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O êxodo dos judeus do Oriente Médio: testemunhas de um passado arcaico

Zaoud el-Mara, bairro judeu em Alexandria

por Heloisa Pait

Em maio deste ano, Israel celebrou os 69 anos de sua independência. É uma data importante do calendário nacional, com rituais próprios, e que se segue a um dia em homenagem aos tombados em guerras. Mais recente é a celebração, por árabes israelenses e palestinos, da catástrofe, que lembra o deslocamento de parte da população árabe do novo território israelense, no dia seguinte à independência de Israel no calendário comum.

De proporção comparável – cerca de 800 mil pessoas –, um outro enorme êxodo se seguiu a esta independência: o de cidadãos judeus em países árabes e muçulmanos da região (ou MENA, abreviação para Oriente Médio e Norte da África). Hoje, há 5 milhões de refugiados árabes, fruto daquele conflito de quase 70 anos, atendidos por uma agência da ONU dedicada apenas a isso, com orçamento anual em torno de um bilhão de dólares. Não há refugiados judeus. Como pode ser?

Tomemos o exemplo do Marrocos, no oeste do Mediterrâneo. A comunidade judaica local é anterior à diáspora judaica, ou seja, tem mais de dois milênios. Ela permanece no país com o advento do cristianismo e depois do islamismo, recebendo judeus europeus no início da era moderna, perseguidos e expulsos por reis ibéricos. Como a história de qualquer comunidade judaica no planeta, teve seus altos e baixos, perseguições e proteções, oportunidades e restrições. Sobreviveu até a um governo subordinado a Vichy e, em 1948, tinha mais de 250 mil pessoas.

A independência de um pequeno país, do outro lado do Mediterrâneo, desencadeou uma perseguição que espalhou os antigos judeus marroquinos pelos quatro cantos do mundo; muitos foram parar na Venezuela, de onde também tiveram que sair, décadas mais tarde, por semelhantes razões. Foi aliás através dos descendentes destes judeus marroquinos que primeiro me inteirei do desastre para onde caminhava nosso vizinho, ainda em 2001; no ano seguinte líderes democráticos da América Latina dariam carta branca ao governo Chavéz. Hoje há apenas alguns milhares de judeus no Marrocos e outro tanto na Venezuela.

Por que esses judeus tiveram que sair do Marrocos, se ocupações de outros povos, governos e religiões não os tinham removido por séculos e séculos? Essa não é a principal pergunta. O povo judeu tem uma espécie de técnica de migração, aprimorada ao longo dos séculos. Ao chegar nos lugares, constroem associações de auxílio mútuo para a educação, saúde, negócios e também para comprar terras para o cemitério, planejando de certa maneira a perpetuação do vínculo da comunidade com aquela terra, provisório para os vivos, mas não para a história.

A expulsão dos judeus do Marrocos não é, portanto, a pior calamidade que se abateu sobre esse povo antigo: não foi particularmente odienta nem chega o Marrocos a ser um Éden moderno. Essas famílias refizeram suas vidas em outros países das Américas, da Europa e em Israel, aberto para acolher as centenas de milhares de imigrantes que chegaram lá depois da independência e imediatamente torná-los cidadãos. Não se trata aqui de comparar a catástrofe palestina com esse enorme êxodo judaico e ver qual foi pior.

A questão é: Como ficou o Marrocos depois da expulsão dos judeus? Como ficou o Egito? A Síria? Como ficou o Iêmen? O Iraque? O Irã? A Argélia? Um judeu egípcio me contou que o editor dos livros didáticos oficiais do Egito, em Alexandria, foi expulso do país. “O editor”, ele me repetiu, deixando que o silêncio entre nós preenchesse a história de significados. Quem ficou no lugar do editor alexandrino? Como foram impressos os livros para as crianças egípcias? Quem responde isso é a realidade atual egípcia e a de tantos outros países da região, que tiveram arrancados de lá tantos editores, médicos, comerciantes e mulheres letradas no espaço de uma década e pouco.

O mundo árabe de então atravessava um momento crítico, entre a modernidade e a tradição. Um momento de virada, preparando-se para o que os estudiosos da época chamavam de take-off. Uma interessante leitura sobre o assunto é a pesquisa empírica de Daniel Lerner sobre o desenvolvimento das comunicações no Oriente Médio nos anos 1950: ainda atrasada, mas prestes a se expandir. Havia uma enorme parcela da população apegada à tradição, assim como grupos que a politizavam. Mas havia também um setor liberal, urbano e culto cujos laços com o mundo exterior foram cortados por nacionalizações de empresas e expulsões de europeus.

A expulsão dos judeus de todos esses países significou mais que o reforço de uma identidade nacional e rechaço à cultura européia. Implicou um corte nos laços econômicos culturais da região. Como em outros lugares, os judeus do mundo árabe e muçulmano tendem a falar mais línguas a manter mais contatos externos; um interessante livro que trata do assunto a partir de uma perspectiva econômica é “The chosen few: how education shaped Jewish history, 70-1942”, de Maristella Botticini e Zvi Eckstein. O alexandrino que me contou do editor havia estudado na Universidade Americana de Beirut: o árabe e o Mediterrâneo eram sua casa. Isso no plano espacial. Já no plano temporal, estas ancestrais comunidades eram o elo das várias culturas nacionais com seu passado remoto, pré-islâmico e pré-cristão.

Por contraste, na Europa, a figura do judeu, apesar de suas raízes profundas no continente, estava associada ao de fora, ao que chega, como mostra o belíssimo ensaio de Georg Simmel “O Estrangeiro”. Esse estrangeirismo poderia ser algo negativo, usado pelos anti-semitas, ou simplesmente descritivo, como Simmel faz em seu registro. Marx se referiu aos judeus como habitantes dos “poros” da sociedade polonesa, Hannah Arendt aponta que os judeus não participaram (ou seja, não pertenciam) da política alemã, e assim por diante. Já no Oriente Médio e no Norte da África, esse lugar simbólico é muito distinto. As comunidades judaicas não ocupavam o lugar simbólico do estrangeiro, de fora, como na Europa, mas provavelmente o do primordial, de dentro. O lugar dos que estavam lá antes.

Eram culturas-testemunha, ao lado de outras, como a dos coptas, cristãos descendentes dos antigos egípcios, cuja existência revela a história de um lugar. Também estas outras minorias são duramente atacadas na região, mas não em Israel, uma vez que a identidade em camadas não afeta a razão de ser do país, de seu governo e de sua cultura majoritária. Que os samaritanos, por exemplo, descendentes dos judeus anteriores ao exílio babilônico, queiram se manter à parte dos milhões de judeus israelenses, não questiona nenhum pressuposto arcaico ou moderno da vida judaica ou israelense. São testemunhas vivas dos percalços da vida judaica.

Tratamos em geral essas questões de inclusão com os conceitos contemporâneos de diversidade e multiculturalismo, mas quero aqui ressaltar que há uma importante identidade temporal em questão. E não apenas uma acolhida de gentes diversas, como de fato a coisa aparece nos países das Américas, nas chegadas pelo Porto de Santos ou por Ellis Island, onde um passado se esmaece e sobram apenas traços simbólicos que colorem o caldeirão cultural. Nos países onde a própria civilização humana começou, é natural que o tempo exista hoje.

A expulsão dos judeus dos países do Levante e do Magrebe significou a extirpação, em menos de uma geração, de uma identidade profunda, que resistia aos séculos e ao mesmo tempo dialogava com eles. Num indivíduo, isso equivaleria a perdermos a memória de toda a nossa infância e adolescência, o que nos roubaria a possibilidade de entender quem somos e como chegamos até aqui. Como essas comunidades estavam apenas se recuperando de um período longo e pouco dinâmico de sua história, e como não interessasse a ninguém tratar delas politicamente, ficaram esquecidas das narrativas nacionais até recentemente, o que piora ainda mais os efeitos da ruptura.

Por falta de espaço, não vou falar da Pérsia, do Iraque e da ancestral presença judaica nestes países. Nem do Iêmen, que agora se choca consigo mesmo, tendo perdido seus mediadores naturais. E isso tudo, lembremos, simplesmente porque um punhado de judeus obteve o direito de ter seu próprio país, na pouco habitada margem oriental do Mediterrâneo, parte de sua terra ancestral. O tamanho da população de Israel quando de sua fundação era o mesmo que o deste êxodo judaico e, para se ter uma idéia, equivalente à população atual de duas subprefeituras paulistanas.

Para o pequeno país foi boa parte dos judeus do mundo árabe e muçulmano, influenciando sua cultura, sua arte, sua economia e sua política; muitos dizem que o governo se inclinou à direita devido ao voto dos chamados mizrahi. Em sua defesa, é preciso dizer ao menos que a comida de rua em Israel, de origem oriental, é bem mais saborosa que o insosso cardápio dos kibutzim, mais europeu. Viveram em tendas e casas de lata por meses, até que cidades inteiras foram construídas. Foram discriminados pela elite européia. Mas hoje são parte de um dos países mais avançados do mundo, assim como os árabes israelenses, e não clientes de agências internacionais.

O trauma maior desta expulsão não é o deles, mas é o que vemos, todos os dias, nas manchetes pavorosas de um Oriente Médio que não se encontra pois decidiu romper laços consigo mesmo. Os judeus, como gato escaldado, usam as evidências arqueológicas para reforçar seus laços com os antigos habitantes da região, anteriores à expulsão romana, como se ainda se dirigissem a governantes europeus: “Ei, eu sou daqui!” Mas o segredo bem guardado pelos povos da região é que, sim, os judeus são de lá. As guerras que se travam não são entre os povos da região e um intruso, mas sim entre os povos da região e seu próprio rico passado, cristalizado ora num Buda esculpido em pedra, ora num jovem saboreando uma pizza na esquina. Reconhecer Israel exigiria reconhecer-se a si mesmo, e reconhecer-se a si mesmo exigiria uma coragem que os líderes da região ainda não mostrar

Heloisa Pait

Heloisa Pait é socióloga e professora da UNESP.