História

A História como presente: 1968 acabou, 1988 não

por Vinícius Müller

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É comum que tomemos nossa experiência histórica a partir de ascensão e queda de períodos, épocas ou eras. Foi assim com a Primeira República, com a Era Vargas e com a Ditadura Militar. Nesta gangorra é esperada a identificação de momentos crucias e sintéticos, que descortinem as grandes características de sua época, como foram as Greves de 1917 e o ano de 1922 para a Primeira República ou 1968 e as Diretas Já! para a Ditadura Militar.

Contudo, embora seja justificável o uso destes eventos como revelação do ‘espírito’ de certa época, muitas vezes os congelamos como parâmetros que, em tese, viabilizariam qualquer entendimento que podemos ter sobre a História e sobre o presente. Ou seja, mesmo que usemos, por exemplo, o ano de 1968 como uma síntese de sua época, usá-lo como parâmetro para qualquer análise que fazemos sobre conjunturas que carreguem alguma possibilidade de analogia com a Ditadura Militar mais embaça do que ilumina nossa capacidade de entendimento. E, no final, pouco contribui para aquilo que seria positivo; ou seja, a lembrança que nos avisa sobre os perigos, traições e males da História. Ao contrário, estimula ainda mais que transformemos tais eventos em categorias analíticas que, ao serem usadas, nos dão certo verniz ou um selo de idoneidade e inteligência. Assim, em qualquer momento que pareça carregar alguma semelhança, mesmo que distante, com a década de 60, o certo, o justo e o sinal de inteligência passam a ser representados pelo uso do ‘ano que não terminou’ como categoria analítica. Como se a todo tempo estivéssemos à beira de um novo AI-5. Não estamos.

Assim, a História passa a ser o espaço no qual se define quem entra no panteão ou não. Se você for capaz de perceber o quão perto estamos de um golpe que instalará uma nova ditadura militar ou concorde que estamos na antessala de um novo AI-5, terá um lugar assegurado no céu. Mas, se enxerga outros problemas, se usa outros parâmetros e, mais grave, aponta para outros eventos como passíveis de se transformarem em parâmetros, certamente ficará do lado de fora do paraíso.

Em termos mais objetivos, não se deve falar que vivemos a crise do pacto da redemocratização, simbolizado pela Carta de 1988; e sim, que a democracia está em risco, assim como em 1964-68.  Não se deve falar que a Nova República foi muito mais forjada durante o governo de José Sarney do que pelas Diretas Já!, que a globalização não era o imperialismo dos EUA, e nem que a inserção brasileira foi pífia. Muito menos que os segmentos que melhor responderam foram o financeiro e o agronegócio. Que não há bem estar social sem produtividade, e nem que a nossa está estagnada desde então — mesmo com a ampliação da escolaridade nas últimas décadas.  Não podemos falar que a concentração regional de riqueza não será resolvida com políticas criadas nos anos 50, e que por sinal, não foram bem sucedidas.  Que a ampliação do mercado de ideias, potencializada pela revolução tecnológica, acabou com o monopólio da ‘virtude e da sapiência’. E que a riqueza — e, com ela, a influência política e cultural — segue caminhos diferentes daqueles que estão nos poderes tradicionais, como universidades, partidos políticos e grande mídia das principais cidades.

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José Sarney com Pelé e Ronald Reagan em cerimônia na Casa Branca, 1986

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Às manifestações de 2013, a esquerda respondeu com indignação de shopping center, o mercado com o medo covarde de sempre e a política com desdém elitista. À eleição de Bolsonaro, responde-se com os gritos anacrônicos de fascista (!) e torcemos para que ele nos jogue em um novo 1968. Afinal, achamos que a História nos absolverá.  Mas, ao que tudo indica, ele não nos jogará. Por isso a retórica do ‘golpe por dentro’ vira a única saída. E o próprio governo Bolsonaro, em sua aparentemente errática e certamente agressiva atuação, responde com as mais tradicionais práticas clientelistas e fisiológicas. A questão é que elas não são novas — o que significa que para muitos são indiferentes ou formam as ‘regras do jogo’ que, inclusive, foram potencializadas pela mesma Nova República que tantos fingem, agora, querer salvar.

Não vivemos uma crise da democracia per se. Até porque as teses sobre a violência enrustida do brasileiro ou da incompatibilidade com a democracia são tão frágeis quanto podem ser.  Vivemos, sim, uma crise do pacto da redemocratização anunciado pela Constituição de 1988. Muito mais porque não admitimos que este pacto, embora democrático, não se instalou a partir de elementos dinâmicos o suficiente para se ajustarem às mudanças das últimas décadas. E elas são muitas.

Continuamos pensando que Bolsonaro é o agente, mas ele é o resultado. Estes problemas não são novos. Foi assim depois de 1917 e durante a década de 1920. O resultado foi o governo de Artur Bernardes — o pior que já tivemos —, o golpe de 30 e a ditadura varguista. Foi assim nos anos 60, com Jânio e Jango, cujo resultado foi o golpe de 1964 e a ditadura militar. Mas também aconteceu com a queda de Vargas em 1945, com a garantia de posse de JK em 1956, com a posse de Sarney em 1985 e com o Impeachment de Collor e Dilma. Nos próximos momentos, escolheremos como vamos responder a esta crise: se Bolsonaro ‘esticará o elástico’ que nos mantém presos à Nova República até romper; se a ruptura é inevitável ou se o ‘elástico’ voltará. Neste caso, com qual velocidade ele voltará.  Se muito veloz, estaremos, por analogia, mais perto de 1930 e 1964. Se menos, mais perto de 1956 e de 1992.

Mas, urgentemente, precisamos mudar nossos parâmetros. Pois se Bolsonaro representa, para muitos, o que de pior existe nesta crise da Nova República, como isso vai terminar depende tanto do que faremos quanto de como entendemos o que estamos vivendo. Ou seja, apostar no embate entre democracia e ditadura é uma possibilidade. Mas não a única e nem a mais adequada.  A outra, melhor, é apostar que a crise da Nova República, cuja culpa recai sobre todos nós, se bem entendida pode fazer com que controlemos a velocidade de ‘volta do elástico’. É neste ponto que um novo pacto será feito. E ele não será só mais realista, como também será melhor.

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Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, 1978

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Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.