CiênciasO Concreto

Indisciplinar a disciplinaridade: o que são, afinal, as Ciências Comportamentais?

por Carlos Mauro

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Sabe aquela sensação de ler ou ouvir um conceito sendo utilizado com diferentes definições, nalguns casos opostas? Isso é aflitivo. Dá-nos uma sensação de impotência face à linguagem científica e filosófica. É como se houvesse uma barreira intransponível entre nós e o conhecimento. É chato. Por mais esforço que façamos parece que estamos sempre um passo atrás, sem saber em qual contexto devemos utilizar uma ou outra definição.

Isso não é necessariamente produto da nossa cabeça, de alguma confusão que façamos ou de uma leitura desatenta. Em grande medida, isso ocorre porque: (i) áreas do conhecimento diferentes fazem usos diferentes de termos iguais, sendo os conceitos de decisão, ação e comportamento exemplos disso — dependendo de onde estiver na Psicologia, Economia ou Filosofia, o significado poderá ser bastante diferente; (ii) somos ensinados a pensar de modo disciplinar e não conseguimos conceber um universo conceitual multidisciplinar — sentimo-nos desconfortáveis; (iii) nalgumas áreas do conhecimento existe uma significativa indisciplina conceitual — cuidar dos conceitos parece ser um preciosismo inútil; (iv) alguns professores e divulgadores da ciência desconhecem conceitos relevantes que estão fora de suas disciplinas e não conseguem ajudar o leitor a organizar conhecimento correlato.

Para aumentar ainda mais o grau de dificuldade desse quebra-cabeça, muitos conceitos científicos e filosóficos são expressos por palavras que também utilizamos no dia a dia — na linguagem de senso comum. São exemplos disso palavras como racionalidade, decisão, intenção, crença, desejo, preferência, egoísmo, altruísmo, força de vontade. Esses conceitos podem ter significados muito diferentes entre as ciências do comportamento, dentro da Filosofia e na linguagem de senso comum.

Por essa razão, alguns pesquisadores dedicam-se à análise conceitual sob recortes e métodos variados, dependendo do interesse e da produtividade nos debates social, histórico, teórico-paradigmático, filosófico e filosófico-experimental entre outros. Os estudos conceituais, apesar de relevantes, parecem ter deixado de interessar a uma parte significativa dos cientistas, infelizmente.

Apesar disso, não podemos acusá-los de negligência conceitual. Realizam seus estudos de modo rigoroso dentro de paradigmas, teorias e conjuntos conceituais bem estabelecidos em suas áreas mais estritas do conhecimento. Isso é importante e nesse contexto deve ser considerado uma importante qualidade. O trabalho dos cientistas, mesmo num universo disciplinar, tem sido fundamental para diminuir o sofrimento no mundo em muitos domínios e dimensões. Defender áreas científicas multidisciplinares não passa pela desqualificação de qualquer ciência que se mantenha profundamente disciplinar.

Para compreendermos de modo mais preciso a natureza das Ciências Comportamentais, é necessário estarmos atentos a dois pressupostos: (1º) a Ciência é menos disciplinar do que imaginamos, especificamente as Ciências Comportamentais; isso exige dos cientistas comportamentais, de seus leitores e aplicadores cultura metodológica e conceitual mais vasta, que vá para além da sua disciplina; (2º) o senso comum parece conceitualizar a Ciência como uma atividade eminentemente disciplinar, com foco em como explicamos os problemas através de disciplinas ao invés de em como resolvemos os problemas de modo multidisciplinar.

Desde cedo, somos estimulados a acreditar que existem fronteiras óbvias e visíveis entre ciências, que de fato não existem. Alimentamos uma visão irrealista, paroquial e de independência entre elas. É como se o mundo fosse efetivamente constituído por objetos, como, por exemplo, Química, Economia e Psicologia.

O que seriam concretamente os estritos, exclusivos e independentes constituintes químico, econômico e psicológico do mundo? A resposta parece fácil, mas é enganadora.

Pensamos intuitivamente que o mundo da Química restringe-se, por exemplo, às reações que ocorrem no mundo — quando coloco açúcar no café ou quando alguém toma um medicamento e melhora das dores de cabeça; pensamos que o mundo da Economia refere-se sobretudo à circulação do dinheiro, à poupança, à produção, aos gastos do governo e ao consumo; e que o mundo da Psicologia diz respeito, por exemplo, às emoções, aos traumas e aos conflitos familiares. Tudo assim, muito bem organizado, independente, em livros e estantes diferentes..

Essa simplificação tem mais sentido no senso comum e na linguagem de senso comum. Parece facilitar a compreensão das coisas e cumprir um papel didático. Entretanto, está fundada numa concepção sobre como explicamos o mundo através de disciplinas científicas supostamente independentes e exclusivas e não sobre como de fato o mundo e seus elementos parecem ser — não-disciplinares e interdependentes. Isso não seria tão problemático se não influenciasse profundamente o modo como alguns cientistas e a grande maioria dos tomadores de decisão nos setores público e privado enxergam suas próprias paróquias — suas áreas próximas de conhecimento, interesse e atuação — e agem de modo não colaborativo, muitas vezes em detrimento de outras áreas.

Essa forma de ver o mundo produz consequências sociais, comportamentais e cognitivas que atingem todos os agentes. Tem consequências na forma como damos sentido ao mundo, desenvolvemos políticas públicas, políticas organizacionais e, principalmente, como conceitualizamos, organizamos e operacionalizamos a Educação.

Não é uma crítica culpabilizante, tampouco condescendente. Pelo contrário, é necessário reconhecer que grandes esforços têm sido feitos para melhorar o mundo através das disciplinas científicas. Essa simplificação ajuda-nos a dar sentido às coisas. Entretanto, temos também de reconhecer que produz um conjunto relevante de efeitos e externalidades negativas, principalmente na Educação e na aplicação do conhecimento às políticas públicas ou às empresas.

Na Economia, por exemplo, a otimização da alocação dos recursos disponíveis é um desejo. Desde sempre, muitos esforços têm sido realizados para compreender fatores que levam à eficiência econômica, seja num país, mercado ou empresa. Historicamente, temos criado políticas públicas em nome desse construto. Algumas tiveram a capacidade de melhorar a vida das pessoas, mas outras causaram ou aprofundaram desigualdades sociais, produzindo consequências noutros domínios da vida. 

Criamos e/ou escolhemos construtos que serão relevantes para explicar o mundo e para dizer como ele deve ser. Desavisadamente, defendemos que a realidade é necessária e exclusivamente constituída por eles. Isso faz parte da atividade científica, sem dúvida. É esperado que seja feito, mas não de modo automático e ingênuo.

Isso não será um problema relevante se aceitarmos a limitação epistemológica e a natureza necessariamente normativa dessa atividade, que, por isso, deveria incorporar um debate moral sistemático e profundo. Para isso, o primeiro passo seria encarar de frente o problema e aceitar que o cientista social, mesmo quando constrói modelos com características explicativas está a realizar uma atividade normativa, dependente de concepções de mundo que têm valor moral e são avaliativas.….

O que vou dizer agora carece de mais e profundas explicações, que espero dar em outros artigos nesta coluna. Mesmo sabendo que poderá gerar algum desconforto, acredito ser produtivo abrir o debate, que, como sabem, é um dos objetivos dessa coluna. Quando pensamos em coisas como poupança, gastos do governo, investimento (privado), consumo, balanço de pagamentos, racionalidade etc., pensamos como se fossem coisas como árvores nativas, pedras naturais, fogo ou água. Os elementos econômicos são construtos que fomos passivamente aceitando como coisas naturais no mundo. Acabamos por acreditar que é necessariamente assim e que, assim, estamos restritos a fazer X ou Y porque assim é o mundo. Deixamos um conjunto alternativo de possibilidades de lado.

Se descobríssemos, por exemplo, que os agentes humanos não são racionais ou que não são tão racionais como imaginamos, faria alguma diferença? Se alterássemos a definição de racionalidade na Economia, algo mudaria? Podemos alterar o que “é” a racionalidade? Se podemos fazer isso, podemos provavelmente alterar as definições de outros construtos dessa natureza que tanto impacto têm sobre a vida das pessoas. Daí a necessidade de um debate moral sério e profundo. Os cientistas sociais e comportamentais precisam também ser filósofos morais.

A Filosofia teria um importante papel nesse processo: fornecer aos cientistas sociais e comportamentais um campo de debate moral claro, produtivo e dinâmico sobre os tais construtos e políticas derivadas. Porém, a Filosofia, especialmente a filosofia moral, tão cara ao nomeado pai da Economia, o filósofo Adam Smith, é claramente uma área considerada menor, pouco valorizada, que parece mais atrapalhar do que ajudar. De fato, atrapalha a ideia de concepções amorais[*] da realidade social e econômica, desejadas por muitos.

Monumento a Adam Smith, em Edimburgo

O que tudo isso ter a ver com as Ciências Comportamentais?

Primeiro, as Ciências Comportamentais constituem uma área necessariamente multidisciplinar, fundada num projeto que liga as ciências sociais a outras ciências do comportamento. Segundo, porque as Ciências Comportamentais colocam grandes esforços numa compreensão do comportamento humano não idealizado, isto é, não concebido maioritariamente de modo apriorístico. Os cientistas comportamentais saem efetivamente de suas poltronas para realizar experimentos comportamentais no campo e no laboratório que ajudam a estabelecer relações de causa e efeito, ao invés de aprioristicamente estabelecerem pressupostos comportamentais como, por exemplo, de que o comportamento humano é racional — consistente ao longo do tempo, com relações lógicas entre preferências, autointeressado, egoísta, maximizador. 

Somos agentes que, independentemente das concepções de racionalidade que utilizemos, formamos juízos e tomamos decisões fundamentadas através de mecanismos mais ou menos lógicos, mais ou menos conscientes, mais ou menos baseados em informações ou evidências relevantes. A utilização da expressão “mais ou menos” é intencional. Existem contextos, condições e circunstâncias que favorecem ou desfavorecem tais mecanismos. Como veremos em artigos seguintes, levamos em consideração, de modo não-consciente, fatores contextuais, muitas vezes irrelevantes ou não relacionados, que influenciam nossas decisões. 

Em sua dimensão mais aplicada, as Ciências Comportamentais colocam seus esforços na compreensão do agente real (não-idealizado), nas condições e características cognitivas e comportamentais que, de fato, se mostram relevantes nas decisões e comportamentos no dia a dia, e em encontrar as melhores políticas e intervenções para mudar comportamentos.

Há alguma disputa sobre o surgimento e desenvolvimento das ciências Comportamentais. Há também confusões sobre como tudo isso se liga à Economia Comportamental, Behavioral Insights e Nudging. Neste artigo não será possível desvendar todas as respostas, mas, aos poucos e ao longo dos artigos do Concreto, isso será feito.

O que são, afinal, as Ciências Comportamentais? Para responder, podemos começar por fazer um pequeno exercício. Vamos, para já, olhar de modo muito superficial e leve como as Ciências Comportamentais parecem ser conceitualizadas atualmente para, depois, aprofundarmos o debate histórico e conceitual.

A London School of Economics and Political Science, importante referência nas áreas das políticas públicas e da filosofia da economia, tem programas acadêmicos e de pesquisa voltados às Ciências Comportamentais. Utilizam o termo no singular Behavioral Science —  como veremos na sequência desse artigo, parece-me uma escolha de termo errada. Mesmo assim, podemos olhar para o que dizem, pois será bastante informativo. 

Num pequeno artigo publicado no LSE Behavioral Science Blog, são expostas diversas respostas da comunidade acadêmica à pergunta What is Behavioural Science at the LSE?. Essas respostas mostram uma diversidade significativa de opiniões.

Por exemplo, um professor do Departamento de Política Social, define Ciências Comportamentais como “[…] uma ciência interdisciplinar, de ‘mente aberta’, que procura entender como as pessoas se comportam. Ela fertiliza e aproxima idéias e métodos de uma variedade de campos e disciplinas — da economia experimental e economia comportamental à psicologia social e psicologia cognitiva, do julgamento e tomada de decisão ao marketing e comportamento do consumidor, da saúde e biologia à neurociência, da filosofia à pesquisa sobre felicidade e bem-estar.”

Por outro lado, uma professora do Departamento de Psicologia Social, inclui outras áreas e define assim as Ciências Comportamentais: “Para entender toda a extensão do comportamento humano, precisamos de uma perspectiva multidisciplinar que inclua conhecimentos da psicologia, antropologia cultural, sociologia, ciência política, política social e economia. A importância dessa perspectiva multidisciplinar pode ser demonstrada, por exemplo, quando se deseja entender a força das tendências em direção à inflação.”

Uma doutoranda no Departamento de Gestão, expõe uma visão mais simples, definindo as Ciências Comportamentais como “[…] um termo abrangente que inclui pesquisas e métodos de várias outras disciplinas. É a maneira mais prática de dizer ‘Vamos pegar um pouco de psicologia, alguma neurociência, um pouco de sociologia e economia comportamental e algumas outras disciplinas e misturar tudo’”.

Estas três definições permitem explorar algumas questões.

Primeiro, as três respostas referem o aspecto não-disciplinar das Ciências Comportamentais, expressando-o através dos termos “interdisciplinar”, “multidisciplinar” e da expressão “misturar tudo”. As implicações são relevantes. 

Se pensarmos em Ciência Comportamental (singular) como uma unidade, fará sentido utilizarmos principalmente o termo interdisciplinar. Se pensarmos em Ciências Comportamentais (plural) como um conjunto de áreas científicas que colaboram para produzir conhecimento sobre temas específicos e desenvolver soluções para problemas concretos, fará sentido referirmos principalmente o termo multidisciplinar. Entretanto, nada impede que existam sobreposições e intersecções entre atividades inter e multidisciplinares

A expressão “misturar tudo” preocupa-me. Acredito que a doutoranda da LSE utilizou essa expressão apenas como uma forma de simplificação didática. Porém, minha experiência diária mostra-me que algumas pessoas se referem às Ciências Comportamentais como uma mistura pop de áreas científicas. Vejo palestrantes, “especialistas”, “consultores”, entre outros agentes bem ou mal-intencionados, misturando conceitos, ideias e metodologias que não se misturam e que não são viáveis em conjunto.

O argumento de venda acaba por ser mais relevante que a boa-fé e a humildade científica. Não podemos, nem devemos em muitos momentos, julgar as pessoas por intenções que a elas atribuímos. Na maioria das vezes acredito, ou prefiro acreditar, que é ingenuidade ou ignorância. Por isso, a divulgação científica e o debate sobre a Ciências Comportamentais são importantes. É necessário educar, esclarecer e dar condições para que possamos principalmente compreender as limitações e identificar oportunidades de aplicação.

A segunda questão suscitada pelas respostas refere-se às áreas envolvidas. Os três respondentes indicaram conjuntos diferentes:  economia comportamental, economia experimental, psicologia social, psicologia cognitiva, julgamento e tomada de decisão, marketing, comportamento do consumidor, saúde, biologia, neurociência, filosofia, felicidade e bem-estar; psicologia (sem especificação), antropologia cultural, sociologia, ciência política, política social e neurociência.

Isso confunde a cabeça das pessoas. Por isso é preciso conversar, como fizemos no início desse artigo, sobre a multidisciplinaridade. As Ciências Comportamentais não devem constituir um conjunto “aleatório” ou pop de ciências e áreas de aplicação. O que move as Ciências Comportamentais em sua dimensão mais aplicada é o problema, o objeto de estudo, o desejo de melhorar a vida das pessoas através de mudanças comportamentais.  A defesa que farei, no próximo artigo, de uma concepção multidisciplinar e aplicada das Ciências Comportamentais deixará clara minha posição.

Este texto está grande e ainda faltam muitas questões. Por isso, decidi dividi-lo em duas partes. Temos já uma base sólida sobre a natureza multidisciplinar das Ciências Comportamentais. Esse era o objetivo dessa primeira parte. Na próxima, contarei o essencial da história das Ciências Comportamentais, desde os anos 20, algumas confusões conceituais passadas e presentes, e, finalmente, farei um exercício de definição. ……

Nota:

[*] Amoral não é igual a imoral. Sobre a impossibilidade do homem amoral, sugiro a leitura do capítulo 1, “O homem amoral”, de Bernard Williams (2005). Moral: uma introdução à Ética. Martins Fontes.

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Referências:

Kappes, Heather, “What is Behavioural Science at the LSE?”, LSE Blogs – Behavioral Science (May 24th, 2016). <https://blogs.lse.ac.uk/behaviouralscience/2016/05/24/what-is-behavioural-science-at-the-lse/>.

 Williams, Bernard (2005). Moral: uma introdução à Ética. Martins Fontes.

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Carlos Mauro

Carlos é brasileiro e mora desde 2004 na cidade do Porto, em Portugal. É Chief Scientific Officer da CLOO Behavioral Insights Unit e Professor Convidado da área de Administração Pública, na Fundação Getúlio Vargas (EAESP), e da Porto Business School (PBS), onde também é researcher in residence do Center for Business Innovation. É formado em Economia, mestre em Administração Pública e Governo, e doutor em Filosofia. Realizou em 2010 e 2011 o pós-doutoramento em Filosofia e em 2015 foi visiting scholar (faculty) na Wharton School, na Universidade da Pensilvânia, a convite da Professora Deborah Small. Em 2013, criou possivelmente o primeiro laboratório científico dedicado à Economia Comportamental numa universidade, num país de língua portuguesa. Publicou artigos científicos em revistas com fator de impacto, artigos de divulgação científica e livros sobre aspectos científicos e/ou filosóficos do comportamento humano, da formação de juízos, da racionalidade e da mudança comportamental.