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Grandes Refilmagens, Parte 1

por José Francisco Botelho

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As refilmagens cinematográficas sofrem de má reputação – circunstância injusta, como veremos a seguir, que persegue todas as obras de natureza claramente derivativa. Ah, sim, claro, há remakes hediondos que conspurcam para sempre as retinas que os captaram (o Psicose de Gus Van Sant é o primeiro que me vem à mente); e outros tantos simplesmente desnecessários, ou emasculados, ou repetitivos, como algumas das recentes reiterações norte-americanas de sucessos asiáticos. Contudo, quero recordar certo adágio atribuído ao grande escritor de ficção científica Theodore Sturgeon: “Noventa por cento de toda a ficção científica é um lixo; mas isso ocorre porque noventa por cento de qualquer coisa é um lixo”. Não pretendo discutir a metáfora numérica. Porém, usemos a chamada Lei de Sturgeon enquanto compasso aproximado: há muitas refilmagens que não precisavam ter visto a luz do dia; mas o mesmo se pode dizer de, bem, qualquer coisa que se faça sobre a Terra. Um remake, quando funciona, é como uma boa tradução literária: acrescenta algo ao universo, em vez de simplesmente repetir o que já foi dito ou feito. Há diferentes maneiras pelas quais essa mágica pode dar certo: vejamos algumas.

Primeiramente: há o caso em que uma refilmagem fisga na obra original uma ideia interessante, promissora, fecunda, mas que antes não chegara à plena maturação; em outras palavras, o remake apanha um elemento que estava no original e o aprimora. Essa afirmação certamente despertará um certo ressaibo platônico: ora, então a obra secundária pode ficar melhor que a primeira? Sim, claro que pode – como o próximo parágrafo tratará de demonstrar. Antes, contudo, devo acrescentar que, no mundo da música, muitas vezes uma regravação aperfeiçoa a canção primordial  (16 Toneladas, de Noriel Vilela, tem uma superioridade não menos que ontológica às versões americanas de 16 Tons); e que tantas outras vezes o filme é melhor que o livro (O Poderoso Chefão é um argumento que você não pode recusar); e, finalmente, que uma tradução literária pode, sim, superar o livro traduzido. Mas, eh bien, deixemos para falar disso outra hora.

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Um perfeito exemplo da situação que acabo de descrever é O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), de John Carpenter. Um filme com o mesmo argumento inicial fora dirigido por Christian Nyby (possivelmente com uma mãozinha do produtor, o grande Howard Hawks) em 1951: The Thing from Another World, conhecido no Brasil como O Monstro do Ártico. No filme de Nyby, um grupo de cientistas descobre uma criatura alienígena congelada sob o gelo de Anchorage e, inadvertidamente, a traz de volta à vida, para infortúnio de diversos personagens coadjuvantes. O monstro em questão é uma espécie de planta humanoide que se alimenta de sangue e encurrala os desavisados cientistas em meio à paisagem ártica, ao mesmo tempo vasta e opressora: ao contrário de muitos filmes de monstro da época, a criatura quase não dá as caras, manifestando-se quase apenas no rastro sangrento que vai deixando por onde passa. Sua invisibilidade oblíqua acentua a atmosfera sugestiva desse admirável suspense biológico – que, se não foi parcialmente dirigido por Hawks, merecia ter sido.

Ao reinventar a história, John Carpenter e o corroteirista Bill Campbell retiveram a sensação de claustrofobia glacial, mas aprimoraram a nêmesis extraterrestre dos protagonistas: em vez de uma planta assassina, temos uma criatura sem forma específica, que se multiplica e assume a aparência de suas vítimas. Com o desenrolar da história, é impossível saber quais personagens são de fato humanos e quais são cópias nefastas – uma perfeita evocação daquele sentimento que Freud chamava de Unheimliche. Enquanto o filme de 1951 primava pela reticência visual, Carpenter atira-se na direção oposta, mostrando as transições entre o humano e o não-humano em todos os seus pavorosos detalhes – e o faz com a ajuda dos efeitos especiais de Rob Bottin e Stan Winston, que merecem um lugar de honra entre as glórias eternas do cinema de horror.  Tanto o filme de 1951 quanto o de 1982 são baseados na novela Who Goes There?, de John W. Campbell Jr. – mas a versão de Carpenter está mais próxima à fonte literária, cujo vilão é um ladrão de corpos. Trata-se de dois filmes excelentes, mas, em minha opinião, a segunda versão funciona melhor: leva sua premissa às últimas consequências e nos brinda com um dos mais eficientes “finais em aberto” de que tenho notícia.

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Para citarmos ainda outro exemplo no mesmo gênero, basta lembrar A Mosca (1986), de David Cronenberg, que faz alterações significativas no enredo herdado de A Mosca da Cabeça Branca (1958), de Kurt Neumann.  Na primeira obra, a metamorfose ocorre longe das câmeras e dá origem a dois seres distintos: um humanoide com cabeça de mosca e uma mosca com minúscula cabeça humana. No filme de Cronenberg, A Mosca do título é horrivelmente una: o cientista interpretado por Jeff Goldblum não se divide em dois seres, mas se transforma lentamente em inseto – de corpo e (o que é pior) alma. A essência do filme está precisamente em mostrar os horripilantes estágios dessa transformação, à medida que a saliva de Seth Brundle se transforma em ácido e sua mente vai perdendo, como pedaços de pele podre, todos os traços de moralidade.

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Aí temos, portanto, duas refilmagens que de alguma forma aprimoram o original; mais misterioso é o caso do remake que retrabalha um filme por si mesmo imelhorável. O fracasso, aí, parece certo: mas há momentos em que algo realmente fascinante acontece, e um ótimo filme dá origem a outro que, sendo distinto, é ainda visivelmente um produto do primeiro. O tipo modelar desse fenômeno encontra-se nos dois filmes conhecidos, tanto em inglês como português, por Scarface: o primeiro, dirigido pelo mestre Howard Hawks e lançado em 1932; o segundo, pelo enfant terrible – hoje, ai de nós!, já não tão enfant – Brian De Palma em 1983. Na essência, ambas as obras contam a mesma história: um malfeitor de apetites e ambições ilimitadas galga os patamares do crime aniquilando toda a concorrência, traindo o antigo chefe e roubando-lhe a amante; em ambos os filmes, o protagonista é renegado pela própria mãe e tem uma obsessão talvez incestuosa pela irmã.

Tanto em 1931 quanto em 1983, encontramos um magnífico paradoxo: um conto ao mesmo tempo perverso e moralista, que condena a híbris de seu anti-herói, mas se deleita em exibir seus excessos. O filme de Howard Hawks se passa em Chicago durante a Lei Seca e gira em torno do tráfico de bebidas; o gangster Tony Camonte é interpretado por Paul Muni com uma exuberância que beira, calculadamente, aquilo que em inglês se chama overacting: somente uma atuação assim, às margens do caricato, poderia servir a um personagem excessivo, que destrói a si mesmo por seus desejos descomunais. As autoridades da época se escandalizaram com a violência apresentada nos confrontos entre Camonte e seus inimigos – entre eles, um delicioso Boris Karloff, destroçado por uma metralhadora enquanto joga boliche (da mão do morto, desliza a bola, e a câmera a acompanha até derrubar todos os pinos: Hawks era um gênio). A relação entre o protagonista e sua irmã também gerou indignação. Antes mesmo que o filme fosse lançado, a Associação dos Produtores e Distribuidores da América obrigou o produtor, Howard Hughes, a sobrecarregar o filme com o subtítulo A Vergonha de uma Nação e a grudar-lhe duas cenas desnecessárias contendo condenações protocolares do gangsterismo. Hawks se recusou a dirigir esses apêndices. Como bom contador de histórias, sabia que a moral de um conto jamais deve ficar demasiado clara: pois nada envelhece mais rápido que nossas boas intenções.

A refilmagem de De Palma transfere a ação para Miami na década de 80 e troca o álcool pela cocaína. Tony Camonte se transforma em Tony Montana, um imigrante cubano clandestino recém-chegado aos Estados Unidos. Na ocasião, Fidel Castro abrira temporariamente as fronteiras de sua ilha, permitindo que muitos dissidentes fugissem de barco – e aproveitando para enviar aos inimigos americanos o excesso populacional de suas prisões. A escolha dessa circunstância, apresentada em forma quase jornalística no início do filme, é o primeiro grande acerto de De Palma: usando imagens documentais para deslanchar a saga de Tony Montana, o diretor crava a refilmagem decididamente em sua própria época e deixa claro que esse remake não é mera repetição, mas a recriação de um arco dramático.

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A história de Montana é a epopeia do excesso. À medida que ascende ao paraíso dos celerados, o protagonista interpretado por Al Pacino nos faz despencar por uma espécie de pesadelo brega-sangrento em que o inconsciente onanista da década de 80 vai nos engolindo aos borbotões: tiroteios em boates cintilantes onde giram globos de luz e cintilam todas as cores primárias, como numa polução noturna frustrada; mansões de vidro e mansões de mármore, com colunas dóricas e banheiras de espuma com televisão embutida; um tigre de coleira, justamente irritado, rugindo no pátio para deleite dos convivas; montanhas de cocaína na escrivaninha, onde o protagonista enfia a cara e suja o nariz, como um menino num bolo de merengue.

Pacino move-se como um tubarão nessa maré de maravilhoso mau gosto. Sua atuação serve ao mesmo tempo de homenagem e releitura ao trabalho de Muni: apenas grandes atores, como eles, podem flertar com o descontrole absoluto, mas fazê-lo de forma perfeitamente estudada. E somente os ingênuos podem achar que Pacino e seu filme caem no exagero de forma inconsciente. “Eu não vou entrar nesse carro”, cicia a personagem de Michelle Pfeiffer, futura e desventurada esposa de Montana, enquanto o protagonista lhe apresenta um carro longilíneo forrado em falsa pele de tigre. Pfeiffer representa a consciência estética do filme: está ali nos dizendo que toda essa extravagância é intencional, e tem um sentido.

Ao contrário do que alegam seus detratores, o exagero é o que torna o Scarface de 1983 um filme tão interessante. Hawks era um diretor de maravilhosa sutileza, e não faria sentido competir com ele nesse quesito: De Palma lança-se na direção oposta e expande a grandiloquência presente na interpretação de Paul Muni para a obra inteira. O resultado é um épico kitsch sobre a masculinidade diabólica e autodestrutiva. O ponto moral perde-se apenas aos distraídos: quem prestar atenção notará que a mãe de Montana o condena de forma muito mais nítida do que o fez a mãe de Camonte. “Você destrói tudo em que toca!”, ela esbraveja, como a sibila, ao escorraçá-lo de casa. E está totalmente certa.

O veredito materno se cumpre de forma espetacular na cena final, uma batalha operística que beira o inverossímil, mas que funciona como delírio e fecho trágico, sem perder o toque de ironia sinistra que percorre todo o filme: após descarregar seu “little friend” (uma metralhadora gigante) do patamar de uma escada, Tony Montana é estraçalhado por balas e cai nas águas de uma fonte lá embaixo. Enquanto a câmera se afasta, o cadáver fica boiando junto ao chafariz, onde se lê, em letras de néon roxo: The World is Yours. As mesmas palavras aparecem no desfecho do filme de Hawks, em um letreiro luminoso, na rua onde Tony Camonte encontrou seu fim.

Eis aí o quociente perfeito entre original e remake: diferentes, mas amarrados de forma umbilical, os dois filmes não se esgotam nem se anulam ao serem contrapostos: pelo contrário, se engrandecem, e assim podemos ouvir ainda melhor o que têm a dizer.

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José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.