Literatura

O dia em que Proust comprou resenhas positivas de seu livro

por Thiago Blumenthal

Quando saiu recentemente a notícia de que Proust teria comprado as primeiras resenhas ao primeiro volume de sua Recherche, boa parte dos pesquisadores, em especial do mundo francófono, logo se pôs a defender o autor, sob o argumento de que garantir uma resenha favorável no jornal era uma prática comum. Verdade. No caso de Proust, que escrevia para alguns jornais da época, a história, contudo, vai um pouco mais além.

É de conhecimento geral que o então jovem autor havia bancado a publicação de seu primeiro livro de seu próprio bolso. Até hoje é assim, na dinâmica entre escritor, obra e editora. Há editoras, e não são poucas, em especial no Brasil (e estamos falando de 2017), que cobram um valor do autor para publicar seu livro. De modo que publicar um livro, desmistificando qualquer ideia pré-concebida, é tão fácil quanto plantar uma árvore ou ter um filho. Mas sim, Proust pagou para ter seu Du Côté de Chez Swann publicado pela Grasset.

A questão que cabe agora é qual poderia ser o público leitor de Proust à época. Quantas pessoas liam de fato na França no período, e quem eram essas pessoas. Ora, o excelente livro La Presse en France: des origines à 1944 nos traz alguns dados importantes. Primeiro que, de acordo com o autor, houve um aumento considerável da taxa de alfabetização da população francesa no fim do século XIX, resultado de políticas públicas e da lei Guizot, de 1833 – de acordo com essa lei, deveria haver pelo menos uma escola em cada comunidade francesa.

Com um público leitor cada vez maior, a publicidade entrou em jogo e idem a diversidade de jornais, com preços mais baixos, atraindo mais consumidores. O fim do monopólio dos correios na distribuição dos jornais foi outro fator que alavancou a tiragem de inúmeros veículos, sem contar o enorme crescimento da rede ferroviária durante a Terceira República. Os impressos chegavam em menos tempos a regiões antes inimagináveis.

Proust por sua vez vai se posicionar mais ligado às revistas literárias e artísticas, além dos quotidiens menos difundidos. O autor guardava uma reserva em relação ao padrão americano dos hard news, da imprensa de massa, do jornalismo de informação. Diante desse quadro a literatura busca se infiltrar nos periódicos de maneira a se fazer presentes nos folhetins de modo seriado e fragmentado, em um processo de certa redemocratização da literatura, que passaria a ganhar novos e maiores públicos. Claro que não se maiores ruídos e dissonâncias. É aí que entra Proust.

O que o difere de outros autores do período é que nenhuma parte da Recherche apareceu em momento algum em nenhum folhetim, que não o livro publicado. Não foi por falta de convite. O então diretor do Figaro, Gaston Calmette, convidou o autor a publicar o romance de maneira seriada em seu periódico, mas a resposta era sempre negativa. Tivesse Proust publicado Chez Swann, por exemplo, a princípio, em um folhetim, hoje decerto teríamos um romance distinto do que conhecemos hoje. Escrever ficção para um jornal requer outra dinâmica, que inclui questões de espaço, de gancho, e principalmente de recepção. O autor, como um autor de novela, tem de trabalhar com a reação do leitor, e com as expectativas desse leitor. Mata-se ou não determinado personagem a partir das reações do leitor.

O Proust que conhecemos na imprensa não é, portanto, o autor da Recherche, mas antes um cronista extremamente heterogêneo que lida com diversos gêneros, temas e estilos, que no fundo serviram de laboratório para sua obra-magna. E o trânsito livre que tinha na imprensa, com boas relações fortalecidas pelo peso de sua família e por questões financeiras, facilitou-lhe resenhas favoráveis ao primeiro volume.

Gosto muito de lidar com esse tema, pois ajuda a desmistificar um pouco da aura inatingível que muitas pessoas têm da literatura. As artes dependem de toda uma rede mercantil que a banca e faz girar mecanismos que a colocam à disposição de seus apreciadores. Um autor pagar para ter sua obra bem resenhada não deveria ser chocante para ninguém, salvo ingênuos primeiro-anistas das letras. Um autor é um autor que fará de tudo para ser publicado e para que falem bem de sua obra. Isso envolve uma rede de amigos, ter poucos desafetos, conviver entre os seus de maneira harmoniosa, e saber pagar bem a imprensa, que sempre foi e sempre será corruptível, em especial aquela que lida com cultura. Isso não faz de nenhum autor menor em suas intenções, em suas ações, em sua moral, muito menos na qualidade de sua obra. Eis Proust para nos provar – e tantos outros.

Lembro-me agora de Machado de Assis, cujas primeiras publicações recebiam resenhas sempre positivas de seus pares da Academia Brasileira de Letras, fundada por quem? Machado ele mesmo. Em 1899, quando seu Páginas Recolhidas é lançado, José Verissimo dedica longa resenha ao livro, dizendo que o livro é “verdadeiro, humano, como aliás é toda obra de Machado”. Ora, Verissimo fundou a ABL junto com Machado e Valentim Magalhães, este que era diretor e editor da revista em que muitos dos contos presentes em Páginas Recolhidas foram publicados antes de virar livro. A quem dedica Machado de Assis seu livro? A José Verissimo. Que por sua vez resenha positivamente o livro. E la nave va. Isso diminui a relevância e a qualidade de Machado? De maneira alguma. Mas nos serve para mostrar que a literatura é mais do que inspiração. É contato.

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Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.