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Judaicização do pentecostalismo brasileiro

Demétrio Koch/Fotos Públicas

por Rodrigo Toniol

31 de Julho de 2014, bairro do Brás, São Paulo. Naquela quinta-feira, o bispo e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, conduziu o culto de inauguração do Templo de Salomão. O espaço tornou-se o centro de gravitação da cúpula da Igreja, substituiu sua antiga sede e se converteu na morada da família Macedo. Seu culto inaugural foi capaz de reunir, em um momento de crescente polarização política do país, a então presidenta Dilma Rousseff e seu vice Michel Temer, o governador do estado de São Paulo Geraldo Alckmin e o prefeito da capital paulista Fernando Haddad, além do ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal, a presidente do Superior Tribunal Militar, Elizabeth Teixeira Rocha e o diretor da Polícia Federal, Leandro Daiello Coimbra. A presença dessa comitiva política atesta a mudança do espaço ocupado pela Igreja Universal no espaço público brasileiro desde sua inauguração, em 1977. Do retrato midiático caricatural de uma seita carioca para o reconhecimento do impacto da igreja na demografia religiosa do país e na pauta dos debates nacionais.

O Templo de Salomão é um marco dessa nova etapa da vida pública da Igreja. Menos visível que o tema da política está o fato de que sua inauguração também marca uma espécie de reordenamento do horizonte teológico e simbólico de atuação da Universal. Um horizonte cuja síntese é o próprio Templo, um projeto capaz de criar um atalho na conexão entre a Universal e as profecias do velho testamento, entre a Igreja surgida em 1977 no Rio de Janeiro e a história do cristianismo, entre o Brasil e a Terra Prometida. O caminho desse atalho é um processo mais amplo de judaicização do pentecostalismo brasileiro, que certamente não é simples, mas que tem sido perseguido com afinco e protagonismo da Igreja Universal. Os efeitos dessa conexão não são nada triviais, já que abririam a possibilidade de dar um salto não apenas temporal, do tempo de Salomão para o tempo de Macedo, como também espacial, de Israel para o Brás, elaborando a história do cristianismo sem passar pela Europa, saltando o catolicismo.¹

É nesse processo que o Templo de Salomão é o ponto culminante de um trajeto já longo de adesão da Universal a símbolos que se conectam com o judaísmo. Nessa história, três eventos compõem o quadro. O primeiro é o ritual da Fogueira Santa de Israel, realizado semestralmente pela Igreja. Baseado “nos sacrifícios judaicos (korban)”, como descreve o próprio bispo Macedo, a fogueira santa ocupa centralidade na vida litúrgica das igrejas espalhadas pelo Brasil. O estímulo a doações e grandes sacrifícios é acompanhado pelo recebimento de pedidos, escritos em papéis, queimados e posteriormente levados até Israel. A forma dos pedidos e o destino final do material aproxima o ato devocional feito aqui daquele realizado diante do muro das lamentações. Como dizem os americanos It’s a long shot, mas parece que o alvo foi certeiro. Dois outros projetos associados à Universal ainda nos dão pistas dessa aproximação com o judaísmo. No final dos anos de 1990, o agora licenciado bispo Crivella atuou diretamente na criação da Fazenda Nova Canaã, localizada em Irecê, na Bahia. O projeto estava baseado no modelo dos Kibutz israelenses, transladando para o Brasil a utopia comunitária e as soluções tecnológicas de superação da falta de água. Ativo há mais de duas décadas, o projeto atende crianças e adolescentes em idade escolar e, de alguma maneira, antecipou uma tendência que depois se tornaria mais clara de reconhecimento do território de Israel como modelo societário a ser seguido. O terceiro evento foi a inauguração do Centro Cultural Jerusalém, no Rio de Janeiro, anexo à sede da Igreja Universal, em 2008. Uma maquete com 730 metros quadrados, baseada em trabalho arqueológico e que também marcou o início das tentativas da Igreja em reconstruir réplicas de locais sagrados de Jerusalém e também de constituir uma narrativa, apresentada na forma de vídeo, que aproxima a própria história da Universal das profecias do antigo testamento.

A construção do Templo de Salomão em proporções monumentais com material vindo diretamente de Israel inaugura uma nova etapa dessa conexão entre o pentecostalismo e o universo judaico. A indumentária dos pastores em alguns cultos realizados no templo, o uso de quipá pelo próprio Edir Macedo e a centralidade de ícones como a arca da aliança e menorás no interior do templo dimensionam essa conversão simbólica. Anexo ao templo também foi construído o Jardim Bíblico, um parque temático, em forma de museu, cuja visita guiada é conduzida por pastores vestidos como sacerdotes do antigo testamento, que instruem os visitantes sobre a travessia do deserto conduzida por Moisés, sobre os rituais de sacrifício e a construção e destruição do primeiro e do segundo templos de Salomão.

A transformação dos objetos de referência da Universal e de sua forma estética pode nos ajudar a pensar dois movimentos mais gerais de mudança de sua teologia nas últimas décadas. Fundada em uma espécie de sincretismo às avessas, que demonizava as práticas das religiões afro-brasileiras mas, ao mesmo tempo, precisava delas para afirmar suas qualidades de exorcismo religioso, a estratégia de relação com outras tradições religiosas parece ter se transformado: positiva-se o judaísmo para afirmar o lugar da própria Igreja em uma história de longa duração. A ampliação do repertório simbólico, neste caso, parece acompanhar a estratégia de expansão da Igreja. Afinal, se antes o território nacional era o espaço a ser evangelizado e, para isso, o contraponto com as religiões afro garantia a reverberação no caldo cultural brasileiro, conforme a Universal avançou noutros lugares — e atualmente está presente em mais de uma centena de países — essas referências perderam força. Conectar-se com o judaísmo é também um recurso para sua expansão, garantindo a comunicação a partir de outros referenciais e, ao mesmo tempo, se inscrevendo na história global do cristianismo. Não é sem razão que nos últimos anos a Igreja colocou para circular uma réplica da Arca da Aliança nos países em que tem sede. A chegada da arca da aliança nesses territórios é celebrada em um grande evento, emblemático dessa tentativa de reposicionar a história da Igreja em todos os cantos do mundo. O segundo movimento teológico mais geral é a opção pela reconstrução do Templo de Salomão, entre tantas outras possibilidades de referências teológicas. Foi a um rei, e não a um profeta, como bem poderia ser, considerando a centralidade dessas figuras no antigo testamento, que a Universal apelou. Optou-se pela referência a uma teologia política do domínio, uma teologia do templo, um projeto de territorialização do sagrado. Olhar com mais cuidado para Salomão nos dá indicações das reconfigurações do ativismo político evangélico. Na sua relação com a política, a Universal teve duas fases anteriores. A primeira, que pode ser resumida pelo jargão corrente até o início da década de 1980 “crentes não participam de política”, e a segunda, mais contemporânea, baseada no mote “irmão vota em irmão”. Agora, a política não somente é encarada como espaço de atuação cristã, mas é trazida para o interior do templo; mais do que isso, o templo, assim como fazia Salomão, é o ponto a partir do qual se pensa a política.

Ocorre que todo esse movimento impõe um conjunto de questões novas para a Universal. A relação protestante com objetos, como se sabe, não é simples, de modo que passamos a ter que nos perguntar: Como compatibilizar a recusa às imagens característica da tradição protestante, quando a forma de legitimação da Igreja na tradição cristã passa a ocorrer por meio da exposição de ícones, arquiteturas, imagens e símbolos? Se a adoração é interdita, a saída passa a ser produzir, a partir dos objetos, outras modalidades de estéticas. Meu entendimento aqui de estética não está restrito ao atual sentido comum que foi atribuído no fim do século XVIII (em grande parte graças a Immanuel Kant), quando se tornou limitada à beleza na esfera das artes. Alternativamente, sugiro retornarmos às suas raízes em Aristóteles e sua noção mais antiga e abrangente de aisthesis, que remete ao engajamento visceral do corpo no mundo. Aisthesis traduz a sensação arrebatadora de sentir o corpo ser capturado pelo mundo, como quando se está diante de uma obra de arte que imediatamente emociona ou quando um fiel se depara com um objeto de devoção e se prostra.

Estética ou aisthesis, portanto, remete à questão do engajamento.

E é aqui que nos deparamos com um questão chave para essa nova situação da Igreja Universal: Como produzir engajamento nesse amplo novo conjunto de objetos e continuar recusando a adoração? Como dar centralidade a esses objetos, ícones e arquiteturas sem fazer deles o endereço do sagrado?

Em uma das visitas que fiz ao Jardim da Bíblia, no Templo de Salomão, o pastor que nos guiava explicou que era proibido fotografar a arca da aliança: ”Não porque a gente adore esse objeto, mas em respeito ao objeto e à história”, como ele mesmo formulou. Sugiro que essa ambiguidade, do respeito sem adoração, da reverência sem sacralização, nos dá uma importante pista sobre a forma estética, isso é , que engaja, que a Universal tem produzido diante de seu novo repertório simbólico. Essa passagem sintetiza aqui meu argumento mais geral: o que está em jogo não são objetos de culto, mas objetos que permitem inscrever a Universal na história judaico-cristã e garantem a legitimidade desse vínculo. É assim, tendo que produzir novas formas de lidar com objetos, que o pentecostalismo tem se reinventado, recorrendo ao judaísmo, modificando sua estética e reordenando sua história.

Evitar o culto aos objetos e, ao mesmo tempo, reivindicar a cultura material cristã é a saída que parece garantir a reverência e afastar a devoção.

Essa história irá se complexificar ainda mais com o projeto anunciado pela Universal recentemente, a construção de um museu do holocausto, mas deixo o tema para outro momento.

Notas:

¹Parte dos argumentos aqui apresentados foram debatidos na ocasião de uma mesa redonda, organizada por Omar Thomaz Ribeiro, na Unicamp, que também teve a presença de meus colegas Ronaldo de Almeida e Michel Gherman.  

Rodrigo Toniol

Rodrigo Toniol é Professor de antropologia da UFRJ e Pesquisador do LAR/Unicamp.