FilosofiaHistória

Johan Huizinga e a consciência da História (2)

por Fabrício Tavares de Moraes

Em sua obra Raízes da Cultura Ocidental, o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, analisando o cenário espiritual e cultural da Europa pós-guerra e propondo as bases para um novo e possível direcionamento intelectual do continente, enfatizou que seu conterrâneo Johan Huizinga havia percebido a complexidade do fenômeno do nacional-socialismo, que não se resumia e esquivava-se à toda tentativa de apreendê-lo a partir dos espectros políticos da direita ou da esquerda.

Também no tocante a essa questão, o historiador notara que o fervor historicista – o esforço de elevação da história ao mito – constituíra-se como uma das principais bases para os totalitarismos da época.

Dooyeweerd de igual modo assinalou que o nazismo fora uma espécie de ressurreição do mito do “sangue e solo” impulsionado por essa dinâmica reducionista em direção, ou mais precisamente numa regressão a uma sociedade compacta – um retorno efetivo ao tribalismo. E em seguida, o filósofo afirma que a primeira exposição dessa hipótese se faz presente na obra de Huizinga que analisávamos anteriormente, Nas Sombras do Amanhã. Nas palavras de Dooyeweerd:

Uma marca típica do espírito historicista da época é a crença de que a distinção entre direções conservadoras e progressistas da História possa substituir a síntese religiosa como linha de demarcação para os partidos políticos. Essa sugestão, feita pela primeira vez nesse contexto pelo historiador Johan Huizinga, ganhou amplo apoio, sobretudo no Movimento Nacional Holandês. É sintomático do espírito da nossa era que essa distinção tenha origem no aspecto histórico da própria realidade, pois o ponto de vista de que a demarcação entre princípios e metas pode ser feita sobre a base desse critério histórico é plausível apenas quando se absolutiza o aspecto histórico. De fato, se Nietzsche dizia que o homem europeu encontra-se “doente de história”, não é menos verdade que não só a Europa, mas todo o Ocidente, morbidamente buscou no mito tanto o diagnóstico quanto a cura de sua enfermidade.

Desse modo, além do já citado substrato mítico do “sangue e solo”, o nazismo, por exemplo, moveu-se sob o estandarte do Schicksal des deustschen Volkes, o “destino do povo alemão”, uma espécie de Providência secularizada; o fascismo, por sua vez, retomou os ideais aristocráticos da Antiguidade romana, num novo esforço de ressurreição do império. E, por fim, não menos célebre é o “titanismo” manifesto na citação truncada de um verso de Sófocles na epígrafe da tese de doutoramento de Marx, mais especificamente o clamor de Prometeu: “odeio todos os deuses”.

À vista disso, a atual discussão – um tanto viciada e circular – que contrapõe a cultura e a política termina se enquadrando (e, portanto, trancafiando-se) no mesmo historicismo que mostrou-se cego para as transformações da Europa até meados do século XX.

Em outras palavras, embora seja ponto indiscutível que a cultura precede e direciona as perspectivas políticas, é certo, no entanto, que ambas não são princípios em si mesmas. Há sempre, anterior a isso, um substrato mítico, sacro ou religioso, o que os idealistas alemães chamavam de Weltanschauung e que talvez acertadamente traduzimos como “cosmovisão”.

Por exemplo, não é possível qualquer análise de cultura que também não leve em conta, como contraposição, uma impressão ou sentimento acerca da natureza. Se por “natural” entendemos apenas um depósito de material bruto ou um conjunto de relações e entes esquivos ao domínio do homem, logo a noção de cultura, refletindo esses valores, pautar-se-á respectivamente na efetividade e no controle e previsão absoluto sobre os fenômenos, incluindo os sociais.

Para Huizinga, no entanto, “a cultura é certa disposição presente em uma comunidade quando, pelo domínio sobre a natureza nos âmbitos material, moral e espiritual, mantém-se um estado mais alto e melhor do que o proporcionado pelas condições naturais, estado este marcado pelo equilíbrio harmônico entre valores materiais e espirituais, bem como por determinado ideal essencialmente homogêneo, para ao qual convergem as diversas ações da comunidade”.

Curiosamente, porém, raras vezes damo-nos conta de que o domínio sobre a natureza não é concomitante ao domínio sobre a natureza humana – e disto segue-se que ou não temos efetivo controle sobre os fenômenos, ou que o homem, a despeito das doutrinas fisicalistas, ainda é um ente parcialmente deslocado da pura organicidade e da factualidade bruta.

E mais uma vez Huizinga questiona: “Mas e quanto ao domínio sobre a natureza humana? Não se trata dos triunfos da psiquiatria e da assistência social, nem do combate ao crime. Domínio sobre a natureza só pode significar uma humanidade que, no plano individual, domina a si mesma. Será que o faz? Ou ao menos, visto que a perfeição não lhe é concedida, será que o faz proporcionalmente ao seu espantoso domínio sobre a natureza material?”

Evidentemente, a perda dessa relação (ou nível de interação) entre a cultura e a natureza culmina nos sérios paradoxos que moldam até os dias de hoje grande parte dos comportamentos tanto dos indivíduos quanto das massas. Desse modo, num dos melhores capítulos da obra, intitulado “O Estado lobo do Estado?”, Huizinga analisa a questão de como o Estado tornou-se, em essência, um agente amoral devido paradoxalmente a suas finalidades “morais”.

Nas palavras de Huizinga, “o Estado não pode submeter-se às normas da convivência humana. Qualquer tentativa de chamá-lo ao pronunciamento de um juízo moral esbarra na autonomia do Estado. Este está fora de toda moral. – Também acima de toda moral? O Estado, desse modo, só pode ser julgado de acordo com seu sucesso enquanto guardião do poder”. Nada diferente de quaisquer tentativas contemporâneas de justificação da corrupção por meio das estatísticas do êxito de políticas do bem-estar social.

A ironia detectada por Huizinga é justamente a transformação do Estado de, num primeiro momento, instância de salvaguarda dos direitos inalienáveis de liberdade, propriedade e vida para um domínio que age predatoriamente em relação aos outros Estados. Ademais, é curioso que o Estado moderno, burocrático e científico, tenha sido inicialmente projetado pelos ideais iluministas como uma máquina ou ferramenta para a ordenação das forças sociais (tal como a ciência iluminista era vista como a técnica de ordenação das forças naturais), mas eventualmente se tornou a fonte última de moralidade, a despeito de sua suposta amoralidade intrínseca.

Consequentemente, “no horizonte da prepotência amoral do Estado, de novo veem-se as formas da anarquia e da revolução. A pretensão de que o Estado obriga os habitantes à lealdade e à obediência incondicionais limita-se não só com a consciência, mas também com o egoísmo da natureza humana. Quem decidirá em última instância qual o interesse do Estado e de que maneira deve ser imposto/aplicado será sempre um daqueles chamados líderes”.

Porém, “em predominando a divergência de opinião dentro da própria liderança, chegando a um grau de desunião tal que dois grupos julguem necessário sair em defesa dos respectivos pontos de vista, então é certo que o grupo mais forte ou resoluto dominará ou destruirá o segundo”.

Decerto essa tensão entre uma finalidade moral e um agente amoral caminha de mãos dadas com outro aspecto diagnosticado por Huizinga, nomeadamente, o puerilismo, “um estado de espírito que se poderia chamar de adolescência permanente”, que “caracteriza-se pela ausência das noções do adequado e do inadequado, a falta de dignidade pessoal, de respeito pelos demais ou por suas opiniões, bem como uma absorção excessiva pela própria personalidade”.

Além do “rebaixamento dos parâmetros críticos e a atrofia da faculdade judicante”, a própria técnica contribuiu para essa “revolta contra a maturidade” (R. Rushdoony), na medida em que o homem experimenta um mundo automático, de pronta e instantânea satisfação, que não raro oculta uma visão superficial dos intricados processos do mundo.

Talvez seja hoje inegável o fracasso de muitos dos princípios iluministas, mas Huizinga, sua obra e personalidade, é uma lição substancial de que a consciência moral, quando perpassada por princípios que a transcendem, adentra como facho nas noites deste mundo, que não são poucas.

Fabrício Tavares de Moraes

Fabrício Tavares de Moraes é Professor Adjunto da UFMA. É também tradutor e Doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London).