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O poder do mito

por Pedro Sette-Câmara

Tenho a rara sorte de traduzir profissionalmente textos associados àquilo que pesquiso em meu doutorado. Traduzir contratos ou manuais de instruções seria sem dúvida muito mais rentável, mas, para mim pessoalmente, a vantagem acabaria aí, e nem só de pagar boletos vive o homem.

Recentemente, traduzi o prefácio que Jean-Pierre Dupuy, professor de Stanford já citado em textos anteriores meus para o Estado da Arte, redigiu para o livro de Maurício G. Righi que será lançado durante o Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Espero ter a oportunidade de falar do livro quando for lançado; agora, quero me ater a uma simples distinção feita no prefácio que traduzi, e que pode nos levar direto da pré-história, ou talvez dos comecinhos da história (aliás, tema do livro de Righi), até o cinemão maniqueísta de Hollywood. Não se trata de um salto maluco no tempo, mas de uma simples comparação abalizada.

A distinção é a seguinte: Dupuy observa que, até a Segunda Guerra Mundial, a antropologia considerava que os mitos e ritos primitivos diziam respeito a processos sociais. Depois da Segunda Guerra, essa ideia some, e em seu lugar ganha força a ideia estruturalista de que os ritos e os mitos têm muito a dizer sobre a inteligência que os criou, e nada sobre processos sociais.

Todavia, se de um lado lembramos de áridos estudos estruturalistas de Lévi-Strauss embrenhado nas matas brasileiras, de outro pensamos imediatamente nas fórmulas de roteiro do cinema. Antes eu diria “cinema americano”, mas essas fórmulas, como o McDonald’s, já se espalharam pelo mundo; e se é bom saber que no lugar mais exótico você poderá comer aquele mesmo sanduíche do seu bairro, também vale perguntar por que você viajou para um lugar exótico.

Mas voltemos. Hoje é impossível encontrar um manual de roteiro que não fale na “jornada do herói”. Essa jornada é uma espécie de mito estrutural básico, elaborada pelo americano Joseph Campbell por meio da comparação de vários mitos, e respaldada nas ideias psicológicas de, por exemplo, Carl G. Jung, de que os mitos arcaicos se referem a processos psicológicos. Assim, tudo, do seu parto e do seu primeiro machucado no parquinho até seu casamento e sua aposentadoria, pode ser revestido de um caráter… mítico.

Jogue no caldo o simples fato de que homens como Campbell e Jung (e, numa certa medida, nós mesmos) cresceram lendo romances que apresentavam vidas ordenadas como processos de aprendizado, a começar por Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. A descrição de longos períodos de uma ou mais vidas humanas com uma reflexão sobre a experiência, numa certa medida, parece até mesmo definir o gênero romance (e satisfazer nossa sede de sentido).

Capa do Livro: Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (autor: Johann Wolfgang von Goethe)

Os mitos, então, entram como uma espécie de chave da vida individual. A “jornada do herói”, cujo apelo seria comprovado por ter estado no fulcro de pequenas tribos e grandes civilizações, permaneceria viva, hoje, como uma possibilidade que cada pessoa poderia realizar sozinha. Unindo passado e presente, o cinema pode se valer desse apelo como quem se vale de um mecanismo, de um truque: aprenda a escondê-lo bem o suficiente, que o apelo vai funcionar. Esconda bem a jornada do herói, mas mantendo-a presente, que as plateias virão.

Este, porém, não é o ponto em que direi que a jornada do herói é falsa. Que sentido tem dizer que um truque é falso? O que interessa é dizer como um truque funciona, e talvez refletir sobre os motivos pelos quais gostamos desse truque.

Volto então à distinção de Dupuy. Os mitos, em vez de se referirem a processos interiores da mente ou da alma humana (aliás, vejam como isso é confortável: o mundo “objetivo” fica abandonado de antemão às ciências “duras”, evitando toda sorte de perguntas inconvenientes), podem referir-se a processos sociais. Essa foi a ideia retomada por René Girard, teórico francês com quem Dupuy conviveu, cuja obra pesquiso e traduzo.

Resumindo muito a teoria, para Girard a religião arcaica seria um mecanismo administrador da violência. Seu surgimento teria marcado o nascimento da cultura, não porque o homem teria se deslumbrado com o cosmos, mas porque teria tropeçado num meio de evitar que sua própria comunidade se aniquilasse.

Uma comunidade pré-histórica teria cerca de 100 a 140 pessoas. Imaginemos disputas se alastrando, o rancor tomando conta de cada membro. Dois indivíduos julgando que um terceiro é a causa de seus males. Gradualmente, com certa rapidez, a violência se dirige para um único membro. (Eu poderia dizer: para um tênue paralelo, pense em como é fácil atribuir todos males contemporâneos ao papa, a Dilma Roussef, a Donald Trump, à imprensa etc.). Esse único membro então é morto pela comunidade, e sua morte serve como válvula de escape para a violência. É uma catarse mesmo, uma purgação do mal.

Passar da raiva para a paz, ainda mais para a paz coletiva, é uma experiência forte, que parece confirmar a suposição que levou ao assassinato: nós o matamos porque ele era mesmo culpado. Porém, se ele nos trouxe toda essa paz, é porque é um deus. A violência fica então ancorada naquele indivíduo, e a reencenação de sua morte começa a oferecer à comunidade pequenas catarses periódicas.

Essa reencenação se chama rito. O mito, por sua vez, seria a história da perseguição dessa vítima inocente, cuja morte no entanto foi necessária para salvar a tribo. Porém, a história dessa perseguição é feita do ponto de vista dos perseguidores, que de jeito nenhum encaram esse assassinato como um mero cálculo econômico. Somos nós, modernos, que desmistificamos os mitos e os vemos assim. Na perspectiva dos próprios mitos, o morto era culpado.

Como Girard teria operado essa desmistificação? Usando o mesmo método que Campbell usou para formular sua “jornada do herói”: comparando textos. Seu livro O Bode Expiatório começa com uma interpretação de um poema de Guillaume de Machaut em que judeus são acusados de envenenar a água de uma cidade. Hoje, quando lemos esse texto, sabemos que a acusação é falsa, e até um leitor com pouco treinamento é capaz de apontar onde está a falsidade. O mesmo vale para textos de perseguições de bruxas. Daí a pergunta, cuja resposta já foi dada aqui: e se lêssemos os mitos como lemos textos de perseguições? E se a leitura desmistificadora que é aplicada a esses textos simplesmente fosse aplicada a outros, mais antigos?

A “jornada do herói” seria o modelo daquela primeira história simples, oferecendo uma explicação que justifica a violência contra um indivíduo (“estávamos em paz, ele veio nos envenenar, como vamos nos salvar?”) e dispensando aquele que adota seu ponto de vista de examinar a si mesmo. Todos os estágios – o chamado à aventura, o enfrentamento – seriam justificativas da necessidade da derrota final do inimigo. A catarse experimentada pelo espectador na sala de cinema seria um eco distante daquela que nossos antepassados sentiram ao matar o vizinho, e seu maravilhamento seria também aparentado daquele que nossos antepassados sentiram ao ver que o assassinato coletivo poderia ter efeitos tão ricos.

Todavia, os melhores pajés, assim como os melhores roteiristas, sabem perfeitamente onde a ênfase deve ser colocada, porque essa catarse depende do foco de nossa atenção. E ousamos dizer que talvez os melhores estudiosos dos mitos possam interessar-se mais por uma explicação que abarca outras explicações, do que pela explicação que apenas os coloca na mesma linhagem dos pajés – ainda que sem a autoridade social desses pajés, e sem o dinheiro dos melhores roteiristas.

Pedro Sette-Câmara

Pedro Sette-Câmara é tradutor e doutorando em literatura comparada na UERJ.