Literatura

Uma geração de inválidos da História

por Pedro Augusto Pinto

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O adjetivo ‘supérfluo’, em língua portuguesa, costuma designar coisas que consideramos desnecessárias ou dispensáveis: seja porque são excessivas (como indica a própria etimologia do termo, que remete a ‘transbordar’), seja porque são pura e simplesmente inúteis. Assim, não é por acaso que, ao abrirmos um dicionário, encontramos como exemplo construções do tipo “bens supérfluos”, “luxo supérfluo”, “detalhe supérfluo” ou afins, denotando desse modo algo que, no fundo, pode-se passar sem – ainda que os últimos duzentos anos, a bem da verdade, tenham tornado as noções de ‘necessário’ e ‘supérfluo’ bastante subjetivas, para não dizer confusas: quem iria um dia se imaginar precisando de um celular para trabalhar? Quem é que poderia dispensar o automóvel, ou o vício do cigarro, há 50 ou 60 anos atrás?

Seja como for, em língua russa, a palavra que se costuma traduzir por ‘supérfluo’ permite um uso mais amplo do que suporíamos inicialmente, guardando todos os significados já mencionados anteriormente mas possuindo, ademais, ainda outro, correspondente ao português ‘sobressalente’. É possível assim qualificar em russo um ingresso cujo dono desistiu de ir ao teatro, ou uma roupa que não se pretenda mais usar como itens supérfluos, querendo-se com isso dizer, simplesmente, que estão sobrando, e que podem portanto ser passados adiante. E é precisamente este sentido, de sobra, que parece se destacar no célebre arquétipo dos homens supérfluos – expressão consagrada por Ivan Turguéniev, e desde então tornada em um conceito fundamental para a história política e literária da Rússia. Embora sua importância seja identificável ainda nos textos de um Tchékhov (pensemos sobretudo na novela O duelo, bem como em sua primeira peça, O órfão de pai), é sobretudo na primeira metade do século XIX que iremos encontrar o homem supérfluo em todo o seu peso histórico e literário, perpassando a produção de autores como Aleksandr Púchkin, a consciência de revolucionários como Aleksandr Herzen, ou a formação de futuros gênios como Tolstói e Dostoiévski.

Mas o que seria, afinal, um homem supérfluo? Entre as muitas formulações e controvérsias, encontraremos uma resposta possível no poeta e prosador Mikhail Lérmontov (1814-1841), uma das vozes mais expressivas de uma geração marcada pela superfluidade, não obstante os seus brevíssimos 26 anos de vida.

Fruto da união infeliz entre uma aristocrata e um oficial de baixa patente, o futuro literato (e também militar) se veria precocemente privado do convívio de ambos, tanto pela morte da mãe quanto pela vontade da imperiosa avó materna, Elizavieta Arsiéneva, determinada a separá-lo do pai em troca do total compromisso com a formação do menino. O jovem Lérmontov receberia destarte, em um ambiente marcado pela solidão, a criação e a educação características das elites russas da época, marcadas pelo refinamento aristocrático e, sobretudo, pela reprodução de padrões culturais ocidentais – traços posteriormente descritos, com maestria épica, na obra-prima de Lev Tolstói. E seriam precisamente a sofisticação e a abrangência da formação de Lérmontov, tais como as da que marcou sua geração e as diversas personagens que ela nos legou (pensemos no Evguéni Onéguin, do romance em versos de Púchkin, ou no Tchátski de A desgraça de se ter inteligência, de Aleksandr Griboiédov), o que os condenaria a todos à superfluidade, e não sem um sabor um tanto trágico. Com efeito, para além do francês obrigatório e do russo materno, Lérmontov estudou desde cedo o alemão, aprendeu inglês para ler Byron e Walter Scott e, ao fim da vida, iniciou os seus estudos no assim chamado “tártaro” (na verdade, um referencial genérico para diversas línguas túrquicas), descrito pelo poeta como língua franca na terra de seu exílio e sua morte, o Cáucaso. Era ademais exímio pintor, musicista treinado no violino e no piano, e um enxadrista habilidoso. Como bom aristocrata, dominava ainda a arte indispensável da sociabilidade mundana (no que se incluíam a dança, a conversação galante, a presença de espírito) e, como militar do corpo de elite da Guarda Imperial, não era nada ignorante em matéria de tiro e de equitação, ou até mesmo de balística.

‘Autorretrato’, Lérmontov, 1837

Recordando, pois, mais uma vez, o caráter social desta espantosa educação recebida pelo poeta, isto é, sua essência eminentemente coletiva, vemos surgir nossa questão fundamental: o que fazer com tanto conhecimento em um país bloqueado, como era a Rússia sob o tsar Nicolau I? Como contornar o sentimento de frustração com a estreiteza do regime, quando todos os caminhos profissionais imagináveis para um jovem e promissor aristocrata passavam necessariamente pelo serviço à coroa? O dilema de Lérmontov e de sua geração, bem como a questão da superfluidade se revelam, assim, o resultado de configurações específicas de seu país – país cuja aristocracia havia sido moldada, desde o reinado do tsar Pedro I (1682-1721), como casta administrativa e culturalmente dominante, no quadro maior de um projeto imperial de grande potência europeia.

Se, porém, até a Revolução Francesa, aderir a este projeto implicava a adesão a uma agenda mais ou menos ambiciosa de modernização administrativa e intelectual, tendo em seu horizonte de expectativas a abolição da servidão de gleba (tão hedionda quanto a escravidão brasileira) e a implementação desta então moderníssima novidade, a constituição política, já após o Congresso de Viena (1814-1815), e sobretudo após a ascensão ao trono de Nicolau I tal projeto passou a implicar justamente a repressão a quaisquer ideias de modernização ou de reforma – ideias que, havia pouco, o próprio Estado tratara de difundir. Para piorar, semelhante guinada se daria após um período de intenso otimismo e euforia nacionais, ocasionados pela vitória sobre Napoleão em 1812 e pelas aparentes simpatias reformistas do tsar Alexandre I, rapidamente abandonadas. A contradição assumiu sua feição aguda e incontornável com os episódios de 14 de dezembro (ou 26, pelo calendário gregoriano) de 1825, isto é, após a famosa Insurreição Dezembrista, que oporia os setores reformistas do oficialato russo à própria coroação de Nicolau I. Reprimindo, pois, rapidamente a rebelião, o tsar se vingaria condenando os insurretos ao recato, ao exílio ou à morte, ou ainda fazendo dos seus quase 30 anos de reinado um longo período de perseguição e censura política, da qual seria vítima, em 1848, ninguém mais ninguém menos que Fiódor Dostoiévski. Com isso, no período imediatamente posterior à revolta – época que compreendeu toda a vida intelectual de Lérmontov –, a conjuntura russa se revelava uma espécie de manifestação paroquiana de um quadro maior: a crise cultural da Europa pós-napoleônica, uma Europa deformada por quase 20 anos em estado de guerra e de instabilidade política permanentes. E tudo para, no final, ver-se novamente às voltas com as mesmas monarquias dinásticas que descuidadamente ocasionaram, em 1789, a precipitação do continente no turbilhão revolucionário.

Como é, pois, que um nobre na Rússia de Nicolau I iria garantir, em meio a semelhante cenário, que todos os saberes e dons que acumulou em sua formação não viriam a se tornar um fardo supérfluo, a ser arrastado em uma vida estéril e despropositada? Os sintomas da época não tardaram a aparecer. Dentre eles, os mais relevantes foram a disseminação de jogos de azar e a prática recorrente de duelos, convocados pelos motivos mais duvidosos, não obstante sua proibição nos termos da lei. Não foi, pois, por acaso que tais fenômenos se tornaram quase que arquetípicos na história da literatura russa. Tão popular quanto o carteado e as pistolas, também a metafísica iria despontar como sintoma de seu tempo – particularmente a sua variante alemã, então em seu auge, e que gozou de grande prestígio entre os meios intelectuais russos. Jogo, duelo e metafísica, assim, esbarravam-se na encruzilhada de uma geração criada para um mundo que já não existia mais, ao mesmo tempo em que permanecia o mesmo. Na verdade, pode-se dizer que o recurso a tais subterfúgios traduzia, no fundo, uma irrequieta indagação acerca do destino, uma necessidade de pô-lo à prova em testes certamente vãos, mas minimamente capazes de oferecer algum sentido para ações e vidas que, de outro modo, pareciam fadadas simplesmente ao vazio.

‘Vista do Monte da Cruz’, Lérmontov, 1837

O trágico dilema pode ser visto em uma carta de Lérmontov a Maria Lopukhiná, amiga íntima do poeta e irmã de um de seus grandes amores logrados, Varvara (Lopukhiná de nascença, e posteriormente Bakhmiéteva). Nela, Lérmontov explica a sua súbita escolha de ingressar na Escola de Suboficiais da Guarda e Júnkers da Cavalaria, em São Petersburgo, e seu abandono da Universidade de Moscou – reconhecido reduto literário da época, polo de disseminação da filosofia alemã e sobretudo da renomada “Filosofia da Identidade” de Friedrich Schelling. Redigida em língua francesa (como soía às cartas russas da época), o documento expõe, com um riso amargoso, uma escolha profissional baseada quase que exclusivamente na proximidade da morte

“Eu ainda mal consigo imaginar qual efeito que terá sobre vocês a minha grande novidade; eu, que até agora havia vivido para a carreira literária, depois de tanto ter sacrificado por este meu ídolo ingrato, eis que me faço soldado – talvez seja esta a vontade particular da Providência! Talvez este caminho seja o mais curto; e se ele não me levar ao meu primeiro fim, pode ser que me leve ao fim último do mundo todo. Morrer com uma bala de chumbo no peito bem vale uma lenta agonia de velhote; ademais, caso haja guerra, eu lhes juro por Deus ser o primeiro em todo lugar.”

‘Ataque do Corpo da Guarda de Hussardos junto à Varsóvia, Lérmontov, 1831

E é este mesmo espírito, de desprendimento da vida, que encontramos em muitos dos poemas de Lérmontov. Não obstante, cumpre ressaltar, nem por isso o poeta deve ser considerado apenas como o autor de obras trágicas e confessionais: prova-o a sua própria posteridade, marcada pela apreciação de figuras tão díspares quanto o futurista e socialista Vladímir Maiakóvski e o simbolista místico Aleksandr Blok. Ainda assim, se quisermos compreender a experiência histórica por detrás dos seus versos, e que lhes garantiu a imediata simpatia de seus contemporâneos, é impossível não pensar naquele batalhão de inválidos da História, abandonados pelas esperanças da campanha de 1812, exilados entre um passado e um futuro já defuntos, e fadados a decifrar um presente que, assim, só poderia lhes surgir como vazio. Não por acaso, como exemplos de um verbete enciclopédico, encontraremos na prosa de Lérmontov o jogo de cartas e o duelo; do mesmo modo, veremos em sua poesia um constante anseio pela experiência significativa, a busca incessante por uma realidade mais profunda do que a que a vida lhe oferecia – e talvez ainda nos ofereça – em toda a sua insuportável superfluidade.

‘Recordação do Cáucaso’, Lérmontov, 1838

Solidão

05………….. Quão medonho é arrastarmos nossos dias
05………….. Quais grilhões, em amarga solidão.
05………….. Todos querem dividir alegrias,
05……………Dividir tristezas – ah, isso não.

5……………. Como um rei entre as nuvens, estou só,
05…………...De penas, o meu peito se amofina,
05……………E vejo retornarem para o pó
05………….. Os anos, quais sonhos, fiéis a sua sina.

05…………….E voltam novamente, com a dourada,
10…………...Mas velha, gasta, exânime quimera.
05……………E vejo a minha cova retirada:
05………….. Pra quê me demorar, se a morte espera?

05……………Ninguém há de sofrer por minha sorte
05……………E todos hão de (já me convenci)
15…………...Alegrar-se no dia de minha morte
05…………….Mais que no próprio dia em que nasci.

‘Desenho Infantil’, Lérmontov, 1825

Meu demônio

……..……..A sua essência é de males e maldade.
……..……..Voando em meio aos ares fumarentos
……..……..É amante das funestas tempestades,
……..……..Da espuma dos rios, do ruído dos ventos.
5…………..Em meio às folhas secas, já caídas,
……..……..Imóvel, o seu trono se sustenta;
……..……..E lá, envolto em bruma emudecida,
……..……..Apático e sombrio, ele se assenta.
……..……..E busca semear a desconfiança,
10……….. E olha com desdém o mais puro amor,
……..……..É avesso às orações, ama a vingança,
……..……..E olha o sangue sem qualquer tremor;
……..……..E abafa, com o coro da paixão,
……..……..O som dos sentimentos mais profundos,
15……….. E a musa da tranquila inspiração
……..……..Se assusta ante esses olhos de outro mundo.

‘Castelo Metekhi’, Lérmontov, 1837

O punhal

……..……..Meu punhal de aço puro, eu te amo,
……..……………………Camarada claro e frio.
……..……..Na vingança forjou-te um sombrio georgiano,
……..……………E a Circássia deu corte ao teu fio.

5……..……..Mãos macias, quais lírios, trouxeram-te a mim
……..……………………De lembrança, no instante do adeus,
……..……..E banhou-te por fim, não o sangue, mas sim,
……..……..Quais translúcidas pérolas, o pranto seu.

……..……..No que um par de olhos negros, parado à minha frente,
10…………….Marejado de oculta agonia,
……………………Qual teu aço, ante a chama tremente,
……..……………………Se turvava, e reluzia.

……..……..Foste entregue em minhas mãos, como meu companheiro,
……..……..És penhor deste amor, e um exemplo ao desterro:
15…………Serei sempre fiel, de alma tesa, e inteiro
……..……..…..– Qual tu és, qual tu és, meu amigo de ferro.

‘Vista do mar com barco à vela, fragmento’, Lérmontov, 1828-31

Pedro Augusto Pinto

Pedro Augusto Pinto é tradutor e mestre em Cultura e Literatura Russa, com estágio de pesquisa no Instituto de Literatura Mundial Górki da Academia Russa de Ciências, pela FFLCH - USP. É bacharel em História pela mesma instituição, com intercâmbio acadêmico na Universidade Estatal de Moscou e na St. Mary's University College. É também autor da coletânea de poemas "Um bicho de circo" (7 Letras, 2018).