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Michel de Montaigne – Elogio do generalista

por Rodrigo de Lemos

No capítulo de Mímesis dedicado aos Ensaios, de Montaigne, o crítico Erich Auerbach descreve o solitário da Torre de Dordogne como um dos predecessores do moderno écrivain. Não lanço mão do termo em francês por pedantismo; pode-se apenas imperfeitamente traduzi-lo por “escritor”, termo que remete, atualmente, ao escritor de narrativas. Apreende-se melhor a propriedade do écrivain contrastando-se Montaigne aos grandes nomes da vida intelectual do Medievo e mesmo da Renascença: era comum, como assinala Auerbach, tratar-se de homens forjados em uma disciplina, especialistas de uma área (frequentemente, a teologia), a partir da qual influenciaram esferas mais amplas da cultura. Em contrapartida, em qual disciplina o autor dos Ensaios se inscreve para cumprir aquele famoso objetivo seu, declarado no prefácio, de pintar-se a si mesmo em um livro de que ele mesmo é a matéria? Antes, ele se define por um ato: ele escreve.

A importância do écrivain, por certo, ultrapassa a história da literatura; ela é também um fato da história social. Operando fora das disciplinas (o que não quer dizer ignorando-as; o próprio Montaigne era jurista), seu surgimento vai de par com o de um público, de uma comunidade ela também independente das disciplinas universitárias, mas que partilha com quem escreve certas referências culturais. Daí Montaigne pontuar os Ensaios de citações latinas sem referência, sem tradução; não é esse um sinal de reconhecimento entre público e autor, ambos membros de uma mesma coletividade culta? Auerbach flagra esse público culto, no século XVI, ainda em formação. Com efeito, podiam a Europa da Reforma, lancinada pelas Guerras de Religião, e a própria França, à época no vértice do desintegração, servir-lhe de terreno propício? É do fim do século XVIII ao início do XX que o público culto estará no auge da influência – não por acaso, na época áurea dos écrivains.

Ora, o público culto constituía, durante essa período, o público, e era uma tal identificação que permitia, por sua vez, que o écrivain fosse a figura pública por excelência. Apesar de conferir-lhes, no prefácio a seus Ensaios, um estrito fim doméstico e privado, essa dimensão pública do écrivain já estava em germe em Montaigne, que se fazia respeitar por católicos e protestantes e que, ele mesmo católico moderado, advogava a união “nacional” em volta do trono, em detrimento à dissensão religiosa. Será, contudo, no período de relativas paz e prosperidade da era burguesa que a figura do esgrimista da pluma crescerá, e verão o dia os Voltaire, os Emerson e os Stuart Mill.

Montaigne lega ao écrivain seu gênero literário por excelência, o ensaio. O ensaio foi o respiro da inteligência livre entre a suma da escolástica decadente e o artigo de especialista em revista indexada. Ensaio, essaiessay, tentativa – trata-se do gênero que nasce e cresce fundado na possibilidade, fecunda entre todas, do erro. Ele presta testemunho do embate entre o mundo e o intelecto, do estranhamento entre ambos ou de sua comunhão, instável, por meio de um conhecimento vivamente experimentado, ao mesmo tempo limitado e instigado pela subjetividade. Tendo percorrido mais ou menos as mesmas obras e se formado pela conversação sobre mais ou menos os mesmas temas, a inteligência do leitor pode encontrar a do autor na sua livre articulação dessas leituras e desses temas em busca de uma verdade que, no ato mesmo de revelar-se, não esconde suas frestas.

O ensaio de Montaigne anuncia não apenas essa grande época do indivíduo e dos poderes da sua inteligência, mas igualmente o regime da palavra livre e da discussão de tudo por muitos. Não surpreende, assim, que tenha sido o ensaio o gênero de eleição do liberalismo combatente, desde os escritos de Bacon e de Locke aos de Voltaire e de Montesquieu. Mais tarde, a América Latina conhecerá também sua onda de ensaísmo, e suas nações nascidas sob a égide do Iluminismo se conhecerão e se reconhecerão por meio de seus grandes cultores do gênero, os quais deram, por exemplo, à literatura brasileira, nas obras de Sérgio Buarque de Holanda e de Gilberto Freyre, alguns de seus textos mais impressionantes. O ensaio, estranho ao imperativo de precisão que limita a linguagem e o alcance dos problemas tratados no artigo científico, permite articular as grandes questões do tempo e livrá-las ao exame público. Se as democracias não podem prescindir dos especialistas, seu vigor depende da qualidade e da liberdade daqueles que formulam os temas de interesse geral.

A tradição ensaística de que Montaigne é um dos precursores está longe de ter se extinguido, e um Tony Judt, um Mario Vargas Llosa e um Jean-Pierre Le Goff não somente lhe deram continuidade como lhe emprestaram força, transformando-o em meio de análise da sociedade contemporânea. Ainda assim, uma mudança fundamental no sistema cultural não deixa de suscitar interrogações quanto ao estado atual e à evolução do gênero. Que tipo de intimidade intelectual pode estabelecer-se hoje entre o ensaísta e o leitor médio em uma época pós-cultural? Que comunidade pode haver quando falham os mecanismos de transmissão da cultura (a escola, a crítica), ao passo que fragmentos da velha tradição artística e intelectual chegam ao público mediados pela internet e pela indústria cultural, um elemento entre tantos na geleia geral da mídia eletrônica?

Não é propriamente que não exista mais público culto; é que aquela indefinição entre cultura e entertainment diagnosticada por Hannah Arendt nos anos 60 se tornou a nossa realidade mais cotidiana, e essa situação só pode ter consequências para um dos gêneros que representaram a cultura em toda a sua glória. Por um lado, os intelectuais universitários frequentemente batem em uma retirada total da ágora, em prol do idioleto dos especialistas e dos gêneros dirigidos a uma comunidade estrita. Por outro, o intelectual público por vezes deixa-se definir como agente antes da mídia eletrônica do que da expressão escrita, mais um formador de opinião ao lado de cantores, de atrizes e de esportistas. Alteraram-se as condições para aquela escrita em liberdade que, sendo no fundo assentada em uma cultura aprendida desde o berço, podia aflorar um sem-número de temas revelando neles aspectos insuspeitados, ao mesmo tempo em que deixando-os em aberto como quem lança uma pergunta, tal como ocorre nos Ensaios daquele gascão solitário e civil que se fazia um lema da resistência a qualquer dogmatismo: “Eu não ensino, eu relato”.

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.