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José Eduardo Faria: Vacina, ciência e democracia

por José Eduardo Faria

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(Reprodução: Reuters/Dado Ruvic/Estadão Conteúdo)

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Ao afirmar que a vacina contra a Covid-19 não é obrigatória e ao rejeitar num contexto de emergência vacinas chinesas, por razões políticas e ideológicas, o presidente da República mais uma vez mostrou o tamanho da simbiose entre ignorância e arrogância que sempre o caracterizou. Com a rejeição à obrigatoriedade da vacina e a aversão à “vacina chinesa”, contudo, ele conseguiu, paradoxalmente, chamar a atenção para a importância do saber científico, para a necessidade de instituições políticas mais sólidas e para o desafio de melhorar perante a comunidade internacional a combalida imagem de um país cujo dirigente máximo vê o mundo da altura do rodapé, mente compulsivamente e é apoiado por protofascistas e políticos que escondem dinheiro na cueca.

Medidas de saúde pública — como a obrigatoriedade da vacina contra a pandemia — podem ser impopulares, como já se viu no Brasil nos tempos de Oswaldo Cruz e da gripe espanhola, é certo. Contudo, têm fundamento científico e seu objetivo é preservar a saúde da comunidade. Por isso, quando um cidadão se recusa a ser vacinado, ele não está se valendo de um direito fundamental e da liberdade de escolha, como o presidente tem afirmado. Está, isto sim, manifestando sua incapacidade de viver em comunidade, de entender a saúde pública como um bem coletivo e de compreender que, na democracia, não há direitos absolutos.

Respeito ao contrato social, reconhecimento do outro e sentido de solidariedade são valores fundamentais para quem vive numa comunidade — e só não sabem disso os egoístas, os ególatras e os defensores do darwinismo social. Com a negação da ciência e o desprezo pelos cientistas, quem os ignorantes de todo gênero imaginam ser os mais aptos a assegurar a imunização da população — algum líder religioso avesso à ciência ou um ministro-general que comanda o sistema nacional de saúde que ele mesmo declara desconhecer?

Como lembra Daniel Innerarity, o avanço da ciência não torna a política desnecessária, uma vez que o desenvolvimento científico sempre resulta em novas exigências normativas e em novos padrões de regulação. Assim, os critérios para decidir sobre a qualidade e a relevância do saber científico não são definidos exclusivamente pela ciência. São definidos, também, pelos contextos em que esse saber é aplicado, com suas lógicas sociais, políticas e econômicas. Por isso, a produção, a difusão e a aplicação do saber científico pressupõem obrigações de legitimação, em virtude das quais ele acaba se convertendo numa questão política.

Também por isso, o aumento do saber científico nem sempre leva ao fortalecimento do consenso. Pelo contrário, muitas vezes aumenta o dissenso, municiando-o com novos argumentos. A história aponta inúmeros casos em que as decisões políticas não são necessariamente impostas e justificadas de modo racional e consensual, mas por meio de divergências profundas. O fato é que toda inovação cientifica encerra riscos, motivo pelo qual, quando uma sociedade tem de decidir se quer se expor a esses riscos, esta acaba sendo uma decisão política.

Na democracia, as sociedades são obrigadas a debater o que se sabe, o que não se sabe e também formas incompletas de saber, com base nas quais serão tomadas as decisões coletivas. O desafio que elas têm de enfrentar é aprender a administrar incertezas que nunca podem ser inteiramente afastadas e convertidas em riscos calculáveis. No mundo contemporâneo, as sociedades precisam aprofundar não apenas a competência para solucionar problemas identificados, mas, igualmente, necessitam aprender a reagir com sensatez e prudência ao inesperado.

É importante lembrar, ainda, um dado óbvio: a democracia não é um governo de cientistas, mas de parlamentares e dirigentes governamentais eleitos pelo voto direito e que precisam articular apoio e construir consensos, para aprovar leis e políticas públicas. Dos eleitos não se exige formação técnica nem conhecimento científico. Mas, independentemente de seu preparo ou despreparo, numa sociedade plural, marcada pela diversidade de atores e interlocutores políticos e de níveis de governo, eles têm de ter responsabilidade, prudência e sensatez. Têm de saber negociar e ter a consciência de que, quanto mais complexo é o problema que têm de gerir e mais difícil é a decisão que têm de tomar, mais precisarão de estratégias.

Para que possam escolhê-las, necessitam de assessorias competentes, capazes de apresentar alternativas com a devida fundamentação técnica e com a avaliação das consequências, dos riscos e das oportunidades de sucesso de cada uma delas. Além disso, é preciso dispor de um aparato administrativo qualificado e bem organizado para implementar e executar as decisões tomadas — sejam quais forem.

Por fim, num período de pandemia, que, como a própria palavra denota, ultrapassa os limites tradicionais da jurisdição dos Estados nacionais, tornam-se imperiosas a inteligência coletiva e uma articulação eficiente no plano internacional. E isso exige não apenas atitudes cooperativas, mas confiança entre os países — um ativo altamente valioso em dias de incertezas e medo.

Como o saber científico nem sempre é eficiente frente a situações complexas e voláteis, o compartilhamento de informações é o principal fator de unidade de um mundo em que todos estão ameaçados. Igualmente, como as respostas da ciência ao vírus podem ter efeitos que os próprios cientistas não conhecem, isso também implica experimentação e inovação compartilhadas.

Transformar informação em conhecimento, tentar antecipar riscos, administrar a ignorância e articular diferentes lógicas de diferentes sistemas — político, econômico, social, científico, médico ou ambiental — com códigos próprios, que se relacionam por meio de influências recíprocas, converte-se, assim, num desafio de alcance transterritorial. É nesse momento, portanto, que a gestão governamental perde a exclusividade de seu enquadramento nos marcos político-jurídicos do Estado-nação, estendendo-se para contextos globais.

Dada a necessidade de garantir a provisão de bens comuns, a capacidade de gestão dos Estados nacionais tende a ficar mais sujeita a dependências internacionais, à difusão do poder numa arquitetura política multinível e à expansão da capacidade regulatória de organismos multilaterais — como é o caso da Organização Mundial de Saúde. A imagem externa de cada país torna-se, então, fundamental.

Nesse sentido, que confiança a comunidade internacional pode ter em países cujos governantes são políticos populistas que negam a ciência e confundem o relacionamento institucional entre Estados com afinidades ideológicas entre eventuais governantes? A resposta é óbvia. Governantes preparados sabem a importância do chamado soft power, ou seja, a habilidade de um governo para influenciar indiretamente os interesses de governos de outros países por meios que vão da autoridade amealhada pela sensatez dos argumentos à reputação, da qualidade do fluxo de informações à composição das agendas, do respeito ao que é pactuado sob a forma de  convênios e convenções à afirmação de valores culturais. Esses meios incluem atos e iniciativas capazes de conquistar a opinião pública global por sua sensatez, articulação e novidade.

Governantes que caminham nessa linha são ouvidos e seus interesses e propostas são analisados com seriedade. Já os países cujos governantes são populistas, demagogos e bufões, primando pelo cinismo e por falsas espertezas, são convertidos em párias na comunidade internacional. Não têm respeitabilidade nem influência. São irresponsáveis e inconsequentes. São voluntaristas e insensatos. São comandantes que, por não saber a que porto querem dirigir a nação, nenhum vento lhes será favorável.

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‘De triomf van de Doods’, Pieter Bruegel, o Velho, c. 1562

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José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).