Artes

Maradona: con la mano de Dios

por Andrei Venturini Martins

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(Reprodução: AP)

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Do subúrbio de Buenos Aires para o mundo. Diego Armando Maradona foi uma daquelas raras estrelas que reluziu por meio do esporte. O brilho que chamava a atenção de todos não fazia do futebolista argentino uma unanimidade: era odiado e amado, vaiado e aplaudido, criticado sempre, mas durante algumas Copas do Mundo foi a esperança de um povo que ama o futebol. Era chamado por todos pelo primeiro nome, algo que revelava a intimidade dos argentinos com aquele menino que experimentou a pobreza correndo nos campos pelados de terra batida da periferia. Porém, pelo seu elevadíssimo talento com a bola nos pés, se distanciou da maioria dos mortais.

Nos campos fez-se a lenda, o mito, o herói, que pelos seus feitos venceria a morte para ficar na memória dos vivos e daqueles que ainda estão por vir. Antes mesmo de entrar em uma partida, já enchia a imaginação dos espectadores com a esperança de que o mágico pudesse tirar de sua cartola algo de surpreendente. No gramado esculpia sua obra de arte, tendo como cinzel a bola.

Grudada a seus pés, os dribles de El Pibe de Oro — como também era chamado — eram desconcertantes: arruinava as estratégias de defesa e, por um toque de mágica, deslocava o adversário do caminho iluminado do gol. Como brasileiro amante do futebol, não raro prefiro uma boa sequência de dribles ao gol propriamente dito. Mas Maradona estava entre aqueles que, em um só lance, reunia drible e gol, e, como o demiurgo platônico, projetava nos gramados o que há de mais perfeito debaixo do sol. No espetáculo da vida os campos de futebol foram o palco de sua arte. Não se vive, no entanto, o tempo todo em um único palco, pois é preciso encenar outros papéis. E neles o jogador teve muitas dificuldades.

Como apresentador do programa de televisão La Noche del 10, na Argentina, o astro fez revelações sobre seus tropeços morais em um quadro no qual entrevistava a si mesmo. Falou do uso das drogas, pediu perdão aos pais, irmãos e disse se arrepender por não ter participado mais ativamente do crescimento de suas filhas Dalma e Gianinna. Se o arrependimento é a dor do não vivido, com essas declarações Maradona afirmava indiretamente que sua vida poderia ter sido outra. Sem as drogas, poderia ter ampliado ainda mais seus grandes feitos no futebol e, talvez, não tivesse causado tantos infortúnios a seus entes queridos. Percebe-se que nas tragédias da vida cotidiana as realezas são tão vulneráveis quanto à multidão de súditos.

O jogo entre a Argentina e Inglaterra na Copa do Mundo de 1986, no México, foi uma demonstração clara de sua virtude futebolística. A Albiceleste — alcunha da seleção Argentina por conta do seu uniforme de listras verticais brancas e azuis celestes — havia ficado em primeiro lugar na fase classificatória e vencido o Uruguai nas oitavas de final. Nas quartas enfrentaria a Inglaterra, ciente da rivalidade que havia migrado da política para os campos de futebol: a soberania das Ilhas Malvinas, situada a cerca de 500 quilômetros da costa Argentina, levou os dois países a um confronto curto, sangrento e aparentemente desnecessário. A Inglaterra venceu, mostrou sua superioridade bélica, restando no imaginário popular argentino a sensação de que foram roubados. O jogo entre os dois países reacendia a insatisfação dos argentinos e, ao mesmo tempo, despertava a gana pela vitória sobre os ingleses, nem que fosse em uma Copa do Mundo. Carregado por essa tensão, Maradona faria dois gols. O primeiro, de “cabeça”, para desespero dos ingleses que reclamavam junto à arbitragem ter sido feito com a mão. Minutos depois, outro gol, em uma jogada inesquecível: desafiando a combativa defesa inglesa, Maradona dominou a bola ainda no campo de defesa, driblou 4 adversários e o goleiro — driblar o guarda-redes é um lance que quase não se vê mais no futebol atual — e empurrou a bola carinhosamente para o fundo das redes. A vibração de Victor Hugo Morales, narrador uruguaio radicado na Argentina, me lembra tanto a dificuldade de Platão em colocar em palavras o contato com o Bem e o Belo quanto o esforço dos místicos cristãos para elaborar um discurso sobre a experiência que tiveram com Deus. É o grito de gol que confessa o maravilhoso que se vê e os limites da linguagem: “Gooooooollll. Quero chorar! Deus santo, viva o futebol! Golaaaaaaço…… Diegooooooo! Maradona! É para chorar….me perdoem. Maradona, em uma arrancada memorável, na jogada de todos os tempos…. Barrilete cósmico![1] De que planeta viestes para deixar pelo caminho tantos ingleses? Para que o país seja um punho fechado gritando por Argentina? Argentina 2, Inglaterra 0. Diego, Diego, Diego Armando Maradona. Graças a Deus, pelo futebol, por Maradona, por essas lágrimas… Por este Argentina 2, Inglaterra 0”.

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O time inglês ainda faria um gol, mas nada que ofuscasse o brilho cintilante que emanava da seleção latino-americana. Quando Diego estava em campo, o jogo terminava com o apito do juiz, mas o espetáculo continuava: ao final da partida, um repórter perguntou a Diego se o gol não teria sido feito com a mão. A resposta foi um relâmpago de ironia e irreverência: “Lo marqué um poco com la cabeza y un poco com la mano de Dios”. Guardada as devidas proporções, as Malvinas eram da Inglaterra, mas a vaga na semifinal ficaria com a Argentina.

É muito comum ver os jogadores atuais levantarem suas mãos para os céus e darem glória a Deus por seus gols. Isso se tornou uma cena tão corriqueira quanto cafona. Esse não era o caso de Maradona. Apesar de não ser filósofo nem escritor, elaborou um enigmático paradoxo: ele assume que fez o gol, mas ao mesmo tempo sabe que não o fez. Se me permitem uma comparação, assim como Paulo de Tarso disse na Epístola aos Gálatas, “vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim”,[2] também Maradona assume a autoria daquele gol memorável, que não foi feito com sua mão, mas “con la mano de Dios”. É o primeiro e único gol de Deus na história das Copas do Mundo.

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La mano de Dios (Reprodução: Getty Images)

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Lembro que na ocasião daquela partida eu tinha 7 anos de idade e assisti ao jogo de pé no sofá da minha casa. Confesso que até hoje, revendo o lance, não consigo enxergar a mão de Diego, nem mesmo consigo ver a bola tocar em sua cabeça. Naquele lance há um mistério insondável, e não havia o VAR para subtrair, com suas precisões matemáticas, a magia dramática que envolvia aquele lance. Anos depois, em 1993, fui ao Morumbi assistir a São Paulo x Sevilha, e o time visitante tinha em seu plantel a mesma estrela que havia brilhado nos campos da Copa do México. Apesar de estar em campo o meu time do coração, não havia ido ver o São Paulo jogar, nem mesmo assistir à partida, mas somente observar atentamente a maestria de Diego Armando Maradona. O tricolor paulista venceu o jogo por 2 gols, porém, confesso, torci para presenciar um gol do gênio. Ele quase não tocou na bola, pois já não era o mesmo de outrora, mas em um de seus chutes fez a bola caprichosamente beijar a trave.

No dia 25 de novembro de 2020, após sofrer uma parada cardiorrespiratória, Maradona enfrentou umas das experiências que o homem mais teme: a morte.[3] Curioso é que em sua autoentrevista no ano de 2005, o astro pergunta o que diria para Maradona no cemitério. El Diego responde sem papas na língua: “obrigado por teres jogado futebol”, e acrescenta, “Podiam fazer uma lápide a dizer ‘graças à bola’.” Penso que se o futebol um dia falecer, seria justo que em sua lápide também tivesse um agradecimento a Maradona: “Obrigado Maradona”. O que seria de Maradona sem o futebol? Não sei. Mas o que seria do futebol sem seus artistas?

O que nos resta é lembrar dos grandes feitos do príncipe dos gramados e imaginar que, se Deus existe, receberá aquele que permitiu à deidade experimentar a alegria de ter marcado o seu único gol numa Copa Mundo.

Vai Dieguito, é chegada a hora de reencontrar con la mano de Dios.

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(Reprodução: Getty Images)

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Notas:

[1] Esse é mais um dos generosos apelidos de Maradona. Poderia ser traduzido como “barrilzinho cósmico”, em alusão às sua baixa estatura e alta velocidade.

[2]Epístola aos Gálatas 2, 20.

[3] É por isso que admiramos os heróis, dizia Ernest Becker em sua obra A Negação da Morte, porque eles são capazes de enfrentar aquilo que todos nós tememos: a morte, o desaparecimento, o vazio.

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Andrei Venturini Martins

Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.