vias públicas e a destruição de propriedade pública e privada, ainda que a maioria das atividades durante as manifestações sejam pacíficas.

O espaço dado às declarações e razões dos manifestantes é frequentemente reduzido e as aspas de representantes do governo e da polícia são priorizadas.

Nos últimos oito anos, estudamos a cobertura midiática de protestos de esquerda e direita nos Estados Unidos e no Brasil, incluindo o Black Lives Matter, as jornadas de junho e os protestos contra o governo de Dilma Rousseff. O nosso objetivo principal é entender o que leva um protesto a passar de “marginal” para “cívico” na cobertura jornalística.

Os resultados mostram que é justamente a busca pela objetividade e neutralidade que faz a cobertura dar mais espaço a movimentos conservadores e marginalizar movimentos contra o racismo. Isso acontece por três motivos. Primeiro, quando setores classe média e alta protestam, a polícia não os reprime da mesma forma que setores marginalizados.

Num segundo aspecto, é preciso entender que os protestos contra o racismo, especialmente no Brasil, geralmente não contam com o apoio de fontes oficiais como deputados ou partidos políticos, que fornecem declarações de apoio aos jornalistas.

Por fim, em terceiro lugar, demandas muito generalizadas, como “fim da corrupção” ou por “direitos” são mais facilmente abraçados por grupos políticos exatamente por serem menos tangíveis.

Em 2013 e 2015, as jornadas de junho e os protestos contra Dilma Rouseff inspiraram um projeto de pesquisa que abrangeu análise de conteúdo, questionando mais de 1.200 repórteres brasileiros e entrevista com jornalistas dos maiores veículos do país. Os resultados mostram que a insatisfação generalizada com o governo, às vésperas da Copa do Mundo, fez com que as fontes oficiais da oposição começassem a subsidiar aspas para os jornalistas. Enquanto isso, a polícia reduziu a repressão ao movimento, que passou a contar com o apoio de uma população de classe média e alta. Como resultado, a cobertura foi se modificando para dar espaço às ideias dos manifestantes e legitimando sua causa.

Nos protestos contra o governo Dilma Rousseff em 2015, manifestantes tinham o apoio de setores políticos que frequentemente davam entrevistas aos jornalistas. A maior parte da cobertura situava os protestos como parte de uma enorme crise política e contava com artigos explicativos que usavam aspas de fontes conservadoras no Congresso e Senado, incluindo o então deputado Jair Bolsonaro.

Os protestos contra o isolamento social e pelo fechamento do Congresso e do STF em 2020 também se beneficiam desse processo por não sofrer repressão policial e por ter o apoio do próprio Presidente. Quando a mais importante fonte oficial fornece aspas em apoio a um movimento, ele automaticamente ganha espaço e legitimidade na mídia, a despeito dos ataques que a própria imprensa sofre durante as manifestações.

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(Foto: Gabriela Biló/Estadão)

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Por conseguinte, protestos pelo fim da violência policial contra a população negra são desproporcionalmente afetados por essa dinâmica. Por ter como demanda básica o fim do racismo estrutural e institucional, especialmente relacionado ao aparato de segurança pública, manifestantes são frequentemente recebidos com uma forte repressão policial que inevitavelmente vira a manchete na cobertura (quantas pessoas foram presas, quantos carros quebrados, quantas ruas obstruídas etc.).

Por ter demandas específicas, como o fim de uma política de repressão policial ou a lei das cotas para o ensino superior, esse movimento tem maior dificuldade em encontrar apoio em elites políticas tradicionais.

No Black Lives Matter, nossos estudos entre 2013 e 2015 mostram que a violência ainda era a maior preocupação editorial nos jornais, que só dedicaram espaço à insatisfação com o tratamento dado pela polícia às minorias após o fim do julgamento dos réus, mas nunca de forma a legitimar suas demandas.

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Parte 3: Os Reflexos de George Floyd no Brasil, por Irapuã Santana

A cobertura de uma morte trágica nos EUA chegou aqui no Brasil como um tsunami, trazendo inúmeros questionamentos à população negra brasileira e serviu, inclusive, para ressuscitar o mais básico de todos: existe racismo no Brasil?

Devolvemos a pergunta com outra: como quase 400 anos de escravidão, em que o negro era considerado um mero objeto, destituído de humanidade, não deixaria uma ferida exposta enorme no DNA da sociedade brasileira?

Seus efeitos são sentidos até hoje, para quem tem olhos para ver os números. No ano de 2019, de acordo com o Atlas da Violência, a polícia matou 4.353 negros no país. Em 2017, das 65.602 vítimas de homicídio, 75,5% ou 49.529 eram negras. O Brasil deixa de produzir 18,5 bilhões de reais por ano matando diariamente grande parcela de sua população.

Não, não estamos falando que a pessoa mata um negro por ser um negro, mas, sim, que as pessoas negras estão mais expostas a situações violentas, em contato com a morte, de modo historicamente intencional. O caráter de subumanização se insere no modo como somos tratados até hoje.

É verdade que todas as vidas importam, mas, para o aparato estatal, parece que, na realidade, umas importam mais que outras. Por isso é preciso declarar e reforçar que vidas negras são importantes. Não é uma dicotomia excludente, mas sim um lembrete e uma ratificação, infelizmente necessários.

A população negra tem chorado todos os dias a perdas de seus irmãos e irmãs e buscar forças para seguir lutando no dia seguinte. É preciso resistir.

Os protestos que pedem justiça por George Floyd tocaram profundamente os corações dos negros brasileiros. Psicologicamente falando, houve uma sensação de pertencimento, em que o negro brasileiro se viu representado, vendo que sua dor poderia ser compartilhada por irmãos do mundo todo. Foi um toque de esperança e energia sobre o movimento negro daqui, que vem lutando bravamente contra todas as injustiças que ocorrem diariamente em nosso país.

Com a ajuda dos nossos irmãos americanos, ganhamos voz e visibilidade. Entrevistas, lives e colunas de jornais de ampla circulação passaram a encontrar os profissionais negros de diversas categorias para falar de algo que percorre toda nossa vida: o racismo.

Pudemos falar sobre nosso ativismo jurídico, como na ADPF 635, que questiona a constitucionalidade da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, bem como a Medida Cautelar proposta na Corte Interamericana de Direitos Humanos que denuncia o genocídio da população negra no Brasil, além do pedido de custeio, através do fundo eleitoral, de candidatura de mulheres negras.

Mostramos como já houve diversas manifestações em torno das mortes de Marielle, Edson, Miguel, Ágatha, João Pedro e tantos outros que nos deixaram, brutalmente assassinados.

João Pedro (Reprodução)

Expor o racismo nosso de cada dia é importante. Mas é preciso ir além. A violência física aqui é gritante, mas precisamos falar sobre a violência psicológica, sobre o tratamento desigual na saúde pública e outras questões igualmente relevantes.

É imperioso dar mais um passo e enxergar que negros são profissionais especializados em diversas áreas e dar espaços para dividir seu conhecimento técnico específico, seja no Direito, na Saúde, na Informática ou Engenharia.

Sendo ousado, é necessário seguir o caminho agora e sinalizar que essa é uma luta de todos e que as pessoas brancas precisam se unir a nós, tomando consciência de nossa dificuldade de simplesmente viver. Assim, modificar a forma de contratação, por meio de ações afirmativas privadas é de suma importância para a modificação desse quadro.

Mais do que nunca, é preciso aproveitar o momento para realizarmos mudanças efetivas em como o Estado trata especificamente a população negra, revendo formas de abordagem e revista, o que seria um passo importantíssimo. Outro ponto seria o fortalecimento de candidaturas antirracistas, já que não há como um país se desenvolver deixando 55,8% de sua população para trás, relegados à própria sorte nas periferias do país.

Sabemos que o racismo no Brasil e nos EUA acontece de forma muito diferente. O ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da constitucionalidade das cotas raciais nos concursos públicos, na ADC 41, em 2017, sobre o tópico, assentou o seguinte:

Aqui, diferentemente do que se passou nos Estados Unidos, não foram necessárias leis discriminatórias, leis do estilo “Jim Crow”: vagões para negros, vagões para brancos; praias para negros, praias para brancos; banheiros públicos para negros, banheiros públicos para brancos. Nós não precisamos disso, porque aqui o racismo era tão estruturalmente arraigado que isso já acontecia naturalmente, independente de lei, como consequência da marginalização e do próprio sentimento de inferioridade que isso criava. Nós nos acostumamos com uma sociedade em que os negros eram tratados de uma maneira estratificada, hierarquicamente inferiores nas atividades que desempenhavam. Assim, acostumamo-nos que negros eram porteiros, faxineiros, pedreiros, operários; negras eram empregadas domésticas.

Assim, temos que o racismo aqui no Brasil é muito mais prejudicial à população negra do que aquele existente nos EUA, mas, apesar de diferentes, as comunidades não deixam de se interligar e, diante de um raro momento em que os olhos estão voltados para nós, é preciso reverter essa dor constante em energia para ir adiante, abrindo caminhos, realizando modificações para que tais situações lamentáveis ocorram cada vez menos até sua erradicação.

Que todos os nossos irmãos queridos sigam vivendo conosco, em nossos corações, olhando por nós, lá de cima, para que um dia consigamos vencer, de fato.

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Danielle K. Kilgo, Ph.D, é Professora de Jornalismo da Cátedra John & Elizabeth Bates Cowles da Hubbard School of Journalism and Mass Communication na Universidade de Minnesota, Twin Cities.
Rachel R. Mourão, Ph.D, é Professora Assistente de Innovative Technologies na School of Journalism da Michigan State University.
Irapuã Santana é Doutorando em Direito Processual pela UERJ, advogado voluntário da EDUCAFRO e membro do IBDP. Consultor jurídico do LIVRES e Procurador do Município de Mauá.