Literatura

Orfandade literária

Andrea Camilleri

por Júlio Pimentel Pinto

Há um tipo de orfandade que só os leitores ávidos conhecem: a que se sente quando não se pode mais ler os livros de um autor que já se tornara parte da vida ou acompanhar as aventuras de um personagem que nos parece próximo como um amigo ou um familiar.

José Saramago, numa entrevista dada logo depois de ter ganhado o Prêmio Nobel, relatou a carta comovente de uma leitora. Doente em estágio terminal, ela dizia que seu maior sofrimento era saber que não viveria para ler o próximo livro do português. 

Uma amiga, leitora voraz, insiste que não gosta de contos, pois eles a forçam a se despedir logo dos personagens, e que não termina a leitura de certos romances para manter a trama em suspenso e seus protagonistas, vivos.

O leitor obsessivo deseja sempre ler mais, quer que lhe contem outra história, mantém-se atento aos movimentos de autor e personagem favoritos: descobre com antecedência a data de lançamento do livro, espreita sua chegada às livrarias, obtém o exemplar e o conserva intacto por dias, até que não resiste e, afinal, o lê com lentidão calculada, prolonga a leitura o máximo possível e só a conclui quando é inevitável. Em seguida, tenha ou não gostado do que leu (em geral gosta), vive a melancolia da despedida provisória, até o próximo livro.

Despedidas definitivas, no entanto, ultrapassam a melancolia e dilaceram mesmo quando são previstas e esperadas. É o caso de quem seguiu por anos a vida e as investigações de dois envolventes detetives de papel: o Delegado Espinosa e o Comissário Salvo Montalbano. Espinosa foi criado pelo carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, Montalbano nasceu nas páginas do siciliano Andrea Camilleri. Ambos viraram logo sucesso de público e crítica, prosseguiram por mais de duas décadas e agora não protagonizarão mais nenhuma história: Camilleri morreu em julho de 2019 e Garcia-Roza, enquanto escrevo esse texto, está aparentemente inconsciente num hospital do Rio de Janeiro — temos notícias dele por meio de sua esposa (e também extraordinária ficcionista) Livia Garcia-Roza, que escreve no Facebook o que já foi acertadamente descrito como um diário de despedida.

Não haverá novos livros de Garcia-Roza, nenhuma outra aventura de Espinosa. O desfecho de sua trajetória, A última mulher, foi publicado há poucos meses, quando o autor já dormia. Montalbano ainda viverá uma vez: Camilleri escreveu há muitos anos sua história derradeira e, reza a lenda, pediu que a guardassem no cofre da editora. O livro chama-se Ricardito e será lançado em breve. Depois disso, resta o silêncio.

Luiz Alfredo Garcia-Roza

Há mais simetrias entre Espinosa e Montalbano do que pode parecer à primeira vista. De saída, basta lembrar que ambos nasceram na década de 1990, quando seus autores já passavam dos sessenta anos de idade e vinham de outras áreas de atuação profissional, nas quais haviam se consagrado. Antes de escrever histórias policiais, Garcia-Roza foi professor universitário, filósofo e psicanalista importante, com sólida obra teórica publicada e muitos relatos sobre a maravilha de suas aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Camilleri foi um dos mais importantes diretores de teatro da Itália no século XX, professor na Academia Nacional de Arte Dramática por vinte anos e roteirista e diretor de televisão por décadas.

O primeiro caso de Montalbano chegou às livrarias em 1994, quando o escritor tinha 69 anos. A forma da água, conforme Camilleri relatou em numerosas entrevistas, não pretendia iniciar nenhuma série. Era um experimento, um livro isolado com um protagonista apenas esboçado. O rápido e impressionante sucesso de vendas, ligado ao desejo do autor de aprimorar seu personagem, levou-o a publicar, em 1996, outros dois romances com o inquieto e peculiar detetive: O cão de terracota e O ladrão de merendas. Não parou mais. Quando um problema cardiorrespiratório levou Camilleri ao hospital no dia 17 de junho de 2019 — ele faleceu um mês depois —, Montalbano era conhecido de todos ou quase todos os italianos: além de atuar em 27 romances e dezenas de contos, havia se tornado um destacado personagem televisivo, em requintadas adaptações que alcançam milhões de espectadores a cada emissão.

Dois anos depois da estreia de Montalbano nas páginas dos livros, e a um oceano de distância, Garcia-Roza, então com sessenta anos, deu a luz ao delegado Espinosa — que, aliás, nem era delegado quando em 1996 apareceu em O silêncio da chuva: depois é que foi promovido e consolidou sua carreira policial. A consolidação literária foi imediata — Prêmio Jabuti de 1997, por exemplo — e os leitores encantaram-se com suas idiossincrasias e irreversível honestidade. A segunda aventura, Achados e perdidos, apareceu em 1998 e outros nove livros o seguiram, até o recente A última mulher

Mesmo nas suas feições iniciais, Montalbano e Espinosa já eram muito bem concebidos. De um lado, remetiam a características recorrentes dos detetives ficcionais; de outro, assumiam traços particulares, capazes de definir sua individualidade e força. Ambos pertencem institucionalmente à polícia — ao contrário de diversos personagens inesquecíveis da história da narrativa ficcional. Auguste Dupin, Sherlock Holmes, Hercule Poirot ou Nero Wolfe, criações incríveis de Edgar Poe, Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Rex Stout, não apenas são amadores, como também ironizam a incompetência dos agentes oficiais. Alguns heróis do hard-boiled, o “policial duro” norte-americano, como os detetives particulares Sam Spade, de Dashiell Hammett, ou Philip Marlowe, de Raymond Chandler, atuam nas bordas da legalidade e destinam aos policiais apenas seu sarcasmo.  

Dupin, Marlowe e tantos outros detetives de papel — sempre sagazes e honestos — desprezam a instituição policial porque a consideram ora incompetente, ora corrupta. Alguns estudiosos do tema sustentam que a moderna narrativa policial surgiu na metade do século XIX justamente pelo fascínio que alguns investigadores provocavam — em especial, na Inglaterra, os da divisão especial de crimes da Polícia Metropolitana de Londres, um agrupamento minúsculo que foi o embrião da Scotland Yard. No entanto, o encanto durou pouco e alguns fracassos retumbantes em investigações — que a imprensa incumbiu-se de divulgar com alarde — devastaram a imagem dos perseguidores oficiais de criminosos. Não por acaso, a ficção policial passou a valorizar os argutos amadores — e, depois, detetives privados —, capazes de enxergar o que as pessoas comuns não enxergavam, de revelar o que para os demais era obscuro. 

Garcia-Roza e Camilleri preferiram enfatizar a possibilidade de que, em meio à incompetência e à desonestidade de tantos policiais, existam verdadeiros e bem intencionados profissionais. Talvez haja nessa opção uma espécie de engajamento social dos autores e de seus personagens. Não é raro que Espinosa e Montalbano tenham que enfrentar a inépcia e a venalidade de seus pares. Embora membros da polícia de Estado, conhecem bem os porões das instituições em que trabalham. Vira-e-mexe, eles veem-se forçados a criar despistes, sonegar informações aos colegas, agir nas sombras e recorrer à ajuda de pessoas estranhas à força oficial. A visão que passam de seus superiores também está longe de ser favorável: questori e diretores são quase sempre tratados como burocratas que preferem se imiscuir em interesses políticos e bajular poderosos a buscar a verdade e identificar criminosos. 

Esse engajamento de autores e personagens, aliás, é outro aspecto que aproxima Montalbano de Espinosa. Os dois são democratas e veem com temor o avanço de projetos autoritários em seus países. Temem e repudiam o caráter repressivo que o aparato oficial de vigilância e punição tende a assumir ante movimentos sociais. Também são profundamente humanistas: notam a degradação e a miséria do mundo que os rodeia e, sempre que possível, alteram a rota de suas ações para acolher um morador de rua ou um imigrante ilegal e prestar o auxílio que qualquer pessoa em dificuldade merece receber. Tais gestos humanitários provocam imediata empatia nos leitores e ampliam a familiaridade que sentimos em relação aos personagens.

A sensibilidade ante questões sociais combina-se com a susceptibilidade de ambos ao ambiente que os cerca. Os dois vivem perto do mar — Rio e Vigàta, versão ficcional da Porto Empèdocle natal de Camilleri —, mas Montalbano parece se sentir mais atraído pelas ondas: nada na noite alta ou na tênue madrugada e dissolve no Mediterrâneo as angústias que enfrenta. Mas o que de fato os unifica é a paixão pelas pedras. Espinosa vaga pelas ruas de Copacabana e se encanta com os edifícios antigos da cidade; Montalbano viaja, sempre que pode, pela paisagem rochosa e árida do interior da Sicília. Para um e outro, isolar-se e imergir na paisagem é estratégia de concentração e de reconciliação consigo mesmo.

Há, claro, diferenças entre os dois investigadores. Talvez a mais eloquente esteja na relação com a comida. Camilleri leva Montalbano à mesa de forma ritualística: o comissário demora horas no almoço e sonha com a comida que Adelina, fiel assistente doméstica, deixa diariamente no forno da sua casa, esperando-o para o jantar. Ele só come em total silêncio e devora massas com sardinha ou com berinjela, uma enxurrada de pescados, arancini em profusão. Na mesa de Espinosa, em detrimento da boa alimentação e do prazer, prevalecem prosaísmo e agilidade. Ele come esfihas e quibes comprados sempre no mesmo restaurante árabe ou esquenta temíveis lasanhas industrializadas e congeladas. Sob a diferença, porém, talvez se manifeste alguma proximidade. No cardápio de Montalbano há traços inconfundíveis de sua sicilianidade; na dieta repetitiva do delegado carioca, as marcas da vida na cidade grande — e não custa lembrar que gastronomia e histórias de detetives muitas vezes caminham de mãos dadas, porque é pelas comidas que muitos autores regionalizam e contextualizam suas tramas.

Diferente também é a capacidade de cada um resolver efetivamente os casos. Montalbano é sempre bem sucedido, embora vez ou outra prefira deixar os créditos da revelação para outra pessoa. Espinosa, por sua vez, raramente consegue frear a ação criminosa e sua atuação pode provocar novos crimes. À semelhança do que acontece com a relação de ambos com a comida, também essa diferença soa secundária. No universo das histórias policiais do final do século XX e início do XXI, o mais importante não é solucionar o caso, e sim mapear o lugar do crime na sociedade em que vivemos e os contornos esfumaçados da verdade. 

Para Holmes ou Spade o objetivo máximo era a identificação e a punição dos criminosos. Justamente por isso, suas histórias celebram o fetiche da verdade pura. Para Montalbano e Espinosa, homens de um tempo de desesperança e descrença, jamais a verdade é una ou inevitável. Há sempre relatividade, há sempre perspectivas divergentes e uma linha do horizonte que baliza e orienta os olhares, mas que também mostra a provisoriedade de toda conclusão. Em parte resulta daí a melancolia entranhada nas atitudes do siciliano e do carioca: eles sabem que sua atuação, mesmo quando brilhante, é apenas um retoque na superfície rugosa de um mundo em que o crime deixou de ser ocasional e individualizado e se entranhou na vida política e empresarial, atingiu até as instituições que parecem mais ilibadas, e não será abalado. 

É capaz que muitos leitores procurem histórias policiais — como Edmund Wilson e tantos outros denunciaram décadas atrás — em busca de algum conforto e com a vontade de encontrarem justiça, sobretudo em sociedades tão profundamente corroídas pela presença ostensiva do crime organizado, como a siciliana e a carioca (ou, para sermos sinceros, a brasileira). Os dois detetives, porém, não tranquilizam ninguém: depois de esclarecido o mistério de cada romance, recolhem-se à vida íntima, às casas que tanto prezam no Peixoto ou em Marinella e, copo de whisky ou de vinho na mão, deixam claro para o leitor que a resolução de um crime isolado em nada altera o horror do mundo em que vivemos.

Além de descartarem o fetiche da verdade total, Montalbano e Espinosa tampouco alcançam, ou cogitam alcançar, a lógica retilínea de seus colegas de ficção policial. Poirot provavelmente se horrorizaria diante dos raciocínios desencontrados, tortuosos e labirínticos que fazem, da confissão frequente, por Espinosa, de sua incapacidade de pensar com lógica ou, ainda, da analogia que Montalbano estabelece entre os rumos de seu pensamento e os ramos confusos e intrincados de uma oliveira sarracena. 

Personagens de escritores que passaram a vida entre livros e os criaram tardiamente, é inevitável que Montalbano e Espinosa sejam bons leitores. Já no primeiro romance policial de Garcia-Roza, relata-se a cuidadosa construção, por Espinosa, de suas “estantes sem estante”: camadas de livros apoiados uns nos outros, sustentados apenas pelas paredes laterais; livros que proliferam, que ele dá ou empresta, que lê toda noite. Já o siciliano mantém prateleiras de verdade em casa e nelas reúne principalmente as narrativas policiais que lê. Em mais de um caso, Espinosa e Montalbano valem-se de suas leituras para compreender o desenrolar de um crime ou de uma crise e esboçar soluções. 

Para além da simetria das idades e das carreiras prévias e consolidadas dos autores, talvez haja nessa paixão livresca o ponto mais eloquente de diálogo entre seus personagens e de atração para nós, leitores compulsivos, pessoas convictas de que no princípio era o verbo e que, tal qual Mallarmé previu, o mundo foi feito para acabar em livro. Porque a leitura é o que nos move e nos identifica. Repare nos adjetivos que, nos quatro primeiros parágrafos desse texto, colei à palavra “leitor”: ávido, voraz, obsessivo. Adjetivos fortes, nunca exagerados. É assim que nós, leitores, somos. E de tempos em tempos, face à orfandade literária que nos espreita, também nos tornamos melancólicos.

Na palavra escrita nasceram e viveram Montalbano e Espinosa. Ao longo dos livros, eles envelheceram, mudaram, perderam as últimas esperanças e nos legaram outra esperança que é maior do que todas as outras: a de que sempre teremos um livro para neles espantar ou espelhar nossas aflições e angústias, para ativar nossa razão, para nos surpreender e envolver. Curiosamente, hoje os dois sobrevivem longe das páginas escritas, em séries de televisão e filmes: nos próximos meses, por exemplo, será lançada a versão cinematográfica de O silêncio da chuva. E os casos de Montalbano continuarão a mobilizar espectadores na Itália e em outras partes do mundo.

Mais importante: assim que conseguirmos ultrapassar a tristeza imensa de saber que não haverá mais livros de Camilleri e de Garcia-Roza — quando aprendermos a lidar com o luto e a orfandade literária —, estaremos prontos para reler as deliciosas histórias que nos deixaram.

Nota

As aventuras de Montalbano, escritas por Andrea Camilleri, são publicadas no Brasil pela Editora Record, coleção Noir Europeu, com tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo. Alguns romances já publicados na Itália ainda não foram traduzidos. Além das histórias com Montalbano, Camilleri escreveu dezenas de outras histórias policiais, muitas delas também editadas no Brasil.

Os onze livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza que têm Espinosa como protagonista saíram pela Companhia das Letras. São os seguintes: O silêncio da chuva (1996), Achados e perdidos (1998), Vento sudoeste (1999), Uma janela em Copacabana (2001), Perseguido (2003), Espinosa sem saída (2006), Na multidão (2007), Céu de origamis (2009), Fantasma (2012), Um lugar perigoso (2014) e A última mulher (2019). Garcia-Roza escreveu ainda Berenice procura (2005), que não conta com a participação de Espinosa.

Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto é professor no Departamento de História da USP e autor, entre outros, de 'A pista e a razão: uma história fragmentária da narrativa policial' (e-galáxia, 2019).