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Há 20 anos, MP e política

por Gunter Axt

Em dezembro de 1999, 20 dias depois de divulgado no Senado Federal o relatório da ruidosa CPI do Judiciário – que abalara a República investigando nove casos, dentre os quais o desvio de 169 milhões de reais das obras do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo –, na Câmara os deputados aprovaram um substitutivo, alterando a Lei n. 4.898/1965, de Abuso de Autoridade, de forma a estabelecer sanções penais para o magistrado, membro do Ministério Público, membro do Tribunal de Contas e autoridade policial ou administrativa que divulgasse ou permitisse a divulgação de informações sobre investigações ou processos em andamento. O projeto, popularmente conhecido como Lei da Mordaça, era uma reação do meio político às denúncias divulgadas, na época, especialmente por membros afoitos do Ministério Público Federal, pois, ainda que a Justiça inocentasse os suspeitos, entendia-se que o estrago à imagem pública poderia ser irreversível.

O caso mais emblemático foi do ex-secretário-geral da Presidência da República Eduardo Jorge Caldas Pereira, apontado pelos procuradores Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb e pela revista Veja [1], em junho daquele ano, como envolvido no esquema do TRT de São Paulo, junto com o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto. O juiz foi posteriormente condenado, mas nada ficou provado contra Eduardo Jorge, que acusou os procuradores de perseguição e de ilícitos administrativos, sustentando que eles utilizaram notícias jornalísticas como indícios veementes para atacá-lo perante a opinião pública e o Senado, violando seus direitos constitucionais. Ele também indicou que Luiz Francisco e Schelb vazavam informações para a imprensa sobre a quebra de seus sigilos e repassavam dados falsos à Receita Federal [2].

Durante dois anos, Eduardo Jorge ocupou um espaço constante no noticiário, protagonizando denúncias nunca provadas, mas demolidoras de sua reputação. Conhecido então como “o Sombra”, ou simplesmente EJ, afastou-se da vida pública e dedicou-se a recuperar a própria imagem, ganhando na Justiça o direito de receber indenizações de diversos veículos de imprensa, como as revistas Veja e Isto É, e os jornais Folha de São Paulo, O Globo e Correio Braziliense

Luiz Francisco de Souza era então considerado candidato a herói, já quase entronizado, figurando em listas seguidas de cidadãos do ano. De vida monástica, acendrada fé católica, férrea determinação pessoal, convicções marxistas explícitas e simpatizante do PT, muitos não resistiam a caracterizar o seu trabalho como uma cruzada benfazeja contra o mal. Foi Luiz Francisco quem se empenhou tenazmente em reunir elementos que comprovaram o envolvimento do Senador Luiz Estevão (PMDB-DF) na obra superfaturada do TRT de São Paulo. Também por seu trabalho, Hildebrando Pascoal (PFL-AC), conhecido como o Deputado da Motosserra, condenado por assassinato brutal e envolvimento com o crime organizado, foi preso no instante em que perdeu o mandato. Considerado na época um verdadeiro Torquemada, fiscal implacável do governo FHC, suspeitou-se, contudo, posteriormente, que ele assinava denúncias e representações que já lhe chegavam prontas, preparadas por adversários do governo. 

O MPF crescera aos saltos, alavancado pela Constituição de 1988, tanto em atribuições e garantias, quanto em seus quadros. Antes, 90% da sua atuação se concentrava na defesa da União e do governo. O capítulo do MP, a grande novidade da Carta, fora, contudo, essencialmente uma construção proposta pelos MPs dos Estados e pela CONAMP (Associação Nacional dos Membros do MP), à qual a ANPR (Associação dos Procuradores da República) não é filiada. O MPF chegou a fazer oposição ao projeto, pois discordava da vedação ao exercício da advocacia privada e pública e repelia a isonomia com os outros ramos do MPU (Ministério Público da União). Portanto, tinha pouca tradição de autonomia e uma cultura institucional recente, ainda em gestação. Basta dizer que nos MPs do Maranhão e do Rio Grande do Sul, os concursos para ingresso na carreira começaram em 1941 e, em São Paulo, em 1936, enquanto que, no MPF, o primeiro foi realizado apenas em 1971 – o último MP a fazê-lo no Brasil [3].

Assim, diferentemente de Ministérios Públicos dos Estados, os mecanismos de controle interno do MPF eram frouxos. A Corregedoria-Geral existia no papel, nela atuando somente um membro, desassistido de infraestrutura, de adjuntos e de servidores em número razoável. A virtual inexistência de um órgão de controle interno deixava procuradores da República amiúde soltos, o que permitia a emergência de arroubos como os que estavam sendo fustigados por setores da imprensa, pelo Palácio do Planalto e pelos presidentes das Cortes superiores. Não por acaso, dentre as contribuições mais valiosas que trouxe a Corregedoria Nacional, depois de instalado o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 2005, foi estimular os órgãos que não tinham suas Corregedorias locais convenientemente operativas a desenvolvê-las, inclusive, e sobretudo, o próprio MPF. 

Assim, enfrentando incriminações propostas pelos procuradores, Eduardo Jorge procurou se explicar. Em 3 de agosto de 2000, foi questionado por oito horas pelos senadores na Subcomissão Permanente do Judiciário, que proclamou a falta de elementos concretos para o prosseguimento das investigações [4]. Foi sua primeira vitória, mas o combate estava longe do final. 

Enquanto ainda tentava se defender, os Senadores Jader Barbalho (PMDB) e Antônio Carlos Magalhães (PFL) desencadearam uma rezinga figadal pela presidência da Casa. Pelo trovejo dos dois, ampliou-se a noção sobre malfeitos de apaniguados na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). O financiamento a um inexistente ranário da esposa de Jader Barbalho tornou-se a nota pitoresca do cenário traçado. Em abril de 2000, o Conselho de Ética do Senado aprovou um pedido de censura contra os dois por quebra de decoro depois de um bate-boca em plenário em que ambos se espinafraram com mimos tais como corrupto, ladrão, farsante, truculento e indigno. 

Antônio Carlos Magalhães

Jader Barbalho acabou se aliando ao Deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e os dois lograram ser eleitos às presidências das respectivas Casas Legislativas em fevereiro de 2001, deixando o PFL de fora da sucessão pela primeira vez em anos. ACM considerou o desenlace uma traição do governo que ajudara a eleger e, tendo emergido da CPI do Judiciário como um paladino da moralização, passou a atacar o próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem reputava complacência para com a corrupção. 

Cada vez mais isolado, num movimento surpreendente, ACM resolveu procurar o Ministério Público para ressuscitar o “Caso Eduardo Jorge”, sugerindo aos procuradores Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb que quebrassem, de 1994 a 1998, o sigilo bancário do ex-secretário da Presidência. No encontro, ACM, inadvertidamente gravado por Luiz Francisco, confessou que na cassação de Luiz Estevão em junho de 2000 – um dos desdobramentos da CPI do Judiciário – o sigilo do painel de votações do Senado havia sido ilegalmente quebrado. A gravação foi vazada por Luiz Francisco por meio da revista Isto É. Em 30 de junho de 2001, ACM, depois de meses de agonia e seguindo o colega José Roberto Arruda (PSDB-DF), igualmente implicado no episódio, decidiu renunciar ao mandato para preservar seus direitos políticos e arquivar as investigações sobre a violação [5].

Foi a primeira vez que procuradores federais, por meios, ainda por cima, pouco ortodoxos, pontificavam na desestabilização da República, ao mesmo tempo desgastando o governo e atingindo o coração do Parlamento. No espaço de cerca de um ano, um senador teve seu mandato cassado, vindo a ser em seguida denunciado e posteriormente condenado, e três renunciaram (além de ACM e Arruda, Jader Barbalho também o fez para evitar processo no Conselho de Ética). ACM, ex-todo-poderoso presidente do Senado que cavalgara a CPI do Judiciário, foi alvejado sem nem ao menos um inquérito formado. Três grandes partidos – PMDB, PFL e PSDB – eram envolvidos no torvelinho de denúncias. Havia um novo player institucional surpreendendo o palco político. 

No MPF as atitudes de Luiz Francisco de Souza dividiram opiniões. As fitas originais da gravação da conversa com ACM jamais apareceram. Luiz Francisco disse que depois de uma estralada com os colegas Guilherme Schelb e Eliana Torelly pisoteou-as, destruindo-as e deixando-as no chão para serem jogadas no lixo pelos faxineiros, gesto que causou espécie na opinião pública e que foi severamente repreendido pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, tanto em função da falta técnica, quanto pela emocionalidade. Constou que as gravações também trariam censuras ácidas dos procuradores ao chefe do Ministério Público e ao Judiciário. Pouco depois, os procuradores Maria Célia Mendonça e João Francisco Sobrinho denunciaram Luiz Francisco no TRF da 1ª Região, por ter tomado a iniciativa de divulgar as fitas antes mesmo de promover uma investigação pertinente. Muitos colegas consideraram seus procedimentos precipitados e personalistas, com vistas ao estrelismo exibicionista [6]. 40 representações por supostos abusos foram movidas contra Luiz Francisco. 

Em 2007, o CNMP, instalado pela Reforma do Judiciário de dezembro de 2004, reconheceu formalmente que Luiz Francisco perseguira Eduardo Jorge politicamente e o condenou a 45 dias de suspensão. Uma liminar do STF interrompeu a punição. O colega Schelb recebeu uma advertência. 

Em agosto de 2019, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em Brasília, condenou a União a indenizar em R$ 100 mil, a título de danos morais, Eduardo Jorge, em virtude da perseguição contra ele movida pelos procuradores Guilherme Schelb e Luiz Francisco de Souza. Nesse ínterim, ambos foram promovidos, estando lotados na Procuradoria Regional da República, em Brasília, onde atuam junto ao TRF1, o mesmo que reconheceu sua responsabilidade no caso Eduardo Jorge. Luiz Francisco evitou os holofotes desde então e vem tendo atuação discreta, longe das iniciativas aparatosas da primeira instância. Schelb integrou, entre 2012 e 2016, os quadros da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, cuja influência tem crescido exponencialmente em tempos recentes. Defensor do projeto Escola Sem Partido e palestrante contra as ameaças de erotização infantil, que enxerga em discussões sobre gênero, chegou a ser cotado, em fins de 2018, para assumir o Ministério da Educação, com apoio da bancada evangélica do Congresso. 

O projeto de reforma da Lei de Abuso a Autoridade, com responsabilização de magistrados e membros do MP, soçobrou em 2000, voltando à cena tal qual Fênix de vez em quando. O momento mais tenso se deu no primeiro semestre de 2004, quando o Governo Lula reagiu à divulgação de uma conversa que o Procurador da República Marcelo Serra Azul e o Subprocurador-Geral José Roberto Santoro gravaram com Carlinhos Cachoeira, esquentando Escândalo dos Bingos e atingindo o Ministro Chefe da Casa Civil José Dirceu. Com a criação dos órgãos de controle externo – CNJ e CNMP – pela Reforma do Judiciário de dezembro, o tema saiu do foco, diante da convicção geral de que os conselhos se encarregariam doravante de analisar exageros ou erros de conduta. 

Mas a trégua não durou muito. Em 2008, o Deputado Paulo Maluf, acusado de inúmeras ilicitudes e que fora preso por 40 dias em 2005, tentava resgatar um projeto de responsabilização de agentes públicos do Direito. Desde então, a iniciativa foi sucessivamente requentada e derrotada, esbarrando na mobilização das entidades de classe, que em geral contava com o apoio da imprensa e da sociedade e que colava eficazmente aos projetos a chancela de retrocesso acolitado por políticos desgostosos com um Ministério Público e um Judiciário operativos no combate à corrupção. Deputados eram pressionados por prefeitos e vereadores, mas as queixas raramente paravam em pé. Enquanto isso, os conselhos cumpriam seu papel, como no afastamento do procurador-geral de Justiça do Amazonas e na correição do CNMP que revolucionou o Piauí.

Em dezembro de 2016, a punição para autoridades da área jurídica foi encartada na calada da noite no projeto que adaptava as chamadas 10 Medidas Contra a Corrupção, cujos principais paladinos eram procuradores do MPF engajados na rumorosa Operação Lava Jato, que levou dezenas de empresários e políticos de alto coturno à prisão. Contudo, um Congresso desgastado por uma sequência de escândalos envolvendo alguns de seus membros não conseguiu seguir de encontro ao clamor popular e a proposta naufragou mais uma vez. 

A senha para a retomada do debate foi dada pelo Ministro Gilmar Mendes em sessão do STF de 10 de maio de 2018, na qual se discutiu a limitação do foro privilegiado. O ministro comentou os efeitos desastrosos das Operações Ouvidos Moucos, que acabou redundando na morte trágica do reitor da UFSC, e Carne Fraca, cujo estardalhaço trouxe graves prejuízos ao agronegócio, como resultado da ação de “troicas de tresloucados e ignorantes”, referindo-se aos delegados, procuradores e juízes responsáveis. Exigindo à Presidente Carmen Lúcia providências no âmbito do CNJ – que nada fez –, disse que em nome do combate à corrupção poder excessivo fora entregue a “doidivanas”, para os quais as punições eram apenas retóricas, quando aconteciam, e que o país agora não enfrentava apenas um Luiz Francisco, mas dezenas deles. Em junho, Mendes atacou a vulgarização das conduções coercitivas, que considerou “novo capítulo na espetacularização de investigações”. De fato, o abuso no emprego das conduções coercitivas já havia provocado protestos diversos, inclusive de dezenas de associações científicas e acadêmicas, pois reitores de universidades importantes estavam sendo atingidos. Criticando a Lava Jato, Gilmar disse antes que o STF tinha “um encontro marcado com as prisões alongadas”. Sintomaticamente, Mendes não citou exemplos na jurisdição comum, na qual circulam mais de 80% dos feitos da Justiça brasileira e onde órgãos de controle interno e colegiados tendem a funcionar com mais eficácia.

O ministro Gilmar Mendes

Daí, com o Congresso legitimado por uma nova Legislatura, recém-empossada, foi um passo para que o projeto de Lei de Abuso de Autoridade fosse retomado, surpreendendo o meio jurídico. Bem ou mal, o Parlamento entendeu que exageros identificados em ações espetaculosas e temerárias promovidas no âmbito da jurisdição federal, sem que tivessem redundado em qualquer tipo de repreensão pelos diversos órgãos de controle interno e externo, mudavam o cenário, justificando o passo até então estigmatizado. O questionamento à eficácia dos órgãos de controle externo ficaria ainda mais evidente com as propostas de instalação de duas novas CPIs destinadas a investigar o Judiciário, a Vaza-Jato e a Lava-Toga. Além disso, em setembro de 2019, dois conselheiros do CNMP não tiveram a recondução de seus mandatos referendada pelo Senado. A Câmara, por sua vez, introduziu no projeto “Anticrime” do Ministro Sérgio Moro a criação da figura do juiz das garantias, como que reconhecendo, implicitamente, terem havido conluios em relações entre julgadores e as partes.  

NOTAS:

[1] Oltramari, Alexandre. Dudu, Lulu e Lalau. Veja, v.32, n.24, p.44-46, jun. 1999.

[2] PEREIRA, Eduardo Jorge Caldeira. Combatendo uma sombra. In: ROSA, Mário. (Org.). A Era do escândalo. Lições, relatos e bastidores de quem viveu as grandes crises de imagem. São Paulo: Geração Editorial, 2007.

[3] AXT, Gunter. Memória do CNMP. Relatos de 12 anos de história. Brasília: CNMP, 2017

[4] Senadores questionam Eduardo Jorge por oito horas. Jornal do Senado, 4 de agosto de 2000.

[5] Crise no Congresso. O Estado de São Paulo, 4 de maio de 2001.

[6] FREITAS, Silvana de. Brindeiro critica destruição de fitas. Folha de São Paulo, 2 de março de 2001; GRABOIS, Ana Paula. Procurador Luiz Francisco é denunciado por quebra de sigilo em fitas da “Isto é”. Folha de São Paulo, 2 de agosto de 2001.

Gunter Axt

Gunter Axt é historiador e doutor em História Social pela USP. Foi professor visitante na Université Denis Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine.