Filosofia

O fenômeno da ignorância moral

por Denis Coitinho

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No contexto das manifestações antirracistas ocorridas ao redor do mundo após ao assassinato de George Floyd, ocorrido nos EUA em 25 de maio de 2020, muitas figuras históricas emblemáticas passaram a ser questionadas. Em 7 de junho, manifestantes em Bristol (Reino Unido) derrubaram a estátua de Edward Colston (1636-1721), um comerciante e político local que fez fortuna com o tráfico de africanos para realizar trabalho escravo nas Américas, tendo sido sócio da Royal African Company. Após a derrubada, a estátua foi jogada no rio Avon. No dia seguinte, manifestantes picharam a frase “was a racist” (“era um racista”) na estátua de Winston Churchill (1874-1965), localizada na Parliament Square, em Londres. Embora considerado um herói nacional pela luta intransigente contra Hitler e o sistema nazista na Segunda Guerra Mundial, o ex-primeiro ministro é apontado por muitos como um defensor da supremacia branca, uma vez que ele foi um importante articulador e apoiador do imperialismo britânico. Em 9 de junho, a estátua do rei Leopoldo II (1835-1909), figura ligada ao passado colonial belga, foi retirada de uma praça pública em Antuérpia (Bélgica) após ter sido vandalizada na semana anterior. Ele é acusado de ter exterminado cerca de 10 milhões de congoleses nativos. Em Lisboa (Portugal), em 11 de junho, nem mesmo o monumento ao Padre António Vieira (1608-1697) escapou da reprovação dos manifestantes. A estátua do missionário jesuíta, representado segurando uma cruz e cercado por três crianças indígenas, foi pichada com a frase “descoloniza”. Embora seja reconhecido como um defensor dos direitos dos indígenas, é acusado de ter sido condescendente com a escravidão seletiva dos povos africanos.

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(Reprodução: Reuters/Dylan Martinez/File Photo)

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O que todas estas manifestações e outras semelhantes tiveram em comum foi um questionamento e combate ao “racismo sistêmico”, uma vez que estas figuras históricas remontam a um tempo em que o racismo era naturalizado e institucionalizado, mas que ofende fortemente a geração atual. Por mais que eu concorde que o racismo é uma das principais chagas de nossas sociedades contemporâneas e que deve ser combatido e erradicado, uma vez que ele é um erro, da mesma forma que concordo que a história está sempre aberta para revisão, queria refletir sobre um fenômeno que parece estar relacionado com estes episódios, a saber, a ignorância moral. E isto é importante porque, em geral, censuramos as pessoas que agem erradamente quando elas são responsáveis pelo ato cometido, isto é, quando estão no controle da ação. E ter defendido a escravidão dos povos africanos, ter comercializado escravos, ter cometido atos genocidas ou mesmo ter pensado que os povos africanos eram primitivos é certamente errado. Agora, a censura seria legítima se considerarmos que o agente não sabia que tal fato era errado, isto é, se ele ignorava que “a escravidão é injusta” ou que “os negros são iguais aos brancos”, por exemplo? Em outras palavras, qual é a legitimidade da censura quando um agente sabe o que está fazendo, mas não sabe que tal coisa é errada? Não seria uma situação em que a desculpa ou até mesmo o perdão seriam mais adequados?

Note-se que, de forma geral, a ignorância de certos fatos é facilmente desculpada. Não saber que a fórmula molecular da água é H20 ou que a capital da República do Congo é Brazaville pode ser facilmente desculpado pelos agentes de uma dada comunidade. Mesmo quando nos deslocamos ao âmbito moral, parece que a ignorância de certos fatos desculpa o agente do ato errado cometido. Por exemplo, não censuramos Édipo pelo incesto uma vez que ele ignorava que Jocasta era sua mãe. Nem o censuramos por parricídio dado que ele ignorava que Laio era seu verdadeiro pai. Seria o caso de censura se ele ignorasse que tanto o incesto como o parricídio são errados. Nesse caso, a censura pareceria legítima uma vez que exigimos dos membros da comunidade o conhecimento das normas morais essenciais para a convivência harmônica do grupo, tal como saber que todos seres humanos têm direitos iguais e que atos cruéis são errados, até mesmo os cometidos contra animais não-humanos, para exemplificar. Mas, e no caso dos agentes que ignoravam que a escravidão é injusta e que todos seres humanos são iguais? Aqui seria um caso apropriado de censura ou a desculpa seria imperativa?

Antes de procurar responder a esta questão, deixem-me explicitar e definir inicialmente a ignorância neste campo ético, bem como mapear minimamente as diversas posições sobre a questão.

A ignorância moral é um feno?meno que ocorre quando um dado agente comete um certo ato errado do qual ele e? responsa?vel, sendo um alvo apropriado de censura, estando no controle da ac?a?o — isto e?, ele sabe o que esta? fazendo, mas na?o sabe que tal coisa e? errada, desconhecendo certos fatos ou normas que envolvem o ato, o que pode anular a censura atribui?da a ele. Imaginemos um caso de furto. O agente apenas seria responsável moralmente pelo ato se ele estiver no controle da ação, por exemplo, se ele não sofrer de uma compulsão para furtar, como a cleptomania, que o impediria de deliberar de forma apropriada, sendo claramente uma condição para a desculpa ou, no mínimo, para atenuação da censura. Em casos assim e similares, nem mesmo o conhecimento de que “furtar é errado” seria suficiente para impedir a realização do malfeito. Agora, se o agente tivesse deliberado apropriadamente, estando no controle da ação e isso significando não estar determinado por alguma compulsão, mas não soubesse que “furtar é errado”, a desculpa ainda seria apropriada? Isso depende. Imaginem que esta pessoa tenha sofrido um acidente e batido a cabeça e, em razão do acidente, tivesse esquecido todas as normas morais que um cidadão adulto de uma sociedade democrática deve conhecer, tais como saber que roubar é errado, bem como que é errado matar, estuprar etc. Num caso como este, creio que não teríamos nenhuma dificuldade em desculpar o ato, uma vez que a ação errada estaria fundamentada por uma ignorância do qual o agente não seria culpado. A ignorância em tela significaria uma ausência de considerações sobre a correção ou erro do ato de pegar uma coisa que não lhe pertence. Seria bem diferente em uma situação em que a ignorância de que “furtar é errado” representasse um certo descaso do agente para com as suas obrigações comuns.

Dito isto, é importante mencionar que muitos defendem que toda ignorância moral é sempre censurável; outros, alternativamente, que ela é sempre desculpável. Elizabeth Harman, por exemplo, em Does Moral Ignorance Exculpate?”, diz que somos obrigados a acreditar em verdades morais relevantes para nossas ações, o que implica considerar que a ignorância moral é sempre censurável pela falha em identificar essas obrigações morais, mesmo que o agente não seja culpado de gerir mau suas crenças (2011, p. 459-460). Já Michael Zimmerman, por outro lado, diz, em Moral Responsibility and Ignorance”, que a ignorância moral é sempre desculpável em razão do agente apenas ser indiretamente responsável por ela, uma vez que nunca se está no controle direto do que se ignora (1997, p. 415-416). Outros, ainda, como Carolina Sartório, em Ignorance, Alternative Possibilities, and the Epistemic Conditions for Responsibility, defendem uma posição intermediária, em que a condição de censurabilidade estaria no reconhecimento de que o agente estaria agindo a partir de razões reprováveis moralmente, estando ciente que as razões que o motivam não são aceitáveis sobre parâmetros morais gerais assumidos pela comunidade (2017, p. 20-25). Concordando com Sartório, penso que esta posição intermediária seja mais promissora em razão de compreender a agência humana de maneira mais factível, reconhecendo os limites para saber o certo e errado, sejam os limites da própria racionalidade, vide os vieses cognitivos de confirmação e conservadorismo, sejam os limites das circunstâncias históricas e familiares em que o agente é formado. Por exemplo, alguém que foi formado num contexto social sexista e com descaso pelo animais não-humanos seria verdadeiramente responsável por sua ignorância da igualdade entre os gêneros e da importância em levar em conta o interesse de todos? Não parece ser o caso e isto porque o conhecimento tem um caráter claramente social antes que individual, especialmente o conhecimento moral.

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Carolina Sartório

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De posse das características e definição inicial do fenômeno, bem como de um breve mapeamento das posições, retomemos nossa questão anteriormente formulada, isto é, a de saber se a ignorância dos personagens questionados de que a escravidão é injusta e de que todos os seres humanos são iguais poderia ser desculpada ou se ela seria apropriadamente censurada? Iniciemos com Edward Colston e António Vieira. Ambos foram homens criados no século XVII. Nesse período a escravidão era uma instituição legal e não era problematizada de um ponto de vista moral. Além da escravidão ter sido uma instituição constante na história da humanidade, existindo desde a idade antiga, na modernidade, com o processo de colonização dos países europeus, ela passou a ser utilizada em larga escala, sobretudo como força de trabalho predominante nas colônias. No Brasil, por exemplo, essa instituição injusta existiu por três séculos e escravizou mais ou menos 5 milhões de africanos e foi a base de nossa economia colonial.

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“Passatempos depois do jantar”, Jean-Baptiste Debret, c. 1830

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Nesse período e ainda no século XVIII, a maior parte das evidências factuais, argumentos acadêmicos e testemunhos até mesmo religiosos eram todos favoráveis à escravidão ou hegemonicamente favoráveis, sem uma compreensão adequada do significado moral desta instituição. Parece que nem mesmo os filósofos identificaram facilmente a sua injustiça. Como nos narra Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão, até mesmo os filósofos iluministas sustentaram a ideia de que o negro seria naturalmente inferior ao branco, a saber, David Hume, Immanuel Kant, Voltaire e Hegel, entre outros (2019, p. 75-76). Também nos diz que, inclusive John Locke, pensador liberal e humanista, foi acionista da Royal African Company, companhia privada britânica responsável pelo tráfico de escravos (2019, p. 238). Se nem os filósofos conseguiram identificar as razões morais que teriam exigido a abolição da escravatura, parece equivocado exigir um tipo de compreensão moral dos cidadãos que transcenda seu tempo e cultura. O ponto que quero chamar atenção aqui é que os agentes que escravizaram ou que fizeram uso do trabalho escravo a partir de sua ignorância de que “a escravidão é injusta” parecem ter sido ignorantes de sua própria ignorância e isto por terem tido uma má sorte circunstancial ao terem nascido em um período histórico que não problematizou moralmente  a instituição em tela.

Seria bem diferente de defender a escravidão na segunda metade do século XIX. Nesse período, já havia o movimento abolicionista, obras literárias que mostravam a injustiça da escravidão, argumentos acadêmicos e testemunhos religiosos em favor da liberdade dos escravizados e mesmo argumentos econômicos favoráveis ao trabalho livre. Nesse contexto, ignorar a injustiça da escravidão parece passível de uma censura adequada e isso em razão da falha do agente em perceber a relevância moral do caso e identificar os valores comuns que estão em jogo. Não é sem razão que gera uma indignação ainda hoje ler os discursos dos seis senadores brasileiros que votaram contra a Lei Áurea em 1888, alegando que o fim da escravidão geraria o fim da propriedade, perturbação da paz e mesmo a miséria para os “libertos”. O discurso do Barão de Cotegipe é exemplar nesse sentido. Diz ele: “Tenho conhecimento das circunstâncias da nossa lavoura, especialmente das províncias de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, e afianço que a crise será medonha. A verdade é que há de haver uma perturbação enorme da paz durante anos”.

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João Maurício Wanderley, o Barrão de Cotegipe

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E como considerar o caso de Churchill e Leopoldo II? Seria a ignorância deles de que todos os homens são iguais passível de desculpa ou seu comprometimento com o imperialismo e colonialismo já seria suficiente para uma apropriada censura? É claro que aqui já estamos falando do final do século XIX e início do século XX. Mas, como anteriormente afirmado, penso que o contexto sócio-cultural era favorável a uma visão discriminatória em relação não só aos negros. Lembremos do sucesso das diversas teorias eugenistas que defendiam a ideia de uma raça superior, o que acabou gerando, inclusive, o holocausto, isto é, o assassinato de milhões de judeus no período da Segunda Guerra Mundial. Também, que tanto o colonialismo como o imperialismo eram práticas corriqueiras no contexto internacional.

É claro que tanto o racismo como o colonialismo e imperialismo são errados, não há dúvida. O que não é tão claro é compreender como temos esse conhecimento. Não o tínhamos consolidado até a segunda metade do século XX, é certo, o que parece nos apontar que o conhecimento moral não é individual, mas é um empreendimento coletivo e que se dá progressivamente. Veja que o próprio conceito “racismo” só surgiu recentemente. Assim, se olharmos a questão de um ponto de vista histórico, podemos compreender que fomos corrigindo as distorções em nosso raciocínio moral ao longo do tempo, o que trouxe por consequência uma maior inclusividade no círculo ético e uma eliminação das discriminações arbitrárias em nossas avaliações neste campo. E, assim, negros, mulheres, outros povos e até mesmo animais não-humanos passaram a ser incluídos na proteção moral. Não sendo este conhecimento uma propriedade do indivíduo, mas da coletividade, uma censura desenfreada apenas a certos personagens parece contraproducente e até mesmo um tanto injusta. No meu entender, melhor seria ter por foco a censura aos atos racistas que ocorrem no presente. Censurar os atos racistas, colonialistas e imperialistas ocorridos no passado pode dar a entender que o conhecimento do certo e errado é sempre óbvio. Mas, ao reconhecermos que não há nenhuma obviedade neste domínio, a desculpa ou até mesmo o perdão parecem atitudes reativas bem mais apropriadas.

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A clemência de Marco Aurélio, no Capitolini

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Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.