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O Ifá: uma tradição oral

Rosário de Ifá

por Adriano Moraes Migliavacca

Em 2005, a UNESCO acrescentou ao Patrimônio Imaterial da Humanidade o Ifá, um sistema divinatório que tem sua origem na etnia iorubá, que habita principalmente o sudoeste da Nigéria. Mas o que torna esse oráculo tão especial, digno dessa distinção?

Em primeiro lugar, é de se notar que, tendo se originado entre os iorubás, ele se espalhou por outros povos, recebendo versões entre os Igbo da Nigéria e os Ewe de Gana e do Togo, entre outras. Em segundo lugar, ao se conhecer mesmo a superfície do Ifá, é impossível não se impressionar com a complexidade e a organização do sistema.

Sabe-se que o Ifá é muito antigo, embora sua idade exata seja desconhecida. Entre as etnias africanas listadas acima, ele é amplamente praticado e muito popular. Nas Américas e na Europa, sua prática ainda é restrita a alguns poucos que tiveram sua iniciação no sistema, muitas vezes na África mesmo. No entanto, ele é reconhecido como a base dos oráculos usados pelas religiões de matriz africana.

É importante apontar que, sendo um oráculo, o interesse do Ifá vai para além das artes divinatórias, pois sua prática envolve matemática, literatura, artes visuais e filosofia. O Ifá compreende um corpus gigantesco de textos literários divididos em capítulos chamados odus. A definição de odu é algo extremamente complexo que depende muito do conhecimento do próprio Ifá. Mais do que uma coleção de textos que contêm mitos, o odu é o que se poderia chamar de um condomínio mítico, um âmbito onde ocorrências e padrões se repetem ao longo dos mitos que o compõem e indicam certos caminhos e atitudes a serem tomados pelo consulente, bem como os rituais a serem feitos. Cada odu tem seus próprios temas e padrões. Há dezesseis principais odus, que se combinam entre si, resultando em outros 240 odus derivativos e no total de 256 odus.

Por meio de métodos de consulta aleatórios, o sacerdote de Ifá – chamado babalawo – chega a um resultado que se refere a um odu – o odu em que há as orientações para a pessoa naquele momento exato de sua vida. Essas orientações vêm na forma de textos mitopoéticos altamente ambíguos que necessitam da ajuda do babalawo para que sejam entendidos. Nos textos de Ifá, uma variedade considerável de formas de linguagem se apresenta – há a linguagem narrativa direta, intervenções poéticas em que a metáfora e a alegoria tomam as rédeas, bem como momentos de listagens, no caso, as listas de itens necessários para o ritual de apaziguamento.

Essa variedade linguística é a base do grande interesse literário do Ifá. De fato, sua entrada no mundo ocidental se deu em grande parte por meio de estudos que buscavam, acima de tudo, coletar e sistematizar textos que até então existiam somente em forma oral. Entre esses estudos, podem-se citar os do antropólogo William Bascom e os do linguista Wande Abimbola. Este último se destaca por ser também babalawo, ou seja, sacerdote da tradição de Ifá. Suas obras, todavia, se caracterizam por abordar o Ifá do ponto de vista estritamente linguístico e literário. Abimbola produziu monografias em que analisa com minúcias a estrutura dos poemas de Ifá, discutindo traços linguísticos, forma literária, figuras de linguagem e temas, bem como a forma como todas essas dimensões se articulam.

Nos poemas, vemos uma série de histórias, muitas vezes enigmáticas, com parábolas para as mais variadas situações e comportamentos, tendo como personagens deuses, seres humanos, animais, vegetais, objetos inanimados e até entidades abstratas em um estilo que frequentemente aproxima o sério do cômico. Tais histórias teriam ocorrido no início mítico dos tempos, quando a humanidade se formou, e moldam até hoje nossas vidas. Na consulta ao Ifá, os odus que aparecem informam qual história está se repetindo e como fazer para obter o melhor resultado possível naquela situação. Nesse instante, quando o odu surge em uma consulta de Ifá, o consulente está ligado a cada uma das pessoas que um dia retiraram aquele odu, incluindo aquela que o retirou por primeiro. No entanto, é importante perceber que a visão de destino de Ifá passa longe do fatalismo, já que está na base da ideia da consulta, bem como da prática de ações rituais corretivas, a noção de que se pode fazer algo para mudar uma situação, a ideia de que ela não é inevitável.

Também é marcante a sofisticação estética dos apetrechos de Ifá, especialmente na maneira como refletem a filosofia do oráculo. Nesse caso, se destaca o Opon Ifá, ou tábua de Ifá, que é onde os odus são inscritos durante a consulta. O Opon Ifá é geralmente de forma circular, havendo versões em outros formatos, tendo no topo entalhado o rosto da divindade Exu, que preside sobre o acaso e a sorte; nas bordas, uma série de figuras entalhadas, representando às vezes formas abstratas, outras, seres humanos em atividades diárias, animais, instrumentos e outros. O centro é vazio, é lá que, sobre um pó amarelo, os padrões dos odus são inscritos. Essa construção dá a ideia da dinâmica do Ifá: no centro as informações sobre a vida do consulente vão sendo registradas, ao redor revolvem-se os eventos e objetos do dia-a-dia, acima o deus do acaso observa a tudo, pois é ele que ditará as informações para o sacerdote.

O Ifá, portanto, é um sistema altamente complexo que, ultrapassando sua função divinatória, não apenas inclui literatura, artes visuais, matemática e filosofia, como também as articula. Uma certa combinação matemática, registrada sobre um objeto de arte imediatamente remete a uma série de poemas que contêm histórias nas quais a filosofia de Ifá se faz presente. Por isso mesmo é algo de extremo interesse.

Adriano Moraes Migliavacca

Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul