Literatura

Literatura do confinamento

por André Chermont de Lima

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A imprensa tem presenteado milhões de pessoas com recomendações de leitura para estes tempos de reclusão. Esqueça um pouco as redes sociais e o Netflix e aproveite para ler, aconselham os articulistas. Embora o tipo de leitura seja o mais irrelevante (o que importa é ler, afinal… ou não?), a temática parece inescapável, incurável como o vírus: assim como o repertório de filmes e séries sobre pandemias, explorar a “literatura da distopia”, os “romances de catástrofes sanitárias” – expressões usadas na matéria de página inteira no Le Monde há alguns dias[1] – é maneira de fugir responsavelmente dos telejornais apocalípticos, sem alienar-se de todo da crise. Fala-se muito, e com justiça, de “A Peste” de Camus e “Eu Sou a Lenda” de Richard Matheson; a relação interminável de obras aparentadas, literárias e audiovisuais, nunca para de crescer e evidencia um trauma antigo e mal resolvido, nascido da convivência milenar da espécie humana com as moléstias contagiosas. Agora percebemos que durante as pandemias – e não são todas as gerações que se encontram diante do desafio de enfrentá-las – a verdade e a ficção tornam-se um pouco nebulosas. Vem à mente o recado, que se tornou viral nas redes sociais, colado à vitrine duma livraria de língua inglesa: “A seção de ficção pós-apocalipse passou para a de atualidades”.

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As restrições ao nosso ir-e-vir impostas por doenças e outras catástrofes alheias à ação direta dos homens alimentam um importante nicho criativo. É um gênero tão rico, variado e popular como seu inverso, a literatura de viagens, com seus heróis inquietos em busca de modalidades próprias de isolamento – só que, nesse caso, nos espaços amplos e na movimentação constante.

Nem sempre, na literatura do confinamento, é a enfermidade que espreita do lado de fora, encerrando os saudáveis em seus refúgios domésticos. Em “A Montanha Mágica”, os doentes tentam escapar da morte – ou pelo menos postergar sua chegada – subindo até o sanatório Berghof. Numa estranha inversão, é a planície, o mundo dos sãos, que mata: Joachim prefere descer e ser vencido pela tuberculose, e seu primo Hans Castorp, o heroi do romance, desaparece no campo de batalha, cantarolando sem pensar enquanto avança em meio às explosões, talvez sonhando com o amor que viu “brotar da morte e da luxúria carnal” no seu antigo refúgio alpino. Thomas Mann apresenta um paralelo algo inesperado com “Morte em Veneza”, onde o escritor Aschenbach abandona a proteção do hotel na praia para arriscar-se em incursões na cidade assolada pelo cólera – a Veneza que hoje nos choca com suas mesmas ruas desertas. Nas últimas páginas, tal como Castorp, o protagonista esnoba da salvação em nome de algo maior.

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Thomas Mann

Histórias de confinamento não ficariam completas sem “O Alienista”. Aqui, as idas e vindas nas teorias de Simão Bacamarte – primeiro os desequilibrados, depois os perfeitamente equilibrados – têm seu fecho na reclusão solitária e voluntária do próprio alienista, “um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana”:

“Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a 17 meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada”.[2]

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Machado de Assis, em sua imagem clássica colorida pelo Projeto Machado de Assis Real

Talvez não tão cientificamente preocupados com suas mazelas como Simão Bacamarte, o Homem do Subterrâneo de Dostoiévski, o escrivão Bartleby e Oblómov (protagonistas das obras homônimas de Melville e Gonchárov) encerraram-se, cada um a seu modo, impelidos por silenciosas e patológicas rebeldias. É óbvio que nem sempre a reclusão, forçada ou não, precisa estar objetivamente associada a moléstias. O personagem de Dostoiévski, doente de algo que não sabe o que é, recolhe-se “em seu canto”, consolado pela impossibilidade de um homem inteligente tornar-se alguém importante: “só tolos viram alguém na vida”. Já Bartleby é o mestre da ironia: depois de passar tanto tempo recolhido no escritório do chefe, recusando-se a cumprir instruções de qualquer ordem, ele recebe a oferta de emprego numa loja, que o salvará da expulsão e da provável prisão como indigente. Responde: “Excessivo confinamento”. “Excessivo confinamento! Mas se você se mantém confinado o tempo todo!”, replica o narrador, quase desesperado diante de mais essa recusa.[3] Enquanto o personagem de Melville tornou-se célebre pelo mote “eu preferiria não fazê-lo”, o modo como o ocioso Oblómov levou a vida virou substantivo: “oblomovismo”, ou o não fazer nada, puro e simples – não a indolência doce e charmosa do sibarita, mas a inércia fruto da preguiça, da depressão e da misantropia. O que não é suficiente para recusarmos a Oblómov uma simpatia (ou empatia?) sem limites.

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‘Peter Harrison Asleep’, John Singer Sargent, 1905

Este ensaio foi até aqui dedicado aos heróis do autoexílio, às quarentenas eletivas. Até mesmo os convidados no filme “O Anjo Exterminador” ou as personagens de Tchekhov, com seus nunca realizados sonhos de fugir da monotonia e da mediocridade (como Olga, em “As Três Irmãs”, e seu projeto de mudar-se para Moscou), têm diante de si uma porta de saída. Em Kafka as possibilidades são menos evidentes. A angústia que um livro como “O Processo” nos transmite deve-se em boa parte aos espaços de confinamento, o que parece combinar com uma das máximas virtudes humanas aos olhos desse escritor atormentado: a paciência. Seus personagens praticam permanente resistência à reclusão, real ou metafórica, em exercícios inúteis que acabam dando lugar a uma aterrorizada acomodação: Gregor Samsa, transformado em inseto e confinado pela família em seu quartinho; Joseph K., cuja vida é alternar o cômodo de aluguel com o escritório, e se vê de repente ameaçado pela perspectiva duma prisão absurda; ou o nostálgico caçador Graco, condenado a navegar sem destino pelos oceanos e séculos dentro dum caixão. Harold Bloom observa que o gênio de Kafka estava destinado ao isolamento, porque nos via incapazes de conhecermos uns aos outros ou sequer de reconhecermos qualidades comuns.[4]

Uma das cenas de mais espantosa claustrofobia na história da literatura está, a propósito, em “O Processo”: tentando desvencilhar-se da acusação misteriosa que lhe recai, Joseph K. é convidado pelo oficial de justiça para conhecer o fórum. Enquanto perambula pelos corredores estreitos e lotados do prédio (embora seja um domingo), o ambiente opressivo começa a fazer-lhe mal: sente-se nauseado, esgotado e sufocado. Diante da passividade do oficial de justiça, uma jovem funcionária do fórum aparece para ajudá-lo: “Não é nada extraordinário”, diz ela, “quase todo mundo sofre esse tipo de acesso quando vem pela primeira vez…”. “Também estou acostumado com o ar de escritório, mas aqui me parece péssimo”, retruca K. O prédio da justiça parece um navio jogando no meio duma tormenta. Deixa-se carregar pela moça e outro colega (o oficial de justiça já havia sumido) até a porta de saída; ao se despedir, o heroi percebe que “ambos suportaram mal o ar relativamente fresco” do exterior: “eles mal puderam responder, e a jovem teria talvez desfalecido se K. não fechasse rapidamente a porta”.[5]

Joseph K. circula entre ambientes herméticos, carregados, insuportavelmente quentes, úmidos ou escuros. Embora permaneça livre até o fim da narrativa, a pesada ameaça da condenação paira sobre ele desde a primeira página. Assim é a obra de Kafka, um passeio por câmaras que se vão fechando até esmagarem seus ocupantes, como nesta microfábula:

“’Ai de mim!’, exclamou o camundongo, ‘o mundo está ficando cada vez menor. De início era tão grande que eu me apavorava. Vivia correndo para cá e para lá, e só me tranquilizava quando via, por fim, paredes bem distantes à esquerda e à direita. Mas o espaço entre essas paredes estreitou-se tão rapidamente que já me encontro na última câmara, e vejo ali no canto a ratoeira onde de certo esbarrarei’.

‘Ora, basta-lhe escolher outro caminho’, disse o gato antes de engoli-lo”.[6]

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Franz Kafka

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O confinamento deixa de ser apenas desconfortável e se torna aterrorizante quando a doença ou a ameaça real alia-se a uma condição ambiental, que contribui para o acúmulo de tensão e opressão. No extraordinário conto “Chuva”, de Somerset Maughan, um médico e sua mulher são obrigados a passar dias a fio numa ilhota do Pacífico, após a descoberta de sarampo entre os tripulantes do navio em que viajam. Proibidos de seguir, os dois compartilham da quarentena, numa pensão úmida, com um casal de fanáticos missionários protestantes. Para piorar o cenário, mal conseguem pisar do lado de fora por causa da chuva incessante: “não era como a nossa macia chuva inglesa que caía suave sobre a terra; era uma chuva impiedosa e de algum modo terrível (…); tamborilava no telhado de ferro com uma persistência firme que era de endoidecer. Parecia ter uma fúria toda sua”. A monção não fornece o título do conto à toa; é um personagem, forte e voluntarioso como seus pares de sangue e hormônios à flor da pele: “lá fora a chuva impiedosa caía com insistência, com uma malignidade que de tão feroz parecia humana”.[7]

A intempérie como presença quase viva remete a Elizabeth Bishop – uma das grandes poetas do século passado que, por razões tão inacreditáveis como imperdoáveis por pouco não deixou de ser homenageada na próxima Flip – e suas homenagens à intimidade dos quartos herméticos e das chuvas de Petrópolis (uma das contradições da autora nômade, fascinada pelas viagens e pela geografia):

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“Oculta, oculta,

na névoa, na nuvem,

a casa que é nossa,

sob a rocha magnética,

exposta a chuva e arco-íris,

onde pousam corujas

e brotam bromélias

negras de sangue, liquens

e a felpa das cascatas,

vizinhas, íntimas.

Numa obscura era

de água

o riacho canta de dentro

da caixa torácica

das samambaias gigantes;

por entre a mata grossa

o vapor sobe, sem esforço,

e vira para trás, e envolve

rocha e casa

numa nuvem só nossa.

…”

(Canção do Tempo das Chuvas)

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“One electric light bulb alone was provided.

…………..Under the light

…………..Perpetually, day and night,

All the time I lived there, five flies held a dance.

…………..In unhurried orbits they glided

In the darkness five flies spoke

…………..Of revelations

…………..In their hopeless conversations,

Of the gilded beauties of heaven, and the blackness of hell,

…………..Too, till thinking

‘But here I am in my room”, I awoke.”

(In a Room)[8]

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Elizabeth Bishop

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Num plano mais gráfico e talvez menos sutil, o conto “O Nevoeiro”, de Stephen King, narra a luta pela sobrevivência dum grupo de clientes no supermercado, enquanto o mundo exterior é tomado por uma espessa neblina povoada de monstros assassinos. Voltamos ao ponto de partida, ao mal invisível à espreita do lado de fora das janelas. Como a memória, a literatura é uma corrente sem fim de associações e conexões: a chuva nos conduz a relatos de náufragos; os cidadãos retidos dentro do mercado a histórias de prisão e prisioneiros; estas a guerras e cercos militares, o nevoeiro sobrenatural à literatura de horror. Mas a partir deste ponto talvez estejamos nos afastando demais do confinamento, querendo ir embora como as sete moças e os três rapazes de Boccaccio.

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‘A Tale from the Decameron’, John William Waterhouse, 1916

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Lista das obras citadas:

Bishop, Elizabeth: “Canção do Tempo das Chuvas” (em “Questões de Viagem”), “In a Room” (manuscrito)

Boccaccio, Giovanni: “O Decamerão”

Camus, Albert: “A Peste”

Dostoievski, Fiódor: “Memórias do Subsolo”

Gonchárov, Ivan: “Oblómov”

Kafka, Franz: “O Processo”, “A Metamorfose”, “Graco, o Caçador”, “Uma Fabulazinha” (em “Ao Pé da Muralha da China”)

King, Stephen: “O Nevoeiro” (em “Tripulação de Esqueletos”)

Machado de Assis, J.M.: “O Alienista” (em “Papeis Avulsos”)

Mann, Thomas: “A Montanha Mágica” e “Morte em Veneza”

Matheson, Richard: “Eu Sou a Lenda”

Maughan, William Somerset: “Chuva”

Melville, Herman: “Bartleby” (em “The Piazza Tales”)

Tchekhov, Anton: “As Três Irmãs”

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Notas:

[1] “Littérature et épidemie: le vaccin des dystopies”. Le Monde, 27 de março de 2020

[2] “O Alienista” in “Machado de Assis – Contos: Uma Antologia” (org. John Gledson), vol. 1, pág. 327. São Paulo, Companhia das Letras, 2004

[3] “Bartleby” in “Billy Budd and The Piazza Tales”, pág. 145. Nova York, Barnes & Noble Classics, 2006

[4] Em alguma de suas anotações, Kafka observa que conhece mais o quartinho em que mora do que sua consciência. Daí sua antipatia pela psicologia, e a famosa frase “psicologia é impaciência”, unindo o que desconhece com o mais capital dos pecados.

[5] “Der Proze?”, págs. 58-66. Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 1991

[6]“Uma Fabulazinha” in “Franz Kafka: Contos, Fábulas e Aforismos” (org. e tradução Ênio Silveira), pág. 29. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993

[7] “Chuva” in “Obras Primas do Conto Moderno” (org. Almiro Rolmes Barbosa e Edgard Carvalheiro), págs. 201-248. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1957

[8] In “Elizabeth Bishop – Poemas Escolhidos” (seleção e tradução Paulo Henriques Brito), pág. 247. São Paulo, Companhia das Letras, 2011;  e “Elizabeth Bishop – Poems”, pág. 267. Londres, Chatto & Windus, 2011

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André Chermont de Lima

André Chermont de Lima é diplomata de carreira e atualmente exerce o cargo de Ministro-Conselheiro na Representação do Brasil junto à UNESCO, em Paris.