História

O sertão de Jorge Caldeira

por Bruna Frascolla

O ano de 2017 foi muito feliz para a bibliografia brasileira: lançaram-se a História da riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira, e A moeda e a lei, de Gustavo Franco. Em comum a ambos, a tarefa de escrever uma história econômica e política do Brasil levando em conta dados; o primeiro traçando um arco desde os tempos mais primevos até os mais recentes, e o segundo abrangendo apenas os dois últimos séculos, tratados porém em filigrana. Mas, para além do que salta à vista, o livro de Caldeira tem mais uma coisa que deveria ser apontada e sublinhada, que é o seu fecundo conceito de sertão.

Jorge Caldeira usa o termo “sertão” por todo o livro com um significado específico, que começa com a simples oposição ao litoral. No litoral, sedia-se o governo oficial; embrenhados no sertão, mamelucos se desenvolvem e criam riqueza à margem de toda oficialidade. Logo, seguindo o vocabulário de Caldeira, podemos falar não só de sertão nordestino como também de sertões paulista e amazônico.

Até aqui, nenhuma novidade. Apesar de não ser corrente, tal uso não foi todo inventado pelo autor; é antigo e se faz sentir até no vocabulário atual. Sertanistas eram os que iam às terrae incognitae contatar tribos. E o semiárido nordestino, conquanto povoado desde tempos coloniais, era para D. Pedro II literalmente terra incognita até delegar ao polímata Teodoro Sampaio a tarefa de o mapear. (E, de posse do mapa, o Estado brasileiro não viria a adentrar o sertão para criar escolas e hospitais – e sim para combater Canudos.)

O mote de Caldeira para tratar do sertão é a acusação de “caranguejismo” feita pelo frei Vicente do Salvador à metrópole em sua História do Brasil (1627). Portugal seria como um caranguejo; arrastar-se-ia pelas praias em vez de adentrar os sertões.

Esta tese foi ressuscitada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, dando razão ao frei em condenar o desleixo português quanto aos sertões. Antonio Risério, porém, em A cidade no Brasil, lista uma série de motivos para a considerarmos injusta: há o fato de cada avanço rumo ao interior, e a própria estadia no litoral, terem sido conquistados com muito suor, sangue e política contra uma imensidão de canibais; de Portugal, ao contrário da Espanha, fundar deliberadamente  mundo afora cidades tão marítimas quanto Lisboa e Porto; e de, comparados aos ingleses, os portugueses terem sido muito mais precoces em adentrar um Oeste americano povoado por tribos.

Este último ponto é o que nos interessa. Caldeira, ao tempo que o aceita, não tira daí a consequência natural, que seria o rechaço à acusação. Ao contrário, chama-lhe a atenção que o Brasil, embora crescesse tão cedo para dentro, tivesse a presença governamental circunscrita ao litoral. Assim, o sertão crescia, desenvolvia-se, produzia riqueza superior até à da metrópole, mas tudo o que recebia da oficialidade do Estado era o cobrador de impostos. Surge, então, a sua tese dúplice: é falsa a acusação do Frei Vicente do Salvador, se considerarmos a gente luso-brasileira; mas é verdadeira a acusação do frei, se considerarmos o Estado. Há o Brasil oficial, que Caldeira chama de litoral, e há um outro Brasil, a que chama sertão.

O livro do frei é usado outra vez para chancelar essa tese de Brasil duplo, ao tempo que se exibe o conflito entre ambos. Se o Brasil oficial só visita esse outro Brasil para cobrar impostos, não é de admirar que este se esconda daquele. Assim, conforme o relato do frei, o forasteiro que fosse ao mercado procurar os seus víveres nada encontraria; mas, ao contrário, caso pedisse por eles a particulares, das casas de família viria tudo quanto fosse necessário. Caldeira entende que não se tratava se desabastecimento, nem de mercado anêmico – mas de esconder-se do fisco! Um Estado do Antigo Regime, que se encara como fim em si mesmo, taxa tudo quanto pode e produz um péssimo ambiente de negócios; logo, as pessoas recolhem seu comércio a suas casas em vez de o levarem à praça.

Acontece que o frei é, como indica o seu nome, da cidade do Salvador – litorâneo, portanto. A própria História do Brasil é redigida na capital do então estado do Brasil. Além disso, o  episódio narrado fora protagonizado por um bispo estrangeiro (de Tucuman), quando, de dentro da Igreja, só quem adentrava os sertões eram os jesuítas. Não parece factível, portanto, que o bispo fosse no século XVII visitar outro lugar do Brasil que não Salvador. Inclusive, a própria suposição de haver um fisco a temer na praça sugere um Estado mais presente. Quem sabe os mamelucos de João Ramalho, no sertão paulista, não tinham um mercado menos intimidado do que a fidalga prole de Caramuru e Catarina, que vivia no habitat dos caranguejos? Talvez o Bispo de Tucuman, em São Paulo, encontrasse a céu aberto matutos acocorados, como Jeca Tatu, oferecendo tantos frangões e ovos quanto quisesse comprar.

A conclusão é que o “litoral” (à Caldeira) convive com focos de “sertão” (à Caldeira). O vocabulário é excelente para fazer poesia, mas é propenso a causar confusões. A proposta declarada da História da riqueza no Brasil é, considerando o significado quinhentista de “sertão”, tratar da sua relação com o Estado. “Sertão”, portanto, é conceito econômico e social. Fosse apenas geográfico, não seria suficiente para dar conta do que se faz no livro. Em vez de sertão e litoral, seria mais claro falar de Brasil oficial e Brasil incógnito.

Friso que não pretendo corrigir tese alguma: apenas disputo a nomenclatura a fim de deixar, talvez, a própria tese de Caldeira mais explícita. Este nome de Brasil incógnito extrai-o de pontos sublinhados pelo autor que implicam a ignorância acerca do sertão. Deliberadamente, o lar aonde o bispo ia comprar seus víveres era incógnito para a oficialidade. Também deliberadamente, o próprio Brasil era um segredo para o resto do mundo. O que Caldeira mais lastima na formação do Brasil é o impacto da política de segredo adotada por Portugal: aqui foram destruídos os tipógrafos, censuradas as obras que nossos antepassados quisessem escrever sobre nós, e o grosso da população foi relegado ao analfabetismo. Para aquém dos óbvios impactos sociais, o golpe foi duro sobre o conhecimento de nós mesmos e de nossa história. Analfabetos não deixam suas memórias, nem explicam à posteridade o mundo que veem. Assim, dois fatores concorreram para tornar incógnita uma parte do Brasil: a sua própria vontade de se esconder e a vontade da metrópole de escondê-lo. Nada mais natural, pois, do que chamarmos ao “sertão” Brasil incógnito.

Além disso, consequência do analfabetismo e da política de segredo é o Brasil ser estudado sob a visão do caranguejo – do Brasil oficial que desconhece aquele que se esconde, que se arrasta por esse litoral metafórico sem nunca adentrar o sertão e, em vez disso, busca sempre se inteirar da última tendência intelectual de além-mar.

Tratando do positivismo, Sérgio Buarque já apontara em Raízes do Brasil a predileção de intelectuais brasileiros por esquemas ideológicos simples para interpretar uma realidade complexa, e que prometessem uma solução igualmente simples. Como o marxismo partilha com ele a “tensão incoercível para um futuro ideal e necessário”, não é nada ousado traçar uma linha de continuidade entre a coqueluche do positivismo e a do marxismo. Mas Caldeira dá um passo a mais nesse sentido, e aponta que as ideias de caranguejo, sempre antidemocráticas, se dão em oposição a um sertão surpreendentemente democrático. De fato, como é possível os brasileiros não atinarem que temos eleições e câmara há mais séculos do que França e Portugal? No entanto, as câmaras de São Vicente e Salvador são contemporâneas do absolutismo europeu.

E este é apenas um dos fatos revolucionários para a história do Brasil apontados no livro. Outro é o de as “recentes” descobertas da econometria revelarem a falsidade da tese da subsistência. Em vez de termos sido uma colônia precária, voltada para a exportação e sem vida econômica interna para além da subsistência, fomos produtores de riqueza ainda maior do que a metrópole. A econometria é ciência de vital importância por permitir que se reconstruam dados de que não há registro escrito, pois que referentes a analfabetos.

O livro deixa qualquer leitor se perguntando: “Como é que ninguém escreveu isso antes?” Caldeira antecipou uma resposta excessivamente gentil, creditando o caráter revolucionário de sua obra à interdisciplinaridade. Gentileza sua. Creio que a resposta, no entanto, seja outra. Em primeiro lugar, por causa da bibliografia; há material anglófono dos anos 70 sobre a modesta dimensão da produção açucareira do Recôncavo baiano. Logo, essa desculpa vale para trabalhos mais velhos do que a econometria e o amplo acesso a dados econômicos. Em segundo, em países desenvolvidos não faltam especialistas, e isso não impede que haja boa compreensão do panorama geral das histórias de seus países. São competências diferentes. Aqui, temos excelentes historiadores cujas especialidades podem ser o universo de Antonio Vieira, a inquisição, as revoltas do período regencial, etc. Nenhum estudioso desses assuntos tem a obrigação de se dedicar ao estudo de fatos econômicos. Mas todo aquele que pretenda fazer um estudo social crítico da história do Brasil tem essa obrigação.

Parece mais razoável considerar que essa área padeça de caranguejismo. Caranguejos têm amor por ideias preconcebidas às quais se hão de ajustar os fatos. “Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas, que circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos”, para citar Sérgio Buarque.

A oposição conceitual entre sertão e litoral (ou entre Brasis oficial e incógnito), lida à luz das informações que Caldeira aporta ao debate, é um convite à humildade e à investigação. A pensar, por exemplo, que se algum habitante de uma favela dominada quiser fundar um jornal, ele não pode – e que, por assim dizer, tipógrafos continuam sendo quebrados pelo sertão. E ainda há o analfabetismo funcional.  É hora de olhar com franqueza para as favelas urbanas e para populações distantes dos grandes centros reconhecendo que não se sabe o que nelas se passa, que não se conhecem as pessoas que nelas moram, e que há muito o que aprender.

Parece coisa pouca, mas muito tempo se perdeu olhando para esse Brasil incógnito sem enxergar outra coisa que não mestiços degenerados e incapazes de progresso intelectual, depois  proletários à espera de um novo Lênin para conduzi-los, e enfim negros, mulheres e LGBTs que, vitimados pela maldade do Homem Branco, precisam de um governo forte e virtuoso para protegê-los. Nenhuma dessas ideias megalomaníacas passa por coisas comezinhas como posto de saúde, saneamento básico, segurança pública e institucional, ou escola boa. Que venham novas ideias, pois, enfim orientar o nosso olhar para as necessidades desse Brasil.

Bruna Frascolla

Bruna Frascolla é doutora em Filosofia pela UFBA, atualmente pesquisadora colaboradora da Unicamp, tradutora dos Diálogos sobre a religião natural, de David Hume (Edufba, 2016).