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Os Antimodernos: Abraham Kuyper e o modernismo como miragem (parte 1/2)

por Fabrício Tavares de Moraes

Em seu artigo Who was the first to make a pact with the devil?, publicado na revista London Review of Books, em 1992, Malcolm Bull propõe que Abraham Kuyper seja o primeiro pós-moderno, ou ao menos o primeiro nome a utilizar-se do termo “modernismo” no âmbito teológico com a acepção de um conjunto de princípios simultaneamente epistemológicos e históricos, que inclui, dentre outras, a concepção de uma racionalidade autônoma, neutra e portanto supostamente universal, que caminha junto com a esperança de um movimento meliorista da história propiciado e acelerado pela conquista humana sobre a natureza.

Para Bull, parte considerável das obras que se dedicam ao tratamento do conceito esquivo de “modernismo” não distingue entre o “modernismo artístico” e o “modernismo teológico”, os quais, embora tenham diferenças significativas, emergem de um mesmo contexto cultural e localidade: a Paris do princípio do século XIX [1]. Um entendimento correto dessa origem em comum leva à compreensão de tendências que nos são contemporâneas, que, aparentemente opostas, guardam, no entanto, relações profundas entre si. No caso, segundo argumenta o autor, o fundamentalismo e o pós-modernismo têm mais em comum que imaginamos: “os últimos vinte e cinco anos”, Bull continua, “testemunharam a ascensão simultânea de movimentos determinados a questionar as realizações [de ambos os “modernismos”]: o fundamentalismo na religião, e o pós-modernismo na filosofia e nas artes”. [2]

Obviamente, como já discutido nos dois primeiros ensaios desta série, a primeira condição para qualquer análise de autores antimodernos é justamente a delimitação do que entendemos por “modernismo”. Até mesmo num âmbito específico – digamos o estético – há definições as mais distintas: na literatura hispano-americana, por exemplo, o modernismo é um movimento essencialmente associado à poesia, cosmopolita, anti-burguês e místico, estando por isso mais próximo ao simbolismo europeu do que ao movimento homônimo brasileiro. No entanto, como Malcom Bull nos esclarece, o termo “modernismo” – ao menos como designação de uma tendência intelectual mais ou menos formalizada – surgiu primeiramente como referência a determinada escola teológica (ou mais corretamente a uma abordagem teológica), que posteriormente se tornaria alvo das críticas de Pio X em sua encíclica Pascendi Dominici Gregis.

Desse modo, em 1871, Abraham Kuyper publicou um longo ensaio intitulado Het Modernisme: Een Fata Morgana op Christelijk Gebied (O Modernismo: uma Fata Morgana no domínio cristão), sendo o termo, a partir daí, amplamente difundido pelos Países Baixos e pela Bélgica. Partindo desses países, é possível que tenha chegado à Inglaterra; de todo modo, já em 1899 surge a tradução para o inglês de outra obra de Kuyper (a Encyclopedia of Sacred Theology), que também trazia em si esse conceito. Somente em 1879, diz-nos Bull, o termo francês “modernisme” será usado pela primeira vez, num ensaio de Joris-Karl Huysmans, como referência a um movimento estético e artístico mais amplo.

Certamente há usos anteriores dessa palavra (Jonathan Swift provavelmente a cunhou numa carta a Alexander Pope, em 1737, numa alusão às perversões do estilo clássico); e não é nossa intenção aqui uma abordagem etimológica, mas apenas a delimitação das origens intelectuais de alguns de seus usos.  

À vista disso, esses dois “modernismos” (o teológico e o artístico), embora aparentemente pertençam a domínios distintos e quase incomunicáveis, guardam certas semelhanças, como John Ruskin, numa palestra sobre os pré-rafaelitas, havia percebido. Para ele, “modernismo era a condição da arte divorciada das crenças religiosas com as quais estivera unida em matrimônio ao longo de todo o período precedente do ‘medievalismo’”. [3]

Porém, como já aludimos, o modernismo teológico, por vezes chamado de liberalismo, pautava-se na rejeição do sobrenatural, pela crença otimista num desenvolvimento progressivo e irrefreável do ser humano, por uma redução da dogmática à ética (incluindo aí um Cristo que se tornou simples modelo de conduta) e a expurgação de todos elementos tidos como irracionais ou mitológicos da teologia. Paradoxalmente, todavia, o modernismo estético, como bem se sabe, buscou no primitivismo, no mítico, no irracional e mesmo no selvagem os elementos de uma possível regeneração da arte, que assumia então uma dimensão não só espiritual e mística, mas mesmo ritualística. Em suma, nas palavras de Bull, “o que, à primeira vista, parece uma relação paralela revela-se posteriormente uma relação complementar: o modernismo teológico dissolvia o dogma, enquanto o modernismo estético formulava credos novos e irreverentes”. [4]

Portanto, em seu ensaio O Modernismo: uma Fata Morgana no domínio cristão (doravante Fata Morgana), Kuyper debruça-se sobre um movimento que, em sua concepção, transcende a teologia, e alcança os âmbitos histórico, social e político. Diferentemente do que o título nos sugere, Kuyper estava não só atualizado mas também entusiasmado pela efervescência intelectual de sua época, incluindo desde as inovações no campo científico até as experimentações realizadas no meio artístico. Uma de suas inúmeras obras, por exemplo, é dedicada inteiramente a uma análise teológica das peças de vários artistas então seus contemporâneos, dentre eles o pintor Max Liebermann e o escultor russo Ilya Repin.

Nascido em 1837, na pequena Maassluis, cidade às margens do rio Meuse, Abraham Kuyper recebeu sua formação acadêmica na Universidade de Leiden, quando o positivismo, o determinismo mecanicista (representado principalmente por seu professor Jan Hendrik Scholten) e outras correntes próximas ao cientificismo ainda gozavam de estima tanto nos Países Baixos quanto em certas regiões alemãs. Suas realizações, como nas muitas e recentes publicações biográficas sobre ele informam, inclui não somente a direção de um jornal durante cinco décadas (o Standaard, principal veículo do neocalvinismo da época), a condução de uma separação da igreja estatal e subsequente formação de uma denominação “livre” (as Gereformeerde Kerken), a fundação, em 1880, da Universidade Livre de Amsterdã (uma das principais do país), o estabelecimento do primeiro partido político formal do país, em 1897 (do qual falaremos adiante), e sua atuação como Primeiro-Ministro dos Países Baixos de 1901 a 1905.

Conforme nos lembra mais uma vez Malcom Bull, Kuyper, “o antimodernista original”, é tão ambíguo como os demais autores que se enquadram nessa definição. Afinal, “como líder do Partido Antirrevolucionário e Primeiro-Ministro dos Países Baixos de 1901-1905, Kuyper pode ser visto como o precursor dos líderes fundamentalistas contemporâneos que buscam combinar o avivamento religioso com a busca do poder político; porém, como teórico do neocalvinismo, ele antecipou alguns dos desenvolvimentos mais controversos na teoria pós-moderna”. [5]

Se nos lembramos de algumas características que diferenciam os contrarrevolucionários dos antirrevolucionários apresentadas nos dois primeiros ensaios desta série, entendemos que Kuyper, embora repudiasse o espírito que conduziu à Revolução Francesa, jamais negou que, em decorrência de certas reivindicações dos revolucionários, a sociedade europeia como um todo respondeu com novas dinâmicas e articulações; e nunca almejou a reversão do pluralismo institucional que, à época, os povos europeus testemunhavam.

Desse modo, travando contato com Guillaume Groen van Prinsterer – um historiador pertencente aos círculos aristocráticos neerlandeses que atuou como secretário do período de 1829 a 1833 ao rei Guilherme II dos Países Baixos –, Kuyper organizou em linhas democráticas o movimento antirrevolucionário que Prinsterer conduzia há décadas, criando assim o Partido Antirrevolucionário em 1897, que durou até a década de 1980.

Confrontando tanto os liberais quanto os conservadores de sua terra natal, Kuyper traçou um combate de princípios entre as tendências advindas da Revolução Francesa e o cristianismo. De igual modo, Kuyper dirigiu duras críticas ao socialismo que ganhava força em razão das crises agudas ocasionadas pela industrialização e pelas massas de operários. A despeito disso, ele reconhecia e tratou, numa de suas conferências, das mazelas vivenciadas pelos trabalhadores. Num posicionamento que talvez soe para alguns como “populismo”, Kuyper, numa brochura intitulada Nossa Vida Instintiva, opondo-se ao sufrágio censitário, acreditava nos laços orgânicos entre o “calvinismo rural” do povo de sua terra natal e o líder nato. A despeito disso, porém, estava consciente da transição, observada por Weber, do domínio da autoridade carismática para a prevalência da autoridade burocrática.

Portanto, embora percebesse os perigos que espreitavam a liberação ou atuação direta das massas sobre a política, Kuyper acreditava que não seriam os elementos de exclusão ou segregação que trariam a solução do problema, mas apenas o restabelecimento da “vida instintiva”, a sabedoria prática oriunda da emanação ou influência de princípios religiosos sobre uma comunidade.

Assim, valendo-se de seu estilo barroco e metafórico, e em geral com longos exórdios, Kuyper, em Fata Morgana, levanta primeiramente uma acusação a certos líderes religiosos, para depois voltar-se para intelectuais e políticos, em sua longa argumentação de que o modernismo é uma ilusão, ou mais precisamente uma refração do cristianismo. A questão, conforme já se disse, é ambígua, pois é precisamente essa continuidade (efêmera mas inegável) entre fé cristã e modernismo que garantiu a este último, segundo o raciocínio do teólogo, a luz e perspicácia para uma série de descobertas, inovações e progressos. No entanto, não sendo o modernismo senão uma miragem, acaba por fim conduzindo os homens a uma falsa promessa.

O próprio título, conforme o autor explica, é uma referência ao fenômeno óptico homônimo, que cria uma espécie de duplicação ou ampliação dos objetos no horizonte. A expressão refere-se originalmente ao ente fantástico (fada), a quem, no folclore da região da comuna de Régio da Calábria, se atribuía a causa do fenômeno. Para Kuyper, portanto, que não raro reconhece as boas qualidades daquilo a que se opõe, o modernismo, que é o efeito Fata Morgana do cristianismo, tem “uma beleza fabulosa [como] sua característica primordial. Porém há mais: a Fata Morgana segue uma lei fixa de refração; não cria nada, mas somente reflete as coisas que existem… Ora, o modernismo também é um fenômeno que nos fascina por sua beleza enganadora, que nasceu não por uma idiossincrasia do destino, mas sim segundo uma lei fixa”. [6] Segundo veremos num próximo ensaio, a visão histórica de Kuyper propõe manifestações recorrentes (embora não previsíveis) de conflitos espirituais inconciliáveis.  

Desse modo, para o polímata, o modernismo é parasitário ao cristianismo – não sua negação, como Ruskin o queria, mas uma paródia. “É pois seguro dizer que, por mais longe que tenha vagado pelas sendas pagãs, o modernismo ainda pertence à esfera do cristianismo, pois as sombras não podem se separar das árvores que as projetam”. [7]

O teólogo, porém, indaga: “o que havia na atmosfera espiritual de nosso século que engendrou esse fenômeno? Por que a heresia particular de nosso século teve de ser um modernismo estridente? A característica fundamental de nosso século é seu realismo, sua sede de realidade. As pessoas abandonaram seus ideais insubstanciais e querem acima de tudo ver e manusear – e, eu poderia acrescentar, desfrutar livremente – as coisas. Quatro impulsos conduziram inexoravelmente as pessoas de nossa época por essa trilha: a falência da filosofia, a impotência da revolução, a expansão colossal dos estudos sobre a natureza e a sonolência da igreja”. [8] São questões que perpassam, pois, o âmbito intelectual, sócio-político, científico e religioso. Veremos num segundo ensaio as considerações de Kuyper sobre o modernismo, a partir desses problemas por ele assinalados.

Nota de rodapé

[1] Como exemplos, pode-se citar Huysmans e Baudelaire, e Ernest Renan, como exemplos respectivos de cada variante de modernismo.

[2] Malcolm Bull, “Who was the first to make a pact with the devil?”, London Review of Books, Vol. 14 No. 9 · 14 Maio 1992, p. 22-23.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] Abraham Kuyper, “Modernism: A Fata Morgana in the Christian Domain”, em Abraham Kuyper: A Centennial Reader, ed. James D. Bratt (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), p. 87-124.

[7] Ibid.
 
[8] Ibid.
 

Fabrício Tavares de Moraes

Fabrício Tavares de Moraes é Professor Adjunto da UFMA. É também tradutor e Doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University London).