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A ordem liberal na encruzilhada

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O ensaio a seguir é mais um fruto da parceria institucional entre o Estado da Arte e o Instituto de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portugesa.
José Augusto Filho, pesquisador do IEP, reflete sobre a questão d’A ordem liberal na encruzilhada, e sobre o quanto essa questão é atualizada com a presente crise causada pela pandemia da COVID-19.

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A ordem liberal na encruzilhada

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por José Augusto Filho

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A eclosão de crises sanitárias não raramente tem o condão de intensificar processos de transformação histórica. Tem sido assim pelo menos desde a antiguidade clássica. Na Guerra do Peloponeso, narrada por Tucídides, a peste que se abateu sobre os atenienses confinados atrás das suas muralhas contribuiu sensivelmente para a vitória da liga espartana. Dois milénios e meio depois, tem-se afirmado que a pandemia da COVID-19 fará emergir um mundo bastante diferente daquele que conhecíamos antes de o vírus romper as fronteiras chinesas. Os impactos humanos, econômicos e sociais podem prolongar-se por décadas, atingindo implacavelmente os países mais pobres. Mas qual seria o impacto dessa crise sanitária no campo das relações internacionais?

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A Batalha de Potideia (432 a.C.)

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O mundo atual não deverá apresentar uma inflexão no modelo governativo internacional. A ordem liberal que tem orientado as relações entre os Estados ao longo das sete últimas décadas deverá continuar em retração. É razoável esperar que o mundo pós-pandemia da COVID-19 continuará assistindo ao processo de erosão da ordem liberal, apenas de forma mais acelerada, como sugere Richard Haass, em recente artigo na Foreign Affairs. O combate ao novo coronavírus escancarou a irrelevância que tem crescentemente caracterizado a estrutura criada pela Carta de São Francisco. Apesar de autoridade pretensamente técnica, a Organização Mundial de Saúde (OMS) é suspeita de cumplicidade com a China, país que, agora sabe-se, foi omisso na gestão inicial da contensão do vírus. O crescente desinteresse dos EUA em continuar a prover bens públicos mundiais deverá permitir que regimes iliberais acumulem ainda maiores poderes e legitimidade, visando a estruturar um ordenamento que favoreça seus interesses e valores.

Parece claro que o multilateralismo está em desgraça; agonizante diante da reafirmação da soberania estatal como princípio inalienável de independência sistêmica. A cooperação mediada por organizações internacionais enfrenta resistência da parte de regimes iliberais e/ou populistas, os quais veem os mecanismos multilaterais como veículos de disseminação dos interesses e valores das potências centrais. Sob a perspectiva daqueles regimes, enfraquecer as instituições multilaterais seria um meio para resguardar a sua política doméstica e os seus interesses vitais no estrangeiro. Quando conveniente, entretanto, essas estruturas governativas são usadas estrategicamente para manter e projetar o status quo de Estados recalcitrantes visando os privilégios do poder. O pragmatismo é regra de ouro de atores que agem impulsionados quase exclusivamente pelo dilema de segurança.

Os princípios e valores da ordem liberal são confrontados por uma narrativa opositora: essa reclama o relativismo moral e a diversidade cultural como autorizações para se violar os ideais da democracia liberal. Da perspectiva daquela narrativa, liberdade e democracia seriam valores estritamente ocidentais, e portanto inadequados a sociedades fechadas, cujos interesses na globalização limitar-se-iam à abertura de mercados para os seus produtos e a garantir o suprimento de matérias-primas. Portanto, enquanto o mundo dedica-se à urgente tarefa de conter a pandemia da COVID-19, o futuro da ordem liberal internacional permanece em perigo.

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O fim da Pax Americana

A gestão internacional da presente crise da COVID-19 demonstra, sobretudo, a drástica diminuição da influência mundial dos EUA. As lacunas americanas na cordenação de medidas de contingenciamento da doença têm ficado evidentes. Pressionado a tomar medidas que estavam fora do planejamento do governo em ano eleitoral, Donald Trump avança com o isolacionismo que tem caracterizado a sua presidência. A lembrar os termos cunhados por Raymond Aron, parece que os EUA caminham para renunciar à condição de República Imperial para voltar àquela de Ilha-Continente. E ao afastar-se do papel de provedor de bens públicos mundiais, os EUA possibilitam que outras potências o representem. Tem sido essa a tendência desde que os americanos deixaram de se embrenhar em guerras preventivas no Oriente Médio, no auge do momento unipolar.

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Raymond Aron

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Já com alguma perspetiva histórica, parece evidente que a caçada a terroristas no Afeganistão e a invasão do Iraque contribuiram para minar a reputação internacional dos EUA. Em novembro de 2003, ao prenunciar os prejuízos de reputação que decorreriam da campanha em solo mesopotâmico, Zbigniew Brzezinski já observava que, não obstante o poder americano estivesse em seu auge, a credibilidade da política exterior do país amargava os seus mínimos históricos. Nas relações internacionais, a credibilidade e legitimidade de uma potência hegemônica resultam, em larga medida, da sua eficácia em prover estabilidade e segurança sistêmicas. O unilateralismo que levou os EUA a agirem ao arrepio de normas internacionais e a solapar a autoridade da ONU está na origem da deficiência em sua legitimidade internacional.

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Zbigniew Brzezinski (NY Times)

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Sob Barack Obama, os níveis de confiança na liderança internacional dos EUA esboçaram alguns sinais de recuperação. O antiamericanismo parecia arrefecer à medida em que o apetite intervencionista de George W. Bush dava lugar a uma abordagem mais institucional. No entanto, a cautela de Obama revelou-se excessiva, especialmente em vista do fracasso em lidar com as Primaveras Árabes, o que acabou ocasionando a guerra na Síria e o colapso da Líbia. O governo Obama tampouco foi feliz em seu esforço para evitar a proliferação de armas de destruição em massa: a Coréia do Norte passou a testar mísseis, lançando-os em direção ao Japão; e as negociações acerca do programa nuclear do Irã resultaram num acordo multilateral tão frágil quanto malquisto.

O adágio político segundo o qual não existe vácuo de poder é válido também para as relações internacionais. O desaire americano no Oriente Médio criou oportunidades para outros players posicionarem suas peças no tabuleiro do xadrez do poder mundial. Durante a década e meia de atoleiro americano nas guerras do Afeganistão e do Iraque, Rússia e China puderam aumentar suas presenças em regiões antes consideradas cativas dos EUA. Sem exigir de seus novos parceiros qualquer forma de alinhamento ideológico, russos e chineses desenvolveram estratégias de políticas exteriores visando a construção de uma ordem internacional multipolar. Uma nova arquitetura de segurança deveria surgir da divisão do mundo em diferentes centros de poder, divisão essa informada por critérios de proximidade geográfica, afinidades culturais e complementariedade econômica. O poder global seria, assim, compartilhado por um número limitado de grandes potências com status semelhante.

O custo de manutenção da preeminência mundial dos EUA foi um dos fatores determinantes para a eleição de Donald Trump. A conjunção de maior competição na arena internacional, política interna instável e prolongada estagnação econômica convenceu parcela crescente do eleitorado americano de que a continuidade do protagonismo do país no exterior não compensaria os sacrifícios domésticos. Sagrou-se eleitoralmente vencedora a tese segunda a qual a garantia da segurança do mundo livre ter-se-ia tornado um fardo por demais pesado. Fazer a América grande novamente significaria, portanto, abdicar de boa margem de sua liderança mundial para salvar a casa dos americanos, no sentido da Ilha-Continente de Aron.

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Donald Trump (Reprodução: TIME)

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O novo isolacionismo americano tem por objetivo proteger os interesses mais vitais dos EUA, face às ambições dos seus rivais. Não há paradoxo aqui: numa ordem já multipolar, Washington retrai sua presença global a fim de concentrar foco nos locais mais estratégicos para os seus interesses. Ao contrário de Obama, que optou por uma política de smart power e voltada para soluções institucionalizadas, Trump busca afastar-se de problemas externos, ao mesmo tempo em que ataca as instituições da ordem internacional liberal. Num arroubo de nacionalismo, em setembro de 2019, quando se dirigiu aos líderes mundiais durante a reunião das Assembleia Geral da ONU, Trump disparou: “o futuro não pertence aos globalistas, pertence aos patriotas”.

Em Trump, os inimigos da ordem liberal parecem ter um aliado. O seu desprezo por acordos e organizações multilaterais e a opção pelo protecionismo como tática de diplomacia comercial não tem poupado nem mesmo os parceiros tradicionais dos EUA. A União Europeia já viu-se confrontada pelo aumento de tarifas sobre suas exportações destinadas às alfândegas americanas. E a pressão americana para rever a política de financiamento da estrutura de segurança mútua, ancorada na OTAN, tem contribuído para afastar os seus parceiros europeus. À questão da estratégia de política externa e de segurança comum da UE soma-se ainda o desgastante processo de negociação do Brexit. Essas fraturas podem ser agravadas em razão da retração econômica provocada pela COVID-19.

O tratamento que o governo Trump tem dispensado à Europa evidencia a dissenção entre os dois lados do Atlântico, tal qual apontada por Robert Kagan, ainda em 2003. Após o fim da Guerra Fria, enquanto os EUA agiam na arena internacional com a confiança dos vencedores, a Europa se entranhava no complexo normativo armado pela burocracia de Bruxelas. Apesar de principal aliado histórico dos EUA na manutenção e expansão da ordem liberal, a Europa parece não perceber que a viabilidade do projeto europeu está diretamente ligada à sobrevivência do atual modelo governativo mundial. É difícil imaginar que um Estado supranacional possa prosperar num contexto de nacionalismos exacerbados como o que se delineia.

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Robert Kagan (Brookings)

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Ao deixar a responsabilidade de cuidar da segurança do Ocidente a cargo dos americanos, os europeus pareciam não imaginar que a ordem liberal sofreria ameaças neste início de século. Pareciam crer que tudo permaneceria igual, se o velho continente não mudasse. Afinal, a velha Europa é o berço do mundo tal como o conhecemos, e alguém teria garantido que a história havia acabado. Entretanto, o efeito “suave do comércio” celebrado por Montesquieu não foi suficientemente poderoso para aplacar as ambições que Rússia e China sempre nutriram pelo poder. Depois de uma insólita tentativa de adotar os valores e as instituições das democracias liberais, os russos voltaram a recrudescer a sua ordem política. Os chineses nem por isso. A ter sua liderança desafiada por potências recalcitrantes, os EUA desistiram de continuar a exercer o papel de polícia do mundo. Menos presentes na arena internacional, os americanos mostram-se cada vez mais dispostos a abandonar a ordem que criaram, promoveram e estimularam e a condenar a estrutura concebida também para disseminar no mundo os valores da democracia e da liberdade presentes em sua política doméstica.

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Montesquieu

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Multilateralismo, interesses e valores morais

Um dos fundamentos da ordem liberal, o multilateralismo tornou-se o saco de pancadas favorito de lideranças em busca de autonomia. Os ataques são desferidos de todos os lados do espectro político. Nem liberais nem iliberais querem abrir mão dos privilégios do poder. O princípio da soberania é reivindicado no âmbito do direito internacional para blindar ambições revisionistas de atores interessados em redesenhar a estrutura governativa herdada da Guerra Fria. O anacronismo é evidente, mas falta vontade política por parte das grandes potências para promover uma reforma visando a distribuir o poder mundial de forma maia adequada ao contexto atual. Enquanto não se encontra uma nova fórmula para organizar as relações internacionais, os fundamentos da ordem liberal vão sendo condenados à irrelevância, empurrados para o abismo, agora, também pelas mãos da administração Trump, que tem prestado imenso contributo à erosão dos mecanismos multilaterais.

O fato de a ONU e suas agências sofrerem ataques por parte de Estados insatisfeitos, porém, não as eximem de responsabilidade pelas suas falhas – como é o caso da OMS na atual pandemia de COVID-19. Muitos foram os equívocos que contribuíram para o desgaste da credibilidade dos sistema ONU e o aumento da desconfiança na eficácia dos seus mecanismos multilaterais, e que, por isso, acabaram por prejudicar a ordem liberal. A título de exemplos, cita-se aqui os fracassos das missões de paz na Somália e em Ruanda, e o fato de o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas abrigar países notoriamente violadores daqueles direitos. Não se pode perder de vista que, antes de serem agentes da saúde ou da segurança mundial, as agências do sistema ONU são atores da política internacional e, como tal, sujeitas às pressões e demandas de Estados membros. A clareza hierárquica típica da política doméstica não se estende a um sistema de Estados essencialmente anárquico. É certo que, em tempos de paz, decisões são negociadas e consensos são construídos entre diferentes atores soberanos. Mas normas e regras multilaterais devem estar fundamentadas num imperativo de legitimidade.

Fareed Zakaria brilhantemente cravou: “legitimidade é poder”. Se for baseada somente no hard power, uma dada decisão de política externa pode surtir efeito reverso, por carente de legitimidade para afetar Estados terceiros. O momento unipolar ficou para trás. Os EUA não dispõem mais nem de legitimidade e, por isso, nem de poder para subscreverem sozinhos uma nova ordem mundial. Em muitos casos, o esforço multilateral não se apresenta como opção, mas como necessidade. Uma pandemia só pode ser derrotada se enfrentada por meio de uma resposta multilateralmente coordenada. Tal como vários problemas que desafiam a capacidade resolutiva até da nação mais poderosa, o novo coronavírus não respeita fronteiras nacionais, tornou-se um dilema mundial como o tráfico de drogas, o terrorismo, o deslocamento humano e o meio ambiente.

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Fareed Zakaria (Mark Lennihan/AP)

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Enquanto o Ocidente assiste ao enfraquecimento do multilateralismo, Estados iliberais usam as potencialidades do mecanismo de cooperação para buscar alcançar seus interesses particulares. Por ser um conceito descritivo e não normativo, o multilateralismo pode ser instrumentalizado para servir a propósitos da política do poder. Apesar da peculiar ligação com o multilateralismo, valores como democracia, liberdade e direitos humanos são rejeitados nas organizações criadas por Rússia e China, que se notabilizaram pela preferência por arranjos convenientemente estruturados para preservar a soberania dos Estados membros. O melhor exemplo desse modelo é a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), que reserva a russos e chineses o papel privilegiado de potências mundiais.

Por desobrigadas de se submeterem a decisões de uma entidade multilateral, como a maioria das organizações ocidentais, na OCX Rússia e China gozam de independência para agir em regiões onde os EUA são percebidos como ator ilegítimo e inconveniente. A influência dos valores ocidentais em questões domésticas pode fazer espoletar, em populações mantidas sob rígido controle, movimentos centrífugos e de contestação da ordem. O separatismo e o terrorismo internacional são fantasmas que atormentam a Ásia-Pacífico. Combinados, fazem do dilema da segurança o elo mais forte que liga os membros da OCX entre si. A escolher entre ordem e liberdade, russos e chineses não têm dúvida em optar pela primeira. Porém, ao sacrificar a liberdade podem estar condenando o futuro de suas populações. Conforme escreveu Hayek, “no caso em que todos devem servir os mesmos ideais e onde os dissidentes não podem seguir ideais diferentes, as normas só se manifestarão inadequadas com a decadência de toda a nação guiada por elas”.

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F.A. Hayek

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Pertencer a uma comunidade de valores que eleva a liberdade a fundamento supremo e condição para todos os demais valores morais pode ter sido o mistério que fez da civilização ocidental modelo a ser imitado. Mas, em razão de uma prepotência descabida, os EUA gradualmente passaram de “nação indispensável”, a nação indesejada. Apesar disso, os americanos desenvolveram sua liderança mundial sendo simpáticos, cultivando a prosperidade e a solidariedade democrática, praticando e estimulando a liberdade. Seu poder de atração sempre esteve muito mais relacionando com o conjunto de seus valores e instituições, além de sua vasta influência cultural, do que com o portfólio do seu complexo industrial-militar.

Num momento de recessão democrática, como expressou Larry Diamond, “nenhum grande poder pode fixar seu envolvimento global apenas em princípios. Mas na maioria dos países, podemos fazer e dizer algo em nome da liberdade e do Estado de Direito”. A disputa por moldar uma nova ordem mundial apresenta muitas dúvidas, mas um fato é certo, cada centímetro que os EUA se afastam do mundo e se isolam é terreno cedido aos inimigos das sociedades abertas.

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(Acervo: Philantropy Daily)

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José Augusto Filho

José Augusto Filho é jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.