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O liberal e o czar: o marquês de Custine na Rússia de Nicolau I

por Rodrigo de Lemos

O retorno da Rússia às manchetes internacionais ultrapassa em muito as ações mais espetaculares do Kremlin, como as intervenções na Geórgia, na Crimeia ou na Síria. O putinismo se tornou uma força política internacional a ser considerada, definindo a identidade de partidos políticos nas nações centrais do Ocidente – basta ver seu impacto nas eleições americanas ou nos debates sobre o suporte de Moscou a candidatos da direita nas primárias francesas. Frente a esse aparente renascimento internacional da Rússia eterna sob a égide de Putin, quantos antigos russólogos desempregados desde a queda do Muro não devem ser agora buscados pela imprensa ou pelas universidades para dar sua palavra sobre as pretensões do neo-czar?

Dentro da bibliografia imensa sobre a Rússia à disposição do interessado, tem merecido menos atenção do que deveria, por seu valor literário, de testemunho do gigante em seu despertar, o clássico do marquês de Custine (1790-1857), La Russie en 1839. Astolphe de Custine, para quem não lembra, é o protagonista rabugento do filme Arca Russa, de Sokurov. Uma circunstância central de sua biografia explica ser ele a comandar a revivescência da história russa na obra-prima de Sokurov. Custine era um dândi oriundo de um família aristocrática golpeada pela Revolução. Foi próximo à estelar intelectualidade da Restauração e da Monarquia de Julho, cujos Victor Hugo, Balzac, Chateaubriand, Delacroix e Chopin ele recebia no castelo que dividiu por trinta anos com o ami inglês Edward Sainte-Barbe. Em 1839, parte para a Rússia de Nicolau I advogar indulgência a seu novo amigo, o belo conde polonês Inácio Gurowski, então exilado em Paris pois desgraçado pelo czar. Depois de cruzar todas as Rússias, de ser recebido (por intermédio de Turgueniev pai) por Nicolau, de se fazer confidente da czarina, Custine, de retorno a Paris, põe-se a escrever a série de epístolas coligidas sob o título La Russie en 1839. O sucesso de livraria é imediato. Custine deixa de ser apenas o mundano efeminado, de modos escandalosos; seu nome está em todas as bocas, nas plumas de Stendhal, de Baudelaire.

Cena do filme ‘Arca Russa’, de Sokurov/Divulgação

A rabugice de Custine no filme de Sokurov também tem lastro na história. A figura do marquês correspondia a um tipo comum na paisagem intelectual francesa da primeira metade do século XIX, o do aristocrata liberal, Chateaubriand e Tocqueville sendo dois de seus exemplos mais famosos. Sua antipatia pela Rússia despótica é incontida e imediata; ela transparece a cada linha das epístolas (embora, em um paradoxo apenas aparente, menos ao encontro do próprio czar, cuja firmeza na tarefa enorme de comandar um império como um regimento não deixa de suscitar alguma simpatia).

Não é à toa que lembramos o nome de Tocqueville. O livro de Custine corresponde em mais de um ponto a seu A Democracia na América (1835), em alguns anos seu predecessor. Ambos católicos, ambos filhos da nobreza, representantes do que havia de mais enraizado em uma Europa às voltas com as turbulências da década de 1830, Tocqueville e Custine veem despontar, nos extremos do Ocidente e do Oriente, as novas potências (Estados Unidos e Rússia) que iriam disputar os destinos do mundo no século seguinte, como eles próprios profetizam em seus respectivos livros.

Ambos também são, cada um em seu estilo, finos observadores sociais. Os aspectos de tais sociedades que põem em evidência são menos opostos do que se poderia crer. Por certo, Tocqueville descreve uma democracia liberal, descentralizada e organizada de baixo para cima, na antípoda do czarismo russo. Ocorre que, para Custine, a Rússia é também, à sua maneira, uma democracia. Nela, imperaria uma forma de igualitarismo; na falta de um corpo intermediário, de uma classe aristocrática independente que contrabalançasse a potência do Kremlin, mesmo os grandes senhores, diante do mestre total, assumiriam ares de “escravos altaneiros”: “A autocracia, que não passa de uma democracia idólatra, produz o nivelamento assim como a democracia absoluta o produz nas repúblicas simples”. O descompasso entre democracia e liberdade, eis uma preocupação desses dois aristocratas liberais que foram Custine e Tocqueville – basta lembrar a célebre análise do último  sobre a “tirania das maiorias” na democracia americana.

Para Custine, tudo na Rússia a predisporia à autocracia – a extensão de seu território, o caráter de sua população, miscigenada e a seus olhos semi-bárbara, roída de vícios. A violência de Estado era um dos modos de manter de pé o Império. O outro era a burocracia; a visão dos burocratas em massa pelas ruas de Petesbrugo horroriza o viajante: “servidores do mesmo amo com graus diversos, obedecendo cegamente um pensamento que ignoram; eis uma obra-prima da disciplina; mas a visão dessa bela ordem em nada me satisfaz, porque tanta regularidade só se obtém pela ausência completa de independência”.

No topo do sistema, uma elite eurocêntrica, imitadora da Europa Ocidental não na sua forma de governo ou nas suas liberdades, mas na etiqueta ou na decoração de interiores: “Não repreendo os russos por serem o que são; o que culpo neles é a pretensão de parecerem o que nós somos. Eles são incultos; esse estado deixa ao menos o campo livre à esperança; mas vejo-os incessantemente ocupados com o desejo de macaquear as outras nações, e as macaqueiam à maneira dos macacos, zombando do que copiam”. Nada simbolizaria melhor esse mimetismo do que São Petesburgo. Nascida da fantasia europeizante do czar, perdida em um país plano e pantanoso com sua arquitetura italianizada sem o clima e as montanhas da Itália, a cidade testemunharia da vontade desse povo então periférico de copiar seus superiores, ficando aquém ao mesmo tempo da sua aspiração de ser os outros e de sua condição inescapável de ser eles mesmos. Daí os interlocutores de Custine, ao saberem-no francês, fazerem questão de lembra-lo as mazelas da França de então: guerras, crises, revoluções. O marquês, habituado ao jogos de espelhos dos salões, conhecia os mecanismos do prestígio, da imitação e da inveja.

No relato de Custine (traduzido em inglês como Letters from Russia, pela Penguin, mas incompreensivelmente indisponível em português), impressionam as linhas de continuidade com a história russa ulterior. Não é possível distinguir na “democracia idólatra” que seria o czarismo um ensaio para a autocracia “em nome do povo” no século XX? Nos “escravos altaneiros” de Nicolau I os ancestrais dos membros da nomenclatura estalinista, esmagados impiedosamente por um capricho do amo absoluto? Custine está longe de não admitir nenhuma vantagem no sistema russo; o Palácio de Inverno reconstruído um ano após um incêndio devastador suscita sua admiração; ela cessa com a memória dos milhares de servos sacrificados em condições de trabalho inumanas para esse prodígio de vaidade imperial. Melhor vale a Paris parlamentar, onde “se delibera três anos para reconstruir uma sala de espetáculos”: “Não digo que o sistema político dos russos não produza nada de bom; digo somente que o que produz custa caro demais”. Em um tempo em que jornalistas e universitários justificam com supostos progressos sociais as piores ditaduras comunistas e em que as democracias liberais, engolfadas em simultâneas crises, parecem débeis frente à eficiência econômica e militar de governos autoritários como os da China ou da própria Rússia, a advertência de Custine quanto ao custo humano da “autocracia eficiente” só pode ter seu sentido renovado.

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.