Poesia

Ouse saber! Tradução de Epístolas 1.2 de Horácio

por Rafael Frate

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A Difficult Line from Horace, Lawrence Alma-Tadema, 1881

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O poema que apresento e traduzo aqui é o segundo do primeiro livro de Epístolas de Horácio. Trata-se de um momento da carreira literária do poeta augustano em que ele, maduro, já avançado em anos, decide “abandonar os versos e outros joguetes para se dedicar e cuidar do que é decente e correto” (Epist. 1.1.10-11). Em outras palavras, o velho poeta começa a buscar agora uma outra coisa mais valiosa: viver bem. Sobre este livro e o restante das epístolas já foi feita uma brilhante exposição aqui no Estado da Arte por meu querido amigo e ex-professor Alexandre Hasegawa. Nesta breve apresentação quero apenas dedicar algumas palavras a esta que é uma das mais importantes e significativas epístolas do primeiro livro.

Obra que contém uma das mais famosas máximas horacianas, sapere aude, “ousa saber”, apropriada mais de dezoito séculos depois por Immanuel Kant como lema do Iluminismo, a epístola 1.2 é talvez a que melhor e mais diretamente apresente conceitos de filosofia moral contidos nos diversos conselhos e provérbios dentro dos quais a famosa máxima se insere. A carta foi endereçada a Lólio Máximo, um jovem aristocrata que está iniciando seus estudos de retórica em Roma e a quem provavelmente também se dedica a Epístola 1.18, e constitui um protréptico, uma exortação a determinada ação, no caso aqui à prática de uma ética filosófica fundamental para viver como se deve.

Curiosamente, logo após abrir seu livro com a altiva asserção de que vai abandonar a poesia em nome da filosofia, Horácio abre o segundo poema (que, polemicamente, não seria um poema – cf. a discussão aqui dizendo que Homero, aquele que escreveu a guerra em Troia, é o filósofo máximo. É ele quem melhor representa os conceitos da filosofia moral que o poeta quer tratar, melhor ainda que os filósofos Crantore e Crisipo. Em mais uma de suas deliciosas contradições e inconsistências, típicas de um homem médio demasiadamente humano, como todos nós, Horácio apresenta neste paradoxo cenas da Ilíada e da Odisseia como representantes dos vícios a serem evitados (com exemplos da Ilíada, o poema da ira de Aquiles) e das qualidades a serem exaltadas (com exemplos da Odisseia, o poema da astúcia de Ulisses). Os exemplos homéricos são arrolados até o verso 32, quando começa a parte do poema em que se listam os principais conselhos que o poeta julga importantes para o garoto com quem artificiosamente se corresponde. Este segundo bloco continua assim até o final, nos vv. 67-71, quando temos a valedicção, ou o fechamento convencional da carta.

A tradução que apresento aqui foi feita em verso livre, apresentando algumas ligeiras constrições formais, como não permitir versos com número ímpar de sílabas, em uma gama que livremente oscila entre dez e dezesseis sílabas poéticas. Adotei algumas práticas tradutórias como a neutralização de alguns nomes e referências mais obscuras ao mundo romano, a fim de dar uma ligeireza e familiaridade mais apropriadas ao sermo e à poesia hexamétrica horaciana. Essa prática moderadamente domesticadora foi inspirada sobretudo pelas traduções das epístolas de Colin Macleod,[1] um dos que melhor transferem, na humilde opinião deste tradutor, o tom de conversa horaciano tão peculiar de suas epístolas. Para todos os pontos onde houve adaptações há as devidas notas, contendo o que foi neutralizado.

Fiquemos, pois, com essa joia da poesia horaciana e, acima de tudo, ousemos saber, com a parcimônia e a ponderação nela prescrita. É cada vez mais um dever de todos nós, frente aos fascistas obtusos, aos negacionistas da inteligência, aos governantes facínoras e aos falsos-filósofos nefastos que têm cada vez mais estabelecido o reino da violência e da mentira em nossa combalida república.

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Epístola 1.2

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……..Aquele que escreveu a guerra em Tróia, Lólio Máximo,

reli em Preneste, enquanto você declamava em Roma.[2]

Ele que o belo, o torpe, o útil e seu contrário,

mais simples e melhor expõe que qualquer um dos filósofos.[3]

Por que vim a crer isso, escute, se não for atrapalhar.…………………………………..5

A fábula na qual se narra, após o amor de Páris,

a Grécia e o estrangeiro colidindo num conflito

entediante, contém todo o furor de povos e reis tolos.

Antenor propõe que se extirpe a guerra pela causa.[4]

E Páris? Nada o forçará, feliz ao fim,……………………………………………………………..10

a viver e reinar em paz. Nestor se apressa

a remediar a rusga entre o Pelida e o Atrida:

o amor inflama um deles; a ira a ambos por igual.

No que quer que os reis delirem, paga o preço o povo.[5]

Discórdia, crime, ardil, bem como ira e desejo,…………………………………………….15

são falhas dentro e fora dos bastiões de Tróia.

……..Por outro lado, tudo o quanto pode a esperteza e o valor,

ele nos demonstrou com o útil exemplar de Ulisses.

Ele que Tróia tomou e que muitas cidades, atento,

viu assim como os costumes de muitos e no amplo mar atirado,………………..20

sempre buscando o retorno de si e dos sócios, sofreu

muitas agruras, jamais afogado na vaga das adversidades.

Você conhece os cantos das sereias e as taças de Circe:[6]

se ele bebesse delas estaria, estulto, com seus sócios,

sob o domínio de uma meretriz, cretino, torpe,……………………………………………25

seria um cachorro imundo ou porca afeita à lama.

Nós somos só um número, nascidos para o consumo,

tratantes pretendentes de Penélope, ou moleques

do palácio de Alcínoo[7] ocupados demais com o bronzeado,

a quem bonito é dormir ao meio dia e…………………………………………………………..30

esquecer as preocupações ao som da lira.

……..Para degolar um cidadão, ladrões levantam cedo;

e para salvar-se você não vai acordar? No entanto,

se não correr sadio, você vai estando obeso.[8] Quem

não pega o livro antes de nascer o sol, quem não…………………………………………35

empenha a mente nos estudos e em assuntos dignos,

vai acordar, presa da inveja e da paixão, de madrugada.

Por que a pressa de tirar o cisco do olho? Se algo

corrói-lhe a alma você vai procrastinar outro ano ainda?

O que começa está no meio do caminho. Ouse saber,…………………………………..40

comece! Prorrogar a hora de viver direito é

sentar à beira e aguardar que o rio se esvaia. Ele, no entanto,

flui e fluirá fugaz para todo sempre.

Busca-se a prata, uma mulher bem rica para criar

os filhos, e florestas são ceifadas para ampliar a messe,………………………………45

mas para quem já basta o que lhe cabe, não busque ele além.

Casas, terras, dinheiro, nada disso

abaixa a febre de seu proprietário, e não

lhe tira o peso da alma. Ele tem que estar bem

para fazer bom uso dos bens que acumulou…………………………………………………50

Casas e posses a quem teme e a quem deseja são tão gratas

quanto é uma pintura a quem não vê, compressas a um reumático,

cítaras a ouvidos moucos, cheios de secreção:

Se a jarra não está limpa, o conteúdo azeda.

……..Despreze seus desejos: desejo comprado à dor faz mal.………………………..55

Falta sempre algo ao ganancioso: saiba pôr termo à vontade.

O invejoso definha na bonança do vizinho.

A inveja… déspota nenhum pôde inventar pior

tortura que ela. Aquele que não sabe moderar a ira

vai desejar que não fizesse o que o rancor pediu com a dor……………………….60

ao se apressar para a desforra violenta do ódio impune.

A ira é um desatino breve. Reja o ímpeto: Pois se ele

não obedece, impera. Puxe o freio, amarre-o na correia.

O mestre faz o potro dócil quando é jovem sua cerviz,

assim, segue por onde manda o condutor. O galgo,………………………………………65

desde a primeira vez em que latiu a uma pele de corça,

filhote, ronda pelas selvas.

……..……..……..Bem, menino,

beba minhas palavras com coração puro; sigam-me os bons!

Barris novos ressaltam o aroma da bebida.

Mas se você ficar para trás ou se adiantar demais,………………………………………70

não espero quem retarda, nem alcanço apressadinhos.

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Quinto Horácio Flaco

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Notas:

[1] Macleod, Colin. Horace, The Epistles. Translated into English verse with brief commentary. Edizioni Dell’Ateneo, 1986.

[2] Homero.

[3] Original: Crantore e Crisipo. Crantore de Soli (fl. 340-290 a.C), filósofo da Academia que teria escrito muito sobre questões morais. Crisipo (279-206 a.C.), um principais exponentes do estoicismo.

[4] Conselheiro do rei de Troia, Príamo. No canto VII (vv. 345-364) da Ilíada ele sugere a Páris que Helena seja devolvida aos gregos. O príncipe recusa.

[5] Orig. “pagam o preço os aqueus”.

[6] Referências, respectivamente, aos cantos 12 e 10 da Odisseia.

[7] Rei dos Feácios, cuja abundância proverbial é narrada no canto 12 da Odisseia.

[8] Orig. hidrópico.

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Rafael Frate

Rafael Frate é mestre em Língua e Literatura Russa pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é doutorando em Letras Clássicas na USP