Sociedade

O Auto dos Privilégios

por Juliana de Albuquerque

Surgido na Idade Média, o Auto é uma composição teatral curta, cujo principal objetivo é a representação simbólica de conflitos morais e religiosos. Ele caracteriza-se pela utilização de elementos cômicos. O seu principal efeito é moralizante. No entanto, a comédia muitas vezes desperta, também, o elemento de crítica social.

Nesta semana participei inadvertidamente de um Auto virtual. Ao compartilhar o texto do colega Jerônimo Teixeira —  Blog Intervenção, Revista Veja —  fui inserida em uma discussão acalorada sobre um tema aparentemente trivial. Dessa vez, sobre a artista Mallu Magalhães e o seu pedido de desculpas pelo clipe da música Você não presta.

No clipe, a cantora aparece dançando ao lado de artistas negros em cenários de periferia e, por isso mesmo, é acusada de racismo. Em seu texto, Jerônimo discute essa acusação e acrescenta que nenhum artista deveria se sentir coagido a pedir desculpas. Quando um artista pede desculpas pela sua obra, ele limita a liberdade de criação do artista seguinte.

Concordo. Mallu Magalhães é, certamente, muito nova para lembrar da controvérsia envolvendo o cantor e compositor Paul Simon que, em 1986, durante o lançamento do álbum Graceland, foi acusado de insensibilidade política, racismo e do que hoje se chamaria apropriação cultural..

Atraído pelo som da banda sul-africana Boyoyo Boys, Paul Simon viajou para a África do Sul e formou uma parceria com artistas negros locais, dentre eles, o guitarrista Ray Phiri, o baixista Bakthi Kumalo e o grupo Ladysmith Black Mambazo, responsável pelo belíssimo coro nas faixas “She’s got Diamonds in the Sole of her Shoes” e “Homeless”.

O problema é que, na época, a África do Sul vivia os últimos momentos de um violento e condenável regime de segregação racial em que os negros, além de serem forçados a viver em zonas separadas do resto da população, tinham pouco ou nenhum acesso a educação, saúde e segurança: serviços que, para eles, também eram oferecidos com precariedade pelo governo de minoria branca.

Assim, uma das críticas direcionadas a Paul Simon argumentava que, ao viajar para a África do Sul, ele teria se aproveitado de um sistema violento que privilegiaria brancos, e explorado o trabalho de artistas negros para finalmente apropriar-se e vender uma expressão cultural que não era sua, para um público inevitavelmente composto por estrangeiros.

Mesmo diante dessa queixa e, depois de ter o nome inscrito na lista de assassinatos do grupo de militância radical, AZAPO, Paul Simon seguiu adiante e, durante um dos eventos de lançamento de Graceland, soltou a seguinte declaração:

eu sinto que estou do lado dos artistas. Eu não pedi permissão para o ANC. Eu não pedi permissão para Buthelezi, ou Desmond Tutu, ou para o governo Pretoria. E para lhes dizer a verdade, eu sinto que, quando existe uma transição radical de poder, seja à direita ou à esquerda, os artistas sempre se fodem.

Não há motivos para discordar dessa colocação do Paul Simon. E, se há bem pouco tempo os maiores inimigos dos artistas eram os regimes de exceção, hoje, além destes, somam-se os exageros, a ignorância e a incoerência ideológica de movimentos da sociedade aberta.

Em matéria para o portal de notícias G1, o músico e artista popular Emicida, posicionou-se sobre a polêmica envolvendo a colega Mallu Magalhães:

Acho que há uma mania, às vezes, de salvar quem não está pedindo socorro. Você se coloca numa posição de dizer: ‘Esses bailarinos são ignorantes, não gostam de ser pretos, são cegos para sua autoestima’. Uma terceira pessoa está dizendo para eles que eles estão sendo usados… A gente tem problemas mais sérios do que esse. Entendo que isso é o que dá uns ‘likes’ na internet. Mas eu não tenho vontade nenhuma de participar da discussão.

O Emicida está certo. Mas, embora a discussão sobre o vídeo clipe de Mallu Magalhães soe trivial, ela revela uma porção dos sintomas que nos impedem de resolver os nossos problemas mais sérios, dentre eles, a raiva e a necessidade de retribuição que permeiam os nossos relacionamentos pessoais e a nossa atuação na esfera pública.

Principalmente através de movimentos sociais que, apesar da legitimidade de suas causas, acabam se tornando marginais por não saberem defender as suas demandas — de maneira adequada e produtiva — nem para as minorias que dizem representar e, menos ainda, para a sociedade como um todo.

Em seu livro mais recente, a filósofa norte-americana Martha Nussbaum propõe uma investigação sobre o papel da raiva nas relações humanas. Ela questiona o valor da raiva enquanto emoção condutora das nossas demandas por justiça e chega à conclusão de que:

… a raiva ainda poderia ter alguma utilidade limitada enquanto sinalização, para o eu e, ou, para os outros, de que uma injustiça foi cometida; enquanto uma fonte de motivações para abordar essa injustiça e, enquanto meio de intimidação de outrem, desencorajando as suas agressões. No entanto, as principais ideias decorrentes da raiva são profundamente defeituosas: incoerentes, no primeiro caso; ou normativamente desagradáveis, no segundo.

Mas qual seria, então, o melhor candidato para substituir a raiva enquanto atitude perante uma possível injustiça? É neste aspecto, ao tentar responder essa pergunta, que Martha Nussbaum se revela uma das grandes intelectuais do nosso tempo.

Cena de Joana d’Arc na Fogueira, oratório de Paul Claudel e Arthur Honegger (foto: Chris Lee)

É também aqui que nós retomamos o principal tema deste artigo: o pedido de desculpas de Mallu Magalhães aos ofendidos pelo clipe da sua nova música.

Segundo Nussbaum, o perdão desponta como o principal candidato a substituto da raiva em cenários de injustiça. No entanto, o conceito de perdão que nós herdamos da nossa cultura não deixa de ser problemático e deve, por isso mesmo, passar por uma investigação rigorosa sobre as suas origens. Assim, diz-nos Nussbaum que Nietzsche estaria correto ao notar que, aspectos proeminentes da moral judaico-cristã, incluindo o seu ideal de perdão — principalmente o que ela identifica por perdão transacional — poderiam ser vistos como um deslocamento de uma vontade de vingança, ou revanchismo. Isto é, como uma expressão dissimulada de ressentimento.

Algo que, ao invés de contribuir para o maior entendimento e tolerância nas relações humanas, continuaria a prejudicar a maneira como nos relacionamos seja através da nossa participação na vida pública, ou através do modo que nós encaramos os nossos próprios sentimentos na vida privada.

O perdão transacional que Nussbaum tanto critica, funcionaria da seguinte maneira: alguém, ao sentir-se ofendido por algo, deseja, a qualquer custo, extrair um pedido de desculpas do possível agressor. Algo que nós conhecemos bem através das seguintes expressões: Você me deve desculpas! A sociedade, a história, a ciência, nos devem desculpas!

Esse desejo, no entanto, seria guiado pela mesma vontade de retribuição que caracteriza a raiva. Revelando assim, os seus mesmos defeitos e, através deles, uma mentalidade rancorosa e inquisitorial a ser evitada.

Na Idade Média e ainda na Moderna, o auto-de-fé era uma cerimônia pública em que — os penitentes acusados de crimes de heresia, depois de torturados em cárcere, procedidas as confissões de culpa para as queixas mais absurdas — culminava com o sombrio espetáculo da morte na fogueira.

Na semana que passou, um amigo do Recife, compartilhou conosco uma frase de Miguel de Unamuno, autor de O Sentimento Trágico da Vida e tantas outras obras valiosas. Questionado sobre as suas convicções religiosas, o filósofo espanhol disse o seguinte: “Aquí en España somos católicos hasta los ateos.

Essa mesma frase aplica-se aos brasileiros, sejam eles católicos ou não; ateus ou não. O que nós vemos hoje, tanto nas nossas discussões políticas, quanto na fala de muitos representantes de movimentos sociais, são reflexos de práticas inquisitoriais. Assim, infelizmente, ao pedir desculpas, Mallu Magalhães participou, inadvertidamente de um auto-de-fé.

Na sua discussão sobre a raiva e o perdão, Martha Nussbaum nos chama atenção para o que há de problemático nos elementos que dominam a moral judaico-cristã. Ela também discute os elementos positivos dessa tradição moral que, infelizmente, foram esquecidos pela ênfase dada, em nossa cultura da raiva, ao ideal de perdão transacional.

Seria esse o momento de, seja com Nussbaum ou Nietzsche, investigarmos o que há na origem das nossas atitudes? O desafio não é simples, mas poderá nos render grandes benefícios. Trata-se da análise cuidadosa e da reavaliação dos nossos princípios morais.

Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.

Para saber mais:

Os três primeiros coros da rocha

Vox populi, vox dei, ou Marco Antonio contra Brutus: como inflamar a opinião pública a fazer justiça a homens honrados

O caminho da cruz