Literatura

Júlio César e o nevoeiro da história

por José Francisco Botelho

No trigésimo-quarto Canto do Inferno, Dante e Virgílio descem ao nono e último círculo na morada dos condenados: região reservada a quem cometeu o pecado da traição. Se fumaça e ardor caracterizam outras regiões da “Cidade Dolente”, o horrível porão do inferno é frio como a ingratidão humana. Sob o chão cristalino, em poses agônicas, há réprobos congelados “como palhas em frasco transparente”; e lá adiante, no centro da pavorosa tundra, está enterrado até a cintura o corpo colossal de Satanás. Batendo as asas de morcego, mas sem poder jamais levantar voo, o Diabo também agita sua monstruosa cabeça compósita, formada por três faces com as respectivas mandíbulas: todas em estado de perpétua mastigação. Virgílio então explica ao discípulo: na tríplice bocarra, Belzebu esmaga eternamente os três maiores traidores da História. A boca do meio mastiga Judas Iscariotes; a da direita, Caio Cássio; a da esquerda,Marco Bruto. O primeiro vendeu Cristo; os outros dois mataram Júlio César. São os supremos condenados, os maiores criminosos de todos os tempos; mas Dante deixa transparecer, em um verso delator, certa admiração pelo ocupante da terceira boca satânica: Bruto, como bom estoico, suporta o suplício “sem soltar nenhum gemido”. Estranha fortuna póstuma, a desse pecador honesto: por excesso de virtude, foi lançado no lugar mais profundo do inferno; pela mesma virtude, não se rebaixa a protestar. Ninguém dirá que não merece um lugar no panteão dos traidores – e, no entanto… no entanto… Essa infinita reticência, concentrada em uma linha de Dante, ressurgirá com sucinta grandeza na peça escrita por William Shakespeare alguns séculos depois: A Tragédia de Júlio César, obra de precisão atemporal sobre as ilusões da política, a força e a insuficiência das palavras e a cegueira humana no nevoeiro da História.

Ilustração de Gustavo Doré para o Canto XXXIV do Inferno de Dante Alighieri.

O enredo é universalmente conhecido – e já o era em 1599, quando Shakespeare compôs a obra. Em 44 a.C., Júlio César é o homem mais poderoso de Roma, e para ser rei só lhe falta uma coroa. Antes que o derradeiro adorno lhe seja posto na cabeça, um grupo de aristocratas da velha guarda resolve derrubá-lo. Nos Idos de Março, os conjurados o cercam no prédio do Senado e lhe desferem trinta e três punhaladas (exacerbação numérica de Shakespeare: os historiadores antigos falam em vinte e três golpes). A facada final vem da mão de Bruto – amigo dileto de César e talvez seu filho bastardo. Os outros conspiradores eram movidos pela inveja; mas Bruto matou o amigo por dever cívico, a contragosto e após dolorosa hesitação. Depois disso, vem a guerra civil: Marco Antônio e Otávio, leais a César, perseguem os conjurados até os confins das províncias romanas. Derrotado na batalha de Filipos e perseguido pelo fantasma do amigo morto – que vem assombrá-lo em noites de insônia, à luz trêmula das velas – Bruto percebe que sua causa estava perdida desde o início: joga-se sobre a própria espada, sabendo que a República morre com ele.

“A literatura é uma notícia que nunca envelhece”, escreveu Ezra Pound em seu ABC da Leitura – e o Júlio César de Shakespeare é ilustração perfeita dessa máxima. O desfecho do drama já era conhecido antes de Jesus nascer; ainda assim, há no texto uma urgência que jamais perde o fio, como se os acontecimentos de dois milênios atrás estivessem de fato ocorrendo agora. Essa atualidade permanente se deve, em parte, à irresistível ambiguidade política construída pelo autor: ao longo da peça, as simpatias do público são constantemente lançadas entre uma e outra facção, sem jamais assentar em nenhuma delas. César ora parece dotado de um carisma sobre-humano, ora surge como um velho mandão, arrogante, beirando a fanfarronice; por um momento, chegamos muito perto de simpatizar com os conspiradores; mas então entra em cena o melífluo Marco Antônio, com o discurso incendiário que subleva a plebe romana e quase conquista o fervor da plateia; logo em seguida, contudo, vemos os sectários de César pondo fogo na cidade e massacrando transeuntes inocentes; e aquele mesmo Antônio, que antes parecia o portador da verdade, agora ordena execuções sumárias e discretamente surrupia dinheiro do povo. Todos esses personagens, no devido tempo, explanam seus motivos reais ou aparentes no estilo lúcido que geralmente associamos à retórica romana: mas suas falas jamais dão conta de esclarecer a verdade profunda da história, e acabamos com a impressão de que o idioma da política é necessariamente enviesado, como um pequeno jato de luz que só pode (e só quer) clarear pedaços seletivos e insuficientes da realidade.

Entre esses momentos de oblíqua excelência, está a própria cena do assassinato. Pouco antes de ser atacado pelos conspiradores, César faz um discurso que nos obriga a esquecer as dúvidas anteriores e nos convence quase definitivamente de que ele, e nenhum outro, é o favorito da Fortuna (a fala é aqui reproduzida em minha própria tradução, a ser lançada pela Companhia das Letras):

Eu sou constante como a estrela boreal
De cuja natureza firme e inamovível
Não há qualquer rival em todo o firmamento.
Com fagulhas sem conta o céu está pintado;
Todas são fogo e, como fogo, todas ardem;
Porém, apenas uma é fixa e não se move.
Assim, no mundo: é vasta a provisão de homens,
Homens de carne, e osso, e alma, e pensamento;
Mas na constelação humana, eu só conheço
Um único capaz de se manter imóvel,
Alheio às mutações, perene: e ele sou eu.

O contraponto a esse retumbante autoelogio são as trinta e três facadas que logo em seguida derrubam César aos pés da estátua de Pompeu. Essa incapacidade em perscrutar as trevas do futuro parece um contágio que afeta todos os principais personagens, em ambas as facções. Bruto acredita que a honestidade de suas intenções será motivo suficiente para que o povo romano aclame o assassinato como uma libertação; naquela mesma noite, contudo, sua casa será queimada pela plebe enfurecida; e suas ações, em vez de salvar a República, acabam por lhe precipitar a queda. O próprio Marco Antônio, que por um momento parece dominar as engrenagens do fado, tem sua estrela ameaçada pelo jovem aliado, Otávio ? e, embora esse desfecho só venha a ocorrer em outra “peça romana”, sabemos que o destino de Antônio, como o de Bruto, será cair sobre a própria espada. A Fortuna distribui seus sorrisos democraticamente, ora favorecendo este, ora favorecendo aquele: mas no final das contas, todos serão ludibriados por ela. Como nós.

No limite, a peça não trata apenas de política, poder e discurso, mas da incapacidade humana em reduzir a realidade a termos imediatamente compreensíveis: os prodígios mandados pelos céus jamais são lidos com exatidão e todos os personagens parecem envolvidos no esforço febril de cavar a própria tumba. Não é que as coisas não façam sentido; mas fazem-no de um modo que jamais será plenamente captável por qualquer um de seus atores ou testemunhas. A compreensão do caráter irredutível do futuro parece imbuir o texto de certo ceticismo sapiencial, comportando talvez uma recusa ao dogmatismo mesmo quando pareça perfeitamente verossímil.

A leitura atenta da peça também desperta outra dúvida sobre esse inextrincável futuro que os humanos não sabem, e talvez não saberão jamais, domar: tivesse César sobrevivido, teria ele se tornado de fato César, o personagem mítico cuja morte ainda recordamos hoje como um dos eventos cruciais da História? Apenas depois de morto César se torna uma criatura sobre-humana, uma fantasma que corre pelo mundo e “solta os cães da guerra”; só na morte as palavras de seu grandioso discurso se tornam plenamente verdadeiras. Também Bruto, ao ser destruído, transforma-se num personagem eterno. Não apenas para ser triturado no Inferno de Dante, mas para encenar infinitamente sua tragédia exemplar. Não deixam de ser acertadas, portanto, as palavras trocadas entre Bruto e Cássio logo após a façanha sangrenta: “Em quantos séculos vindouros será reencenada a nossa grande cena, em línguas do futuro e em terras por nascer!”

José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.