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Os intrusos na caravana

Vista da ponte sobre o Rio Suchiate, na divisa entre as cidades de Tecún Umán (Guatemala) e Ciudad Higaldo (México) Foto: PEDRO PARDO / AFP

por Leonardo Coutinho

Terroristas islâmicos valendo-se de coiotes mexicanos para atravessar a pé a fronteira sul dos Estados Unidos é um tema promissor para um roteiro de cinema repleto de ação. De fato, este argumento já foi usado e, de certa forma, desperdiçado em Sicário, o dia do Soldado (2018). Neste filme, a relação dos cartéis de drogas com o extremismo islâmico teve um papel periférico na trama que se concentra em narrar como Washington montou uma operação secreta para detonar uma guerra entre os cartéis de drogas mexicanos, como antídoto contra a entrada de imigrantes ilegais no país. Entretanto, O dia do Soldado faz um diagnóstico certeiro em mostrar que não existe barreira entre aqueles que traficam pessoas e drogas para os Estados Unidos. Mas a realidade geralmente é bem mais complexa e, até mesmo, mais inacreditável que a ficção. Extremistas islâmicos podem estar usando essa mesma rota para alcançar os Estados Unidos.

Em outubro, as autoridades da Guatemala identificaram 232 pessoas provenientes de pelo menos treze países da África, Ásia e Oriente Médio que se infiltraram na caravana dos migrantes. Entre eles, estavam imigrantes de Bangladesh, Eritreia, Paquistão e Somália. Esses quatro países fazem parte de uma lista do Departamento de Segurança (DHS, conforme a sigla em inglês) que, segundo a qual, “tem mostrado uma tendência a promover, produzir ou proteger organizações terroristas”. Os “Special Interest Aliens” (SIA) – como são definidos os viajantes originários desses países – tentaram se mimetizar entre os imigrantes centro-americanos. Especificamente, eles fazem parte da caravana dos imigrantes que se iniciou há um mês. Os infiltrados foram fotografados, registrados e deportados. Como nenhum deles foi efetivamente preso, a expulsão serviu como ajuda para avançar. “Deportação”, de acordo com a legislação guatemalteca, significa deixar o país dentro do período indicado pelas autoridades. Os homens continuaram com a caravana em direção à fronteira com o México e muito provavelmente agora estão entre os que criam tumultos na fronteira com os Estados Unidos, ou já conseguiram entrar no país valendo-se das várias formas de acessos de clandestinos nos Estados Unidos.

Segundo os dados do governo da Guatemala, os infiltrados na caravana são em sua maioria homens com idade entre 25 e 45 anos. Muitos deles, são indocumentados e ao serem flagrados pelas autoridades migratórias foram registrados apenas com base em suas autodeclarações. Sem garantia alguma que nomes, idades e nacionalidades são verdadeiras. Como os casos de Z. A. e M. S., cujas fichas de identificação estão aqui reproduzidas. Todas as informações contidas no documento foram fornecidas oralmente pela dupla, sem nenhum tipo de confirmação possível. 

O governo dos Estados Unidos está provendo auxílio tecnológico aos centro-americanos na tentativa de identificar pessoas como Z. A. e M. S.. Segundo uma autoridade guatemalteca, ambos são exemplos do desafio para a segurança. “Eles são o que dizem ser. Não há como saber se dizem a verdade ou se eles construíram personagens para esconder seus planos reais. Verificar as histórias é uma tarefa muito difícil “. Em outubro, a secretária do Departamento de Segurança, Kirstjen Nilsen, reconheceu publicamente a presença dos SIAs entre os migrantes da caravana.

Os primeiros sintomas do oportunismo de possíveis extremistas islâmicos nas rotas de migração dos centro-americanos apareceram em 2016, quando 44 sírios foram identificados na Guatemala, todos com documentos falsos e pelo menos um com ligações com o Estado Islâmico. Todos os “sírios” estavam tentando chegar aos Estados Unidos. Alguns deles relataram ter entrado no continente pelo Brasil. Desde 2013, o país sul-americano oferece vistos humanitários para sírios. Além daqueles que fogem da guerra civil na Síria, o Brasil é procurado como um portal na América do Sul por possuir uma política de refúgio altamente permissiva.

De acordo com as leis brasileiras, qualquer cidadão, de qualquer nacionalidade, pode requerer refúgio, no momento em que chega ao país, sem a necessidade de apresentar um único documento. Pelas regras atuais, o que vale é a autodeclaração do refugiado. Funcionários da Polícia Federal, que trabalham em alguns dos principais aeroportos do Brasil, relatam casos de imigrantes que descaradamente mentem sobre a origem, mas que são aceitos e têm documentos brasileiros emitidos com os dados fornecidos por eles. “Devido a uma fragilidade na lei, o Estado brasileiro pode estar ajudando a forjar falsas identidades todos os dias em nossos postos de imigração”, reconhece um policial do Aeroporto Internacional de São Paulo, o maior do país.

Em maio de 2018, a inteligência guatemalteca se viu diante de um caso perturbador. Cinco homens que se diziam paquistaneses foram detidos por imigração ilegal. As investigações concluíram que o ingresso clandestino na Guatemala era o menor dos problemas. Todos haviam mentido sobre a nacionalidade. Os investigadores descobriram se tratar de palestinos que tentavam atravessar o país sem deixar rastros, usando e mesmíssima rota terrestre que cinco meses depois viria a ser da caravana dos imigrantes rumo aos Estados Unidos. Os palestinos entraram na Guatemala pela cidade hondurenha de Agua Caliente e pretendia ingressar no México pelo posto fronteiriço de Tecun Uman, onde foram descobertos.

Segundo um trabalho de campo realizado por Joseph Humire, diretor-executivo do Center for a Secure Free Society, com sede em Washington, que em outubro entrevistou alguns dos integrantes da caravana, os infiltrados possuem um tipo de suporte financeiro e logístico diferenciado. Humire relata que os imigrantes centro-americanos dizem que os SIAs viajam a maior parte do tempo em veículos e que eles têm atendimento prioritário em postos de controle fronteiriços. “A informação que a Guatemala tem conseguido barrar alguns imigrantes classificados como SIA sugere que muito que esses 132 estrangeiros podem ter se infiltrado na caravana”, diz Humire.

Não é possível afirmar que os terroristas islâmicos estão se aproveitando da caravana de imigrantes para entrar nos Estados Unidos. Da mesma forma, não pode ser ignorado, na mesma proporção, que grupos terroristas do Oriente Médio, África e Ásia já se utilizam das mesmas rotas da caravana para cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Os imigrantes já chegaram na fronteira americana depois de mais de um mês de caminhada. A possível eclosão de um problema humanitário naquela região pode ser a cobertura ideal e segura para alcançar o território americano. Esses 232 infiltrados na marcha não são vítimas da violência das gangues centro-americanas ou da falta de oportunidades econômicas em Honduras, El Salvador ou Guatemala. Muito pouco se sabe sobre cada um deles. Em uma situação tão nebulosa, o mais prudente, em todos os sentidos, é considerar que nem tudo é exatamente o que parece ser.

O ceticismo se torna mais recomendável em causas com tendência a aglutinar apoio popular substancial, justamente o que acontece nas crises humanitárias. A emergência inerente dessas situações obriga as autoridades a priorizar a mitigação do sofrimento humano. Esta é uma decisão impossível de não ser tomada por qualquer governante comprometido com valores fundamentais. Mas esses mesmos líderes não podem se dar ao luxo de ceder às pressões de organizações não-governamentais, setores da população e da imprensa, ignorando os princípios básicos de segurança de seus cidadãos. Nos últimos dois anos, Alemanha, França, Inglaterra e Turquia registraram ataques cometidos por refugiados. Homens que se valeram um dos valores mais nobres da civilização, justamente para atacá-la. Cunhado na Grécia Antiga, os conceitos de refúgio e asilo fazem parte dos fundamentos de nossas sociedades ocidentais. Precisamente por isso, os inimigos do Ocidente não enfrentam nenhum problema em manchar o valor do santuário que está no centro dessas medidas. Não se trata de criminalizar o asilado ou rejeitar a proteção dos seres humanos que são perseguidos. Mas não pode exigir que os países ignorem as organizações criminosas e terroristas que usam os valores ocidentais como porta de entrada para atacar o Ocidente. A mesma civilização grega que legou o conceito de asilo também nos ensinou uma lição: a do cavalo de Troia. Segundo a história, os gregos usaram um subterfúgio para superar uma barreira considerada impenetrável. O que aconteceu depois que o “presente” passou pela barreira não é necessário dizer. A história é já é bastante conhecida.

Leonardo Coutinho é jornalista e pesquisador. Também é autor do livro Hugo Chávez, o espectro (Ed. Vestígio, 2018). @lcoutinho

Publicado originalmente em espanhol em La Patilla.