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George Steiner: Universitas?

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Este conteúdo é trazido em uma parceria do Estado da Arte com o Nexus Instituut. Trata-se de uma tradução da conferência proferida por George Steiner no Nexus, em 2013, intitulada Universitas?

Uma reflexão sobre a ciência e as humanidades, o papel da universidade e algumas reformas possíveis para quando as humanidades parecem não humanizar.

Você encontra a íntegra da palestra em vídeo, no original, ao final desta página.

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Steiner (Foto: Suzanne Kreiter/The Boston Globe)

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I.

A exponencial — não há outra palavra — explosão da ciência e da tecnologia transformou não apenas nossas universidades, mas, depois de Descartes e Leibniz, o próprio status do conhecimento e da verdade. As ciências exatas e aplicadas com um progresso axiomático intrínseco, não é fantástico? Todos saberemos amanhã algo que não sabemos hoje. Pense nisso por um momento. Até mesmo uma medíocre equipe científica saberá, na próxima segunda-feira, algo que não sabe hoje. O elevador da ciência está sempre na ascendente. Criaram-se universidades novas dentro da universidade. Seu orçamento, não preciso dizer isso a reitores, é cem vezes superior ao das humanidades.

Em um ranking das universidades que formam a Ivy League, os custos do controle de temperatura dos laboratórios de alta energia é maior que todo o orçamento de dez anos atrás de toda a universidade. Isso em breves dez anos. Nas faculdades de ciências, os salários — e prestígio — são muito superiores àqueles dos departamentos não científicos.

(Sempre gosto de contar: Berkeley, na Califórnia, há um estacionamento aos professores. Parte dele é reservada a laureados com o Nobel. Parte do estacionamento. Sim, eles tem um número suficiente deles em Berkeley para reservar parte do estacionamento, imaginem vocês.)

A biogenética busca acesso ao mecanismo da própria vida. Avanços na medicina são virtualmente incomensuráveis. Mas… mais, essa pequena palavrinha em francês, mais. Aber, em alemão. Mas… nossas guerras são bárbaras como nunca. A fome, a escravidão humana e a migração forçada só crescem. Quarenta milhões de crianças próximas da linha da fome. Quarenta milhões de crianças. A economia nem foi capaz de prever nem está nos ajudando na presente crise do capitalismo tardio. Os níveis de stress, a tristeza no espírito, a criminalidade que caracteriza tanto de nossa existência urbana e familiar. A histérica fuga aos narcóticos, a hipnose da mídia de massa, tudo isso tem se mostrado resistente aos triunfos da ciência e sua crença na racionalidade iluminada. Na grande era da ciência, nunca houve tanta miséria nas ruas, tanto colapso mental.

Há um enigma teimoso aqui. Talvez uma resposta parcial esteja no espaço, no vão que separa o conhecimento e o método científico da capacidade de compreensão do público em geral. Não é só o fato de que o idioma da natureza é a matemática, como dizia Galileu; a evolução dessa linguagem mesma excluiu a compreensão do senso comum. Você e eu ainda falamos sobre o nascer e o pôr do sol em linguagem ptolemaica, séculos após Newton e Copérnico. É claro que não faz sentido algum, mas ainda a usamos continuamente. Vivemos em meio a ficções arcaicas de objetos sólidos. Esta mesa, dizem-nos, é um vórtice de elétrons em movimento quântico.

Mas as causas podem ser mais profundas. Desde Euclides, a ciência orgulha-se de suas abstenções políticas e ideológicas, sua neutralidade a respeito dos conflitos sociais e políticos. Ela tem cultivado aquilo a que Kant chamou maravilhosamente de desinteresse. Noli me tangere, eu pratico ciência. Não me venha interferir com questões políticas e sociais. Noli me tangere.

Os envolvimentos da ciência na guerra ou nos delírios stalinistas foram controversos e autodestrutivos. Heidegger, Deus nos livre, colocou em termos de uma insolência majestosa: “A ciência não pensa.” Die Wissenschaft denk nicht. Era preciso ser Heidegger para poder dizer isso. É de uma idiotia muito profunda. É uma idiotia, mas é muito profunda. E esta é uma das coisas mais difíceis de se lidar: idiotias profundas.  

As humanidades pensam? A frase orgulhosa, literae humaniores: as letras humanas. Menschlichkeit. L’Humanité. Humanitas. Sua condição, perdoem-me — e não quero ofender aqui —, não resplandece. Um bom número de estudantes, em autointituladas universidades — que são, na verdade, escolas técnicas ou de negócios alçadas a um nível falso —, está basicamente no limite da alfabetização. Sinto muito.

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II.

O que é pior? Em instâncias particulares, escritores, músicos, artistas e acadêmicos, de forma mais ou menos aberta, ficaram ao lado ou optaram pela indiferença diante das ações da desumanidade. O jardim de Goethe fica a não muitos quilômetros de Buchenwald. Heidegger dava aulas sobre Hölderlin, Sartre referia-se à Paris ocupada, e cito, como “uma produção perfeitamente pró-literária e filosófica”. Em suma, quando invocamos os ideais e as práticas das humanidades, não há qualquer garantia de que elas humanizem. Minha percepção sobre isso é algo que me atormenta. Uso aqui a frase do grande poeta americano, Wallace Stevens: “ficções supremas”. Ficções supremas podem, podem fazer com que nos esqueçamos do choro de desespero nas ruas. Eu venho, digamos, de um seminário à tarde, em que falei, digamos, sobre os atos III e IV de Rei Lear. Estou completamente absorto, envolvido nos sofrimentos de Cordélia e no grito de Lear: “Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca.” E alguém está gritando na rua, “ajude-me!”, e eu não escuto. Misteriosamente, não escuto. Isso me atormenta.

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Rei Lear e o bobo na tempestade, de William Dyce

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Um segundo importante fator pode estar relacionado à democratização do ensino superior, à acelerada extensão do acesso universitário a virtualmente toda esfera em sociedade. Sim, as potencialidades humanas estão, de fato, em todo lugar; sim, elas são, muito frequentemente, sufocadas pela injustiça econômica e pela discriminação. Senhoras e senhores, as capacidades da mente humana, suas potencialidades, não são infinitamente elásticas. Lamento. O talento, e menos ainda o gênio, nas artes é enigmaticamente raro e imprevisível. O número de mulheres e homens, homens e mulheres suficientemente qualificados para responder a um coro de Ésquilo, a uma prova categórica de Kant, a uma elegia de Duino de Rilke, pode ser maior que pressupõem as hierarquias de ideologias reacionárias. Não é, porém, ilimitadamente amplo. As ciências não têm qualquer hipocrisia com relação a isso. Nós temos! Nós, humanistas, mentimos continuamente a nós próprios! As ciências dizem “Sinto muito, você não é competente para resolver uma equação de quinto grau. Sinto muito, adeus, torne-se um banqueiro”. Você não consegue sobreviver ao primeiro ano de um curso sério nas ciências se você não sabe fazer as malditas coisas. Eles não blefam. Não podem blefar, não podem perder seu tempo blefando. As ciências rapidamente descartam os ineptos para quem aquelas duas funções elípticas, a teoria das cordas são inacessíveis. Não há um contrato igualitário, não há um acordo democrático com números transfinitos. Acreditem.  

Hoje, as humanidades titubeiam diante de qualquer rigor no recrutamento, diante de qualquer reconhecimento de que as candidaturas e matrículas em muitas esferas dos estudos sociais e literários estão inchadas, vulgarizadas a um nível destrutivo. Hoje, é quase que impossível livrar-se de alunos absolutamente não qualificados para suas aulas. É quase impossível, em termos administrativos, políticos, ideológicos. Nossos colegas nas ciências não têm esse problema. Eles sabem o que estão fazendo e dizem simplesmente: “Sinto muito”. Isso está se tornando mais e mais verdadeiro na medida em que as ciências vão se tornando mais e mais matematicamente complexas.

É possível que haja, em uma última análise, um elemento estrutural em nossa crise. Nós notamos as origens teológicas das universidades ocidentais. Sua emancipação da teologia levou a um tipo de vácuo, um vazio incapacitante. Movimentos cardeais no ensino e na pesquisa acadêmica fundamentavam-se em premissas teológicas de uma autoridade — auctoritas, essa bela palavra — do precedente textual, da referência da tradição. Inevitavelmente, as disciplinas seculares moveram-se, desenvolveram técnicas de compreensão, comunicação e apresentação herdadas daquilo que ainda são, compreensivelmente, escolas teológicas. Mas uma legitimação substantiva e a subscrição — e esta é uma palavra muito poderosa, subscrever algo — sobre as quais esses reflexos axiomáticos estavam fundados são agora fantasmas. Elas não mais oferecem segurança. No princípio era o Verbo, a palavra, o logos. Dele, derivou-se a instrução humanista. Quando a palavra não é mais audível, os fundamentos ontológicos dos estudos filosóficos, literários e históricos são rompidos.

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(Foto: Nancy Siesel/The New York Times)

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III.

O que devemos fazer então? Não é difícil visualizar algumas reformas.

Nós devemos purificar nosso vocabulário, limpar nossa linguagem para dizer aquilo que queremos dizer. O que é uma verdadeira universidade? Ora, são bibliotecas; um cuidado e engajamento com um passado vivo. Uma busca por desenvolver o conhecimento e clarificar criticamente os processos de escolha. Uma verdadeira universidade não serve a propósitos políticos ou programas sociais, necessariamente partidários ou transitórios. Acima de tudo, ela rejeita a censura e o politicamente correto de qualquer tipo. O que nós conquistamos com o politicamente correto? As mentiras que estamos ensinando ou sendo obrigados a aceitar, as perguntas que não nos permitem levantar. Nem perguntar. O politicamente correto torna impossíveis grandes campos de estudos comparados.

Uma universidade deve abrigar e honrar a provocação anárquica e a paixão pelo inútil.

Qual é a mais maravilhosa paixão que há neste mundo? A paixão pelo inútil. Se alguém vem e me diz “Vou dedicar a vida ao estudo das obras com bronze na Dinastia Tang”, eu então direi “Você é uma pessoa de muita sorte. Você será muito feliz, e cheio de vontade, e você tem uma vida abençoada”. É uma noção de que o inútil é a forma mais elevada de atividade humana.

Antes de mais nada, precisamos insistir em recapturar alguns dos fundamentos que as humanidades cederam às ciências. É possível dizer que um homem ou mulher do século XXI é instruído quando, em total ignorância de matemática elementar, do próprio conceito de número — que organiza e determina o mundo à nossa volta —, ele ou ela não é capaz de compreender uma noção como a de média, ou de um número irracional? Noções instrumentais à nossa existência socioeconômica, indispensáveis a debates contemporâneos sobre modificação genética, eutanásia e o direito. A atribuição frequente dos menos qualificados ao ensino da matemática em nossas escolas é um escândalo suicida. Como funciona na universidade de Newton? Se você é o primeiro em matemática, você pode seguir na pesquisa. Se é o segundo, você então acaba no mercado financeiro, que é bem sofisticado em sua matemática. Se é o terceiro, o pior, então você vai ensinar matemática. Percebem a loucura que se autorrealiza num sistema assim?

Nunca é tarde demais. Um programa de estudos essencial, estou convicto disso, tem — e espero que me acompanhem aqui, porque esta é uma reforma muito prática — em seu centro a arquitetura. Por quê? Porque se deriva, de forma muito elaborada, é claro, da matemática. A geologia, ciências materiais: aço, ferro, madeira, tudo isso é relacionado à política ambiental em todos os níveis; pressupõe ancestralidade e o futuro. Na arquitetura, o famoso vão que separa as duas culturas é abolido. Arquimedes encontra-se com Michelangelo. Juntos, eles nos ensinam, e a frase técnica é linda, a ler uma construção. Não há nenhum aspecto do direito, da sociologia, da economia ambiental e da política urbana que a arquitetura não envolva em nossas vidas cotidianas.

Como ler uma construção? Como ler? Esse é o elemento central de minhas colocações.

Estamos aprendendo a ler juntos. Sem textos secundários, por favor. Chega de crítica. Chega de comentários aos comentários aos comentários. É uma absoluta perda da verdade. Aprendemos a ler juntos. E o que você faz ao final? O movimento final, ou melhor, de abertura, é o da memorização. Decorar. Aprender de cor, par cœur. Pelo coração, não pelo cérebro. Decorar um poema ou trecho de prosa é agradecer por aquilo que nos disse o texto. É o único meio efetivo de se dizer merci, obrigado, Danke. Pela pluralidade inesgotável de significado, pelo milagre do sentido, aquilo que sabemos de cor, by heart, não pode ser tirado de nós. Não se esqueçam disso.

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(Reprodução)

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Assista à conferência de George Steiner, disponibilizada no canal do Nexus no YouTube:

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Nossos profundos agradecimentos ao Nexus, a Rob e Eveline Riemen.

(Tradução de Gilberto Morbach.)

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