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Nossa última utopia

por Rodrigo Coppe Caldeira

Política e religião são temas bastante importantes, especialmente nos últimos tempos. Certamente são muitas as perspectivas que essas duas grandezas da história podem ser analisadas. Vale lembrar que as relações entre ambas vão muito mais longe do que padres se envolvendo em política na década de 1960 ou pastores evangélicos atuando no congresso nacional. Religião e política estão relacionadas quase que geneticamente. Assim, sua manifestação não tem nada de nova, mas pelo menos 300 mil anos. Foi no alvorecer do homo sapiens que ela fez sua aparição. Naquele tempo, que em relação ao processo de evolução humana de 2,5 milhões de anos pode ser considerado ontem, vivíamos caçando, comendo restos de carcaças de animais e coletando frutos. Num ambiente altamente imprevisível e perigoso, em que a sobrevivência era alcançada ao custo da violência permanente, a vida não passava sem a referência divina. Toda a existência estava mergulhada em dezenas de referências mitológicas que sustentavam a vida a fim de suportarem os perigos reais e imaginários. Como demonstra Brian Hyden em seu Shamans, sorcerers and saints: a prehistory of religion, a maior parte da história humana – 99,5 % – se dá no período paleolítico. Isso quer dizer que a maioria de nossos afetos e também o próprio fenômeno religioso se desenvolveram nesse tipo de organização social. Como animais de horda nunca nos configuramos sem passar ao largo do religioso e das crenças que o substanciam. As divindades e os deuses sempre tiveram um papel preponderante na forma como dispusemos a vida coletiva e suas hierarquias. Tiveram até mesmo uma função no processo evolutivo. Nisso não há muita novidade. O universo simbólico em que os sapiens estão mergulhados não traz esferas de sentido diferenciadas, como vamos testemunhar bem mais tarde no que se convencionou chamar de modernidade. Isto é, não há domínios em que os deuses não tocam. A experiência da diferenciação dos espaços sociais livres da influência religiosa é, como se pode ver, uma experiência bastante rara. Pontual, único e quase improvável é a existência de sociedades em que a religião não tem um papel de destaque na formação de substratos fundamentais em que estão baseadas. Ela foi determinante na construção dos espaços habitáveis, onde os humanos podem pertencer e viver, compartilhando sentidos e expectativas. Organizar o mundo foi por muito tempo acessar um elemento exterior que a dispusesse na forma que se desejava.

Num ambiente altamente imprevisível e perigoso, em que a sobrevivência era alcançada ao custo da violência permanente, a vida não passava sem a referência divina

Uma das ilusões modernas foi acreditar que seria possível dispor da vida sem a religião – crenças totalizantes que fornecessem amplos elementos de sentido para a vida individual e coletiva. Toda renúncia pressupõe um novo objeto. Desde Gustave Le Bon e seu Psicologia das multidões de 1895, sabemos que não se é “religioso” apenas quando se adora a um Deus ou se participa de uma igreja, mas também quando o sujeito volta todas as suas forças, todos os recursos de seu espírito ao serviço e em direção de uma causa. Assim, fazer a experiência de um mundo que não tem a religião stricto sensu como fator que desempenhe papel crucial em sua organização, não nos leva à consequência necessária de que as crenças, e toda a bagagem moral que vem a elas acoplada, deixaram de operar e desempenhar papéis de argamassa social. A própria ideia de um Estado secular, ou seja, que se organiza a partir de um ideal de neutralidade no que tange a práticas e doutrinas religiosas, parece ter se tornado uma dessas ilusões. Tal ideal moderno passou por um processo de naturalização tamanho no caminho da consolidação do projeto moderno ocidental, que é tomado como um modelo universal e atemporal, que deve inclusive ser exportado para um mundo que não é o nosso. O Estado democrático liberal, secular e neutro, em que as diferenças podem se dispor sem serem incomodadas talvez tenha se tornado, sem nos darmos conta, nossa última utopia.

Quase improvável é a existência de sociedades em que a religião não tem um papel de destaque na formação de substratos fundamentais em que estão baseadas

É evidente que não estou, de modo sub-reptício, defendendo um Estado teocrático ou qualquer tipo de monismo moral. Longe disso. Ainda creio, sem traços de confiança desmedida na capacidade de sua máxima concretização, que a melhor forma de organização é aquela que assegura aos seus cidadãos a escolha livre do caminho que desejam seguir a fim de se realizarem a partir de seus próprios valores. No entanto, isso não quer dizer que devemos impor tal compreensão a outros povos que vivem a partir de outros registros político-culturais e existenciais, nem muito menos acreditar que essa disposição política é a última fase da história e que está garantida. Nada mais irrefletido e pouco afeito ao pensamento histórico do que acreditar que chegamos ao fim da história, essa lenda moderna. Também problemático é acreditar numa neutralidade estatal como garantidora de uma pretendida paz perpétua. As escolhas que o Estado moderno encarna a partir de inúmeros processos estão carregadas de valores, de visões de mundo e, particularmente, de uma visão sobre o que é o ser humano. No fundo, a luta política está embebida por inúmeras doutrinas antropológicas (até onde vai a plasticidade humana?).

A derradeira etapa da escatologia liberal parece nos levar ao reino controlado das subjetividades (contradição?), quando todas elas poderão se afirmar livremente num espaço em que nada tenham a compartilhar, a não ser a possibilidade de serem o que desejarem. Um mundo em que os emancipados – os livres de todos os enraizamentos e velhas tradições – se tornarão, no último momento, também emancipados uns dos outros. Estarão isolados e avessos às influências inoportunas e desestabilizadoras que chegam de fora. Compromisso com o eu, indiferença com o outro. A exterioridade é aquilo que não sou eu, o que me escapa e é perigoso. Uma vida sem risco, conflitos e desencontros. Por consequência, sem misericórdia nem perdão. É esse ideal do humano radicalmente emancipado o valor moral que rege a nova utopia. Philip Rieff diagnosticou, em seu The triumph of therapeutic. Uses of faith after Freud (1966), essa nova era como uma cultura terapêutica, em que o foco é a libertação pessoal, definida como a busca pelo sujeito de seu interesse pessoal, que se torna o único princípio da ação e julgamento. Como não poderia ser diferente, o ideal e os mecanismos que levam a nova utopia adiante não escapam das contradições que engendram enquanto tentam construí-la. A ânsia em construir uma ordem gera todo tipo de problemas. O sucesso de seus empreendimentos parece ser sua própria perdição. As ambições estatais climatizadoras sempre apresentam seus furos. Se chegamos a uma nova fase da arte de pastorear humanos, também experimentamos toda a ambivalência que dela nasce. Nossa busca pela ordem, coerência, determinação e probabilidade, nos faz encarar a todo momento o que há constantemente de desordem, incoerência, indeterminação e improbabilidade. Como bem notou Zygmunt Bauman, estamos mergulhados nas ambivalências – tudo aquilo que não pode ser definido, gerenciado, administrado. Por isso, a utopia, por nunca escaparmos delas.

Nossa busca pela ordem, coerência, determinação e probabilidade, nos faz encarar a todo momento o que há de desordem, incoerência, indeterminação e improbabilidade

A questão que resta, parafraseando a pergunta do filósofo e jurista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde, gira em torno da possibilidade de uma organização social secular, laica, livre das influências religiosas, neutra, que possa se garantir única e exclusivamente sem qualquer noção pré-jurídica (religiosa ou não) que forneça elementos que sejam compartilhados por seus cidadãos, a fim de garantir-lhes um solo comum. Espaço habitável, em que o outro não é meramente um outro, mas alguém que encontro, deixando-me por ele ser desafiado incessantemente.

Rodrigo Coppe Caldeira

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)