Filosofia

O alerta multimilenar de Epicuro

por Luiz Bueno

Tenho desfrutado do prazer de falar com meus alunos de uma figura muitíssimo interessante da antiguidade grega: Epicuro. Esse grande pensador do passado, que viveu na Grécia  (341-270 a.C.), é conhecido pela associação que estabeleceu entre vida ética e prazer. Quem quiser conhecer uma de suas obras, pode ler o opúsculo Carta sobre a Felicidade (a  Meneceu). Para ele, o prazer é o elemento fundamental para se saber se alguém está ou não agindo segundo o bem em sua vida. Aparentemente, portanto, um figura que estaria muito bem adaptada ao tempo presente, em que o prazer individual é colocado no mais alto grau de importância. Mas, nesse aspecto, parece-me que  Epicuro se torna um pensador altamente interessante exatamente pelo fato de se distinguir muito claramente de pensadores atuais quando a questão é saber qual a natureza desse prazer e que lugar ocupa em nossas vidas. Afinal, nosso tempo se dedica à incessante busca desse bem fugidio, quase intocável, que é a felicidade, a qual associamos quase que diretamente ao desfrute imediato do prazer da posse de coisas externas e materiais ou ao sensualismo imediatista e individualista.

Além desta aproximação com o presente em relação à centralidade prazer, é preciso lembrar, também, que o pensamento de Epicuro era radicalmente materialista. Pensarão os homens do presente: novamente, coincidimos em nossos fundamentos pois também nossa época é profundamente materialista! E o materialismo do presente em grande parte opera como fundamento do individualismo hedonista que predomina em nosso tempo. Nossa concepção de bem-estar e de prazer se fundamenta no esforço pela acumulação de bens materiais sem os quais achamos não ser possível a obtenção deste prazer. E sem este prazer, não alcançamos a felicidade. Assim pensa-se em nosso tempo. E assim, novamente, podemos perceber a diferença em relação a Epicuro.

Para Epicuro, o seu materialismo significava entender que a vida humana, assim como o próprio cosmos, era fruto de um grande acaso que teria reunido os átomos que formam o corpo dos homens assim como a natureza e os astros, que não teria havido nenhum plano e nenhuma intencionalidade no surgimento de tudo quanto existe. O fato de um homem estar vivo seria simplesmente um produto de pura contingência. Os corpos, tanto inanimados quanto os animados, eram apenas o produto de um arranjo casual de átomos. A morte, aliás, significaria apenas separação dos átomos que compunham os corpos particulares. Assim, diz Epicuro, “quando eu estou, a morte não está; quando a morte está, eu já não estou”. Portanto, nada a temer de um pós-morte que simplesmente não haveria.

O materialismo de Epicuro tinha como resultado a valorização da existência presente, mas, ao mesmo tempo a percepção de que a dependência de valores materiais que não fossem essenciais à existência humana apenas trariam intranquilidade, perturbação, portanto, sofrimentos que afastariam este homem da felicidade buscada.

Assim, o materialismo de Epicuro vai estar relacionado diretamente a seus princípios éticos, os quais se afirmam sobre a noção de que o movimento básico de um ser humano é o da busca do prazer e da fuga do sofrimento. Mas, o prazer a que Epicuro se refere é aquele derivado da satisfação dos desejos relacionados às necessidade fundamentais da existência humana. Para ele, os desejos remetem a três tipos diferentes de prazeres: os naturais e necessários, o naturais e não necessários e, finalmente, os não naturais e não necessários.

Assim, a primeira categoria, do desejo de prazeres naturais e necessários, mostraria o quão pouco precisamos para viver bem e de forma prazerosa. As necessidades naturais, ao serem atendidas, geram prazer e tranquilidade. São os desejos de alimentar-se, descansar, curar-se de uma doença, proteger-se das intempéries e dos rigores da natureza e outras necessidades deste jaez. Se um homem atende a estas necessidades, sua satisfação de existir é imediata, ele experimenta a tranquilidade pois precisa de poucas coisas para satisfazer tais necessidades e desejos. São prazeres simples e atendidos de forma moderada, comedida.

Os prazeres naturais mas não necessários são de natureza tal que, ao serem atendidos, muito rapidamente voltam a ser desejados e, se não atendidos, geram frustração, ansiedade, medo. São prazeres que nunca são propriamente satisfeitos. Assim são a comida e bebida em excesso, o sexo constante e tantos outros prazeres sensuais que, apesar de naturais, não são necessários à sobrevivência de um indivíduo, muito menos a uma vida tranquila. Pode-se muito bem viver, e bem, sem eles. (É claro que essa é uma ideia bastante controversa pois há elementos não naturais que nos trazem grande prazer, como a arte, por exemplo).

O terceiro tipo refere-se a tudo aquilo que não é natural e, portanto, em nada necessário à existência humana. Nesta categoria entram a riqueza, a glória, a fama e, claro, o poder. E este último refere-se principalmente ao poder derivado da atividade política. Ora, se riqueza e poder não são naturais e nem necessários a uma vida prazeirosa e tranquila, os homens que desejam alcançar a tranquilidade, vencer o medo e viver com prazer, devem afastar-se da atividade política o mais possível, assim como das relações sociais na polis bem como da dependência da riqueza material. Epicuro valoriza as relações próximas com poucos amigos.

A felicidade, portanto, dependeria de se alcançar individualmente a paz de espírito, aquela tranquilidade que se experimenta quando se alcança a clareza do pouco que é necessário para um homem viver bem, sem perturbações em seu espírito.

Peter Paul Rubens, “O Banquete de Acheloüs”

O que chama a atenção na reflexão de Epicuro é que ela opera como um grande alerta multimilenar que ecoa pleno de sentido particularmente para o nosso tempo. Em uma sociedade que, ao abandonar suas referências tradicionais que embasavam nossas ética e nossa noção de bem-viver, perde o vínculo com o passado, deixando a nós, indivíduos, apenas com a possibilidade da experiência presente e imediata, pois também o futuro se apresenta absolutamente incerto. Vivendo a vida apenas no presente e sem nenhuma referência não material, apostamos todas as nossas energias na busca da felicidade pela via do desfrute material imediato. Ocorre que isso equivale a uma busca incessante, que não se esgota, por acumular e consumir aquilo que nos satisfaz no momento. Esperamos, com isso, que a posse de algo para seu usufruto imediato possa nos trazer a esperada felicidade.

Epicuro, contudo, já alertara que fazer a felicidade depender de elementos de desejo que são não naturais e não necessários apenas nos conduzirá à intranquilidade, à perda da paz de espírito. Assim, o sofrimento se instaura e a felicidade, mais uma vez, nos escapa. Sem a felicidade, manifesta na forma da paz de espírito, a intranquilidade e o medo se instalam novamente. E essas formas de sofrimento aparecem sob a forma de ansiedade, frustração, depressão — males que, não por acaso, são considerados as doenças do nosso tempo.

É claro que a vida com conforto material é objeto de desejo da maioria das pessoas, mas a busca desse tipo de conforto como o único a ser considerado cobra um preço psíquico individual, e mesmo social, muito alto. Em uma sociedade que pensa que a felicidade, mais do que um direito, se tornou uma obrigação, as consequências desta perspectiva hedonista atual têm se mostrado perversas.

Epicuro, não por acaso, escolheu como lugar de reunião com seus alunos e amigos, um edifício em meio a um horto nos arredores de Atenas, longe do burburinho da Ágora, longe das relações estabelecidas na polis.

Sabemos que a modernidade representou a derrocada e o abandono dos significados tradicionais para a vida humana e para o mundo, esvaziando-os de qualquer sentido ou valor que lhes pudessem ser inerentes. Mas uma vida sem sentido, fruto do acaso, sem nenhum valor, que não caminha para lugar algum, que se dissolve completamente na morte, como pode ser enfrentada e vivida satisfatoriamente? A resposta moderna para essa grande questão é diferente daquela de Epicuro.

O homem moderno, já havia prevenido Pascal, se esconde da consciência do seu vazio através dos divertissements, o entretenimento, o passatempo, aquilo que retém nossa atenção para que não pensemos em coisas que queremos evitar, aquilo que nos desvia da consciência da nossa condição precária de um ser que está muito, muito perto do nada. Estar ciente e viver diante deste vazio de valor e de sentido é algo que a humanidade não quer, especialmente em nosso tempo. Preferimos distrair nossa atenção e achar algum significado e valor nas coisas que adquirimos. O consumo de bens materiais e mesmo de bens simbólicos é uma forma de evitar pensar sobre este vazio de valor e de significado e de buscar no prazer imediato o valor da existência. Não é à toa que o consumo nos oferece produtos e serviços de todo o tipo que pretende atender nossa necessidade de significado e de valor, produzindo prazer em graus variados. Que seria do ser humano moderno sem o consumo? Um desesperado? E que seria deste homem desesperado sem os seus objetos de prazer? Alguém que precisa constantemente de remédios para não ter que pensar nisso e, assim, evitar o sofrimento da alma. Mas, não era exatamente sobre isso que Epicuro tentou nos alertar? Já faz mais de dois mil anos que esse preço foi previsto e anunciado pelo filósofo do Jardim dos arredores de Atenas.

Como já propusemos em artigos anteriores, olhar o presente a partir da ótica do passado -em vez de olhar o passado a partir do presente- nos oferece perspectivas muito ricas para entender a nossa condição atual.

Luiz Bueno

Luiz Bueno é Bacharel e Mestre em Filosofia e Doutor em Ciências da Religião. Professor de Filosofia na FAAP. É autor do livro "Gertrude Himmelfarb: Modernidade, Iluminismo e as Virtudes Sociais", publicado pela É Realizações.