Cinema

O cinema morreu, viva o cinema: ‘Twin Peaks’ foi o melhor filme de 2017? (I)

O agente Dale Cooper e o homem de um braço só no Black Lodge: a terceira temporada de “Twin Peaks” marcou 2017.

por Rodrigo Cássio Oliveira

Desde que a revista Cahiers du Cinéma anunciou a terceira temporada da série Twin Peaks no topo da sua lista de melhores filmes de 2017, uma discussão latente sobre o sentido de uma classificação como essa parece ter ganhado mais importância para o público e a crítica. Não é o mérito artístico da série de David Lynch que está animando este debate, mas sim o seu posicionamento entre filmes que foram concebidos originalmente para as salas de cinema. Por quais razões um produto audiovisual que não foi exibido na tela grande, e tampouco foi criado para isso, deveria constar em uma relação de melhores obras cinematográficas?

A relevância histórica da revista francesa fez com que a sua escolha de Twin Peaks repercutisse de modo um pouco mais altissonante no meio especializado. Os redatores da Cahiers, porém, não estão sozinhos. A série aparece em várias outras listas individuais ou coletivas, quase como se David Lynch tivesse realizado uma profecia ao declarar, na época do lançamento, que “Twin Peaks é um filme dividido em 18 partes”. Terá a crítica levado essa afirmação a sério demais? Até que ponto o peso do nome de Lynch, diretor de cinema, pode ter influenciado nessa decisão?

Essas questões são de difícil sondagem, e exigem um empenho de análise da atuação da crítica de cinema, pelo menos desde que a chamada Segunda Era de Ouro da televisão norte-americana se firmou como um dos fenômenos mais interessantes da cultura de massas das últimas décadas. Para quem não conhece essa história, ela é contada no bom livro de Brett Martin, Homens Difíceis, publicado em 2015 no Brasil.

Em que pese a singularidade de Twin Peaks, há outras produções que também resultaram dessa fase de refinamento estético das narrativas seriadas e certamente mereceriam entrar em listas de melhores do ano. Apenas para ficar com duas muito conhecidas, há temporadas intermediárias de Mad Men e Breaking Bad que não devem nada a Twin Peaks em critérios como coerência formal, domínio da linguagem audiovisual, elaboração dos personagens ou capacidade de apuramento do estilo.

É claro que é possível separar a terceira temporada de Twin Peaks desses exemplos, por preferirmos o seu surrealismo libertário ao modernismo enigmático de Mad Men, ou por preferirmos o bizarro lynchiano ao rigoroso e sutil melodrama que faz o estilo de Breaking Bad. Mas a qualidade de uma criação artística não está ligada às variáveis estilísticas que ela incorpora ou rejeita, e sim ao modo como ela se apropria dessas variáveis. Se o surrealismo de Luis Buñuel fosse condição necessária para conquistar um lugar na história do cinema, o que faríamos com John Ford, Raoul Walsh, D. W. Griffith e incontáveis outros diretores que estão na extremidade oposta no espectro dos estilos?

“Até parece cinema”

No cerne dessa adesão da crítica a Twin Peaks ainda se pode perceber as ressonâncias de um juízo de qualidade que hierarquiza o cinema e seus “outros” (a televisão, o vídeo ou demais formas de audiovisual), tomando o primeiro como um termo comparativo capaz de revelar o valor de uma obra. Essa hierarquização está na famosa frase “até parece cinema”, muito dita por espectadores que se surpreendem ao encontrar, nas séries, um emprego da linguagem audiovisual que só conheciam no cinema.

Hank e White no deserto: apuro formal e conflitos complexos em “Breaking Bad”, série da TV aberta americana.

Em Breaking Bad, por exemplo, há um padrão de composição dos quadros que evita constantemente o esquema mais simples de decupagem da televisão clássica, bem como uma fotografia que serve a fins expressivos pouco comuns em séries menos rebuscadas. Para o espectador que se formou em momentos anteriores ao atual cenário, é natural que o primeiro contato com uma série como Breaking Bad sugira uma aproximação entre o cinema e a TV. Curiosamente, porém, essa aproximação quase nunca é interpretada pela via contrária, ou seja, como se nas séries que servem de exemplo o cinema é que estivesse se tornando televisivo, e não a televisão se tornando cinematográfica.

Incomodado com a opinião cada vez mais comum de que as séries seriam um “novo cinema”, o produtor Mike S. Ryan publicou na revista Filmmaker, em 2015, um ótimo texto que se opõe a essa ideia, elencando uma série de motivos pelos quais as diferenças entre TV e cinema não podem ser negligenciadas. Não é preciso assinar embaixo do texto de Ryan para notar que a comparação impressionista entre filmes e séries suscita problemas teóricos importantes. A noção primária de que as séries de maior qualidade pertenceriam a uma espécie de pseudo-gênero das “séries que até parecem cinema” não resolve nenhum desses problemas. A grande dificuldade dessa perspectiva é abordar o assunto como se houvesse uma mutação que retira a obra do âmbito televisivo, em que ela estaria situada originalmente, e por fim a eleva a um status superior, naturalmente mais qualificado. É como se não existissem os filmes ruins, piores inclusive que a média da produção de alguns nichos de excelência televisiva.

Nessa lógica, o que comprovaria a grande qualidade da terceira temporada de Twin Peaks seria o fato de que ela ascendeu, com muita competência, ao posto de obra cinematográfica; o que, por conseguinte, também liberaria a crítica para vê-la normalmente como se fosse um filme. Por sinal, o Museu de Arte Moderna de Nova York levou tão a sério essa ideia que em janeiro vai exibir as 18 horas da temporada em sala de cinema – dividindo-as, porém, em três partes.

Ajustar conceitos

Uma reflexão mais consistente sobre as questões abertas pela eleição de Twin Peaks como bom cinema precisaria se ater a um ajuste de terminologia. Em resposta ao artigo de Mike Ryan sobre as diferenças entre cinema e TV, é possível fazer perguntas ainda mais radicais sobre o tema. Antes de investigar as razões para contestar que uma série seja vista como cinema, não seria mais importante encontrar as razões para considerar que as séries ainda sejam vistas como televisão? Com os novos hábitos de consumo, somados à multiplicação dos dispositivos exibidores (computadores, tablets, smartphones etc.), não seriam as séries atuais alguma coisa diferente que a realidade da mídia tornou difícil de categorizar? Eu próprio assisti a Twin Peaks por streaming, e embora tenha optado por ver pela primeira vez na sala de TV, revisei alguns episódios pelo laptop em diversos momentos e lugares.

Essa observação não é um detalhe qualquer. As condições de apreciação das obras artísticas sempre foram uma parte constitutiva da experiência estética, e não há motivos para descartá-las na reflexão sobre o que são o cinema e as narrativas seriadas. Outra vantagem de tomar a apreciação como âncora do debate, e não apenas a forma narrativa das séries (como geralmente se faz), é que esse caminho nos mostra que várias das transformações formais das obras (inclusive as narrativas) não podem ser completamente entendidas sem que consideremos as condições do apreciador.

Quando o vídeo e a televisão se popularizaram, os filmes de maior apelo comercial iniciaram um processo de adaptação para exibição em novas telas, muito menores, e novos ambientes, bem mais agitados que no cinema. O conceito de continuidade intensificada, desenvolvido por David Bordwell em livros essenciais como The Way Hollywood Tells It, demonstra que, dos anos 1970 em diante, os filmes passaram a ter um número cada vez maior de cortes (aumentando o dinamismo e as chances de prender a atenção do espectador) e também planos cada vez mais fechados (que exibem os rostos dos atores, eliminando a profundidade de campo).

Seria uma falsa dedução acreditar que a era do streaming e da exibição em dispositivos portáteis acentuou ainda mais essas características porque precisou enfrentar uma nova redução das dimensões da tela e uma instabilidade muito maior da atenção dos espectadores. Mas não significa que o diagnóstico esteja errado. Imaginem alguém que embarca em um metrô assistindo a uma série pelo smartphone, e comparem essa experiência com a do telespectador de TV, sentado em sua confortável poltrona. Comparem também a experiência que tínhamos nas salas de cinema há 15 ou 20 anos, e a experiência que geralmente temos hoje em dia. Há um novo padrão de comportamento entre os espectadores, que parecem se incomodar com a necessidade de se sentarem em silêncio por duas horas na sala escura. Este novo público de cinema tende a se firmar a partir da experiência com as mídias digitais, e as novas gerações vão confirmando a sua preponderância, como mostra uma significativa pesquisa encomendada pelo YouTube em 2016: entre os mais jovens, 89% declaram que usam os celulares quando estão diante da TV.

Por um lado, então, é certo que as condições de apreciação no presente já estão mudando em relação àquelas que originaram a televisão. Mas, por outro lado, as configuração estilísticas que tornam as narrativas seriadas adaptadas aos novos tempos não refletem as mesmas transformações que apareceram no cinema já há mais de quarenta anos. Para as narrativas seriadas atuais, a redução do tamanho das telas é muito menos decisiva do que a multiplicação delas, e a dispersão da atenção dos espectadores não acarretou uma dissolvição das narrativas, como se poderia supor. Nesse sentido, Jason Mittell, outro pesquisador norte-americano, fez uma escolha feliz quando empregou o conceito de complexidade para diferenciar as séries recentes, ressaltando o fato de que elas possuem tramas longas que duram temporadas inteiras, e também tramas curtas que se resolvem em poucos episódios ou apenas um.

Cena da ‘Batalha dos Bastardos”, do nono episódio da sexta temporada de “Game of Thrones”.

Espectadores mais dispersos, narrativas mais complexas. Parece contraditório, mas não é. Se uma narrativa muito extensa e repleta de linhas de ação é um desafio para o nosso entendimento, ela também nos dispensa pelo fato de que não é preciso (nem possível) ter a experiência toda de uma vez só. Logo, o segredo das séries complexas é garantir a atenção dos espectadores sem exigir que eles se mantenham concentrados e focados em um mesmo ponto por muito tempo. Essa liberação do espectador para que ele seja mais ativo está conciliada com a multiplicação das telas. Se você quiser apreciar melhor os planos abertos de uma batalha de Game of Thrones na tela da televisão (que hoje estão bem maiores), ótimo. Mas se estiver muito ansioso e quiser saber logo o que vai acontecer, pode se antecipar e assistir no smartphone a caminho de casa. Em certo sentido, a variação das condições de apreciação acarreta tanto uma maior atividade do espectador como uma maior liberdade para quem cria – o que não é, necessariamente, algo que torne a qualidade mais fácil de alcançar.

O cinema morreu?

Há quem acuse o ponto de vista formalista adotado por autores como Bordwell e Mittell de cair em determinismo histórico quando relaciona a evolução da linguagem dos filmes e séries às condições técnicas dos meios. Mas determinismo, mesmo, seria acreditar em alguma fórmula mágica que pudesse determinar as mudanças em uma forma de arte a partir do conhecimento das condições de cada época. Nessa perspectiva ingênua, quanto mais as telas diminuíssem, mais os primeiros planos se aproximariam dos atores, porque mais o espectador se sentiria desconfortável com planos abertos. Na realidade, fórmulas assim são inúteis, e não ajudam a contar a história da cultura de massas, que é bem menos previsível do que as análises totalizantes gostariam que ela fosse.

Mesmo assim, são fórmulas simples, como essa, que influenciaram algumas das declarações de morte do cinema em pouco mais de cento e vinte anos de história, dificultando que as novidades tecnológicas fossem pensadas só depois de conhecidos os resultados de suas incorporações, e preferindo entendê-las como ameaças à integridade do cinema. Foi assim quando surgiu o som direto, nos anos 1920, mobilizando movimentos de defesa do filme mudo como se disso dependesse a preservação da essência do cinema. Foi assim também quando a revolução digital começou a despontar no horizonte dos cineastas, e Wim Wenders, com um senso de urgência que hoje soa cômico, reuniu em um quarto de hotel os melhores cineastas que estavam no Festival Cannes de 1982. Visto em 2017, o filme que resulta desse encontro, Room 666, é uma encantadora encenação sobre a morte iminente de uma profissão que, mais de trinta anos depois, não deixou de existir. O fato é que a integridade do cinema nunca foi uma noção muito óbvia, e é tão difícil demarcar o seu início ou a sua consolidação como é difícil estabelecer sua causa mortis sem se deparar com objeções dignas de respeito.

Essas “mortes” do cinema são comentadas pelos canadenses André Gaudreault e Philippe Marion no interessante livro O Fim do Cinema?, traduzido no Brasil em 2016. Trata-se de um compêndio bastante completo sobre o assunto, que reúne argumentos de diferentes fontes e culmina na observação de que as técnicas contemporâneas – como a manipulação digital na pós-produção ou a captura de performance – resgatam a animação como o princípio estruturante do cinema. Superada, enfim, a época do realismo baziniano, esse resgate justificaria uma nova abordagem teórica em que tanto o cinema como as narrativas seriadas estariam à luz de um conceito mais amplo de animagem, neologismo pelo qual os autores tentam resolver a grande crise do conceito de cinema e, de certo modo, deixar que ele descanse em paz.

Do ínicio ao fim do livro, Gaudreault e Marion separam as duas posições mais comuns sobre a morte do cinema na era digital. De um lado, autores entusiasmados como Philippe Dubois, para quem o cinema pode existir nos mais diversos lugares, mesmo que estes sejam instalações de arte contemporânea que usam os filmes como matéria-prima para fins que não têm nada a ver com a exibição normal da obra. Do outro lado, opiniões bem menos flexíveis, como a do diretor Peter Greenaway, para quem o cinema foi superado e é preciso que surjam novos conceitos – a exemplo de “animagem” – para nomear as práticas que representam de algum modo a sua sucessão.

Nesse contexto, talvez a proposta de Gaudreault e Marion se consolide como uma alternativa ao famigerado uso do termo “audiovisual” para tratar globalmente de um sem-número de obras realizadas com imagens e sons na atualidade; e o meu próprio uso ocasional do termo, nesse texto, me obriga a admitir a sua praticidade, ainda que alheia a um sentido teórico preciso. Todavia, o debate sobre o fim do cinema parece ser, acima de tudo, tão inesgotável como o são os próprios filmes que não cessam de surgir, mesmo após o registro de tantas mortes do cinema. Nesse sentido, pode ser o caso de ver esse tema por uma ótica inspirada diretamente em certo hegelianismo – justamente aquele que, em outra paragem da crítica contemporânea, fundamentou a parte mais interessante das teorias sobre o fim da história da arte.

Não se trata de ser estritamente hegeliano, no sentido de aplicar sobre o cinema o peso de um sistema filosófico que o explique por inteiro, mas sim de notar que o polêmico fim do cinema pode ter sido a realização histórica de uma ideia que já não está sendo gestada pelos instrumentos disponíveis para os artistas do presente. Isso não significa que o cinema tenha morrido no sentido literal, pois ele não precisa deixar de ser feito – como de fato não deixou de ser. Mas significa, ao contrário do que pensa Dubois, que não é possível ver o cinema em todos os lugares, incluindo aqui as narrativas seriadas, independente de elas serem dirigidas por David Lynch e terem tanta qualidade como a terceira temporada Twin Peaks.

No próximo artigo vou desenvolver um pouco mais este tópico, abordando mais diferenças entre filmes e séries do ponto de vista da experiência estética.

Rodrigo Cássio Oliveira

Rodrigo Cássio Oliveira é doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás. Confira mais ensaios sobre arte, estética e comunicação em www.rodrigocassio.com