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O outono de Gorbachev

por Astier Basílio

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Mais do que uma estação de flores, a primavera russa é um período de degelo. Com o aumento da temperatura, a neve derrete deixando lama pelas ruas. Um dia após o fim do inverno, Moscou registrava dois graus negativos. Foi quando se mostrou a repórter Marina Kvartskheliya abordando pessoas que circulavam na Rua Tverskaya. Aos transeuntes que lhe atendiam, era mostrado um celular: “Você sabe quem é este aqui?”.

Quatro pessoas, em sequência, não conseguiram reconhecer a fotografia de Gorbachev. Aparentavam estar na faixa dos 20 anos, uma geração nascida após a “perestroika”, vocábulo russo que significa “reconstrução”, uma das poucas palavras do idioma eslavo conhecidas no ocidente. Marina teve mais sucesso quando dirigiu sua pergunta a pessoas que viveram à época em que Gorbachev estava no poder. Mas ainda assim houve certa imprecisão ao se definir qual função o líder havia exercido.

“Então, minha consulta mostrou que o nosso povo tem mesmo dificuldade com história e, de verdade, poucos são os que puderam reconhecer Mikhail Gorbachev e falar quem ele foi”, disse Marina Kvartskheliya ao terminar sua passagem. A reportagem, de 20 minutos, foi exibida pelo canal de televisão Moskva 24.

Se é possível que muitos russos, hoje, não reconheçam quem tenha sido uma das figuras centrais da história da humanidade, praticamente toda a imprensa russa veiculou, no dia 2 de março, o rosto de Mikhail Sergeevitch Gorbachev. Dentre todos os secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética ninguém chegou ao cargo mais jovem do que ele. Tampouco, ninguém conseguiu viver tanto e chegar aos 90 anos. Nascido em 1931, Gorbachev foi ainda o único chefe do Politburo a vir ao mundo depois da revolução de 1917 e da formalização da URSS, em 1922. O mundo soviético desmoronou sob as mãos de alguém que já havia nascido sobre seu signo.

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Gorbachev (McGill University Archives)

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A face juvenil e sorridente que encantou o mundo na década de 1980 deu lugar a um semblante pesaroso, um tanto sorumbático. Mais do que a diabetes, que o castiga há muitos anos, a perda da esposa Raisa Maksimóvna, fez Gorbachev mergulhar em períodos contínuos de depressão. As saídas de casa têm sido cada vez mais raras. Sua última aparição pública aconteceu em outubro do ano passado, quando compareceu à estreia da peça “Gorbachev”.

O espetáculo centrou-se na história de amor entre Raissa e Mikhail. O casal se conheceu em um baile e estudou junto na MGU – Universidade Estatal de Moscou. Várias foram as tentativas de compra dos direitos da biografia de Gorbachev não só para encenações teatrais, bem como para o cinema. O privilégio da cessão se deu por conta da amizade com o ator Yevgeny Mironov, 54 anos, que também é diretor do Teatro das Nações, onde se realizou a montagem. Gorbachev não fez qualquer interferência. Seja no texto, seja na produção.

Tão logo terminou a apresentação, o nome de Gorbachev foi anunciado. Pessoas com máscaras dividiram-se entre os que de pé o aplaudiam e os que o filmavam de seus telefones. Com dificuldade, o homem cuja história era encenada no palco, levantou-se da cadeira e apoiou-se no parapeito do camarote. Após algum esforço conseguiu acenar para a plateia. “Obrigado”, chegou a dizer enquanto fazia uma pequena reverência com a cabeça.

Antes que a música do compositor Karlis Auzans preencha a paisagem com a delicadeza do piano, escuta-se apenas o som da engrenagem do elevador. É mostrada uma mesa com pelo menos dezesseis cadeiras, em um cômodo onde se destaca a presença de um lustre de cristal. Mas não há ninguém. A fotografia explora uma certa atmosfera sombria. Um painel onde Raissa Maksimova sorri, vestindo blusa preta, com um crucifixo prateado, emerge da escuridão.  “Tem vodka?”. É a voz de Gorbachev. Ele se dirige à cozinheira, trajada em uniforme branco, que lhe responde afirmativamente.  Soa no mínimo curioso ouvir tal pergunta vindo de quem, ao chegar no poder, deu início a uma campanha contra o alcoolismo. A solidão do patriarca da liberdade que vive o seu outono é exibida sem retoques. Vemos um ancião deslocar-se, com auxílio de um andador, na escuridão de uma sala vazia.

Estas são algumas cenas do trailer do documentário “Gorbachev. Paraíso“, que entrará em cartaz na segunda metade de abril. O filme é de autoria do cineasta letão Vitaly Mansky, 57 anos. A produção desnuda a intimidade e a fragilidade física daquele que foi um dos homens mais poderosos do mundo. Não é a primeira vez que Gorbachev é tema de uma película sua. Em 2001, entrou em cartaz “Gorbachev. Após o império”.  À época do lançamento do seu novo filme, foi perguntado a Vitaly Mansky se aquele tema lhe fascinava. “Sim. Ele é meu herói. Não tenho acanhamento nenhum em falar isso abertamente”.

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(Reprodução)

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A dacha, onde foi rodada a película, pertence ao governo russo, e está situada na pequena cidade de Kalchuga, que fica a 80 quilômetros de Moscou. Uma espécie de vila localizada nas imediações da rodovia Rublevo-Uspenskoye. Lá foram construídas algumas das mais luxuosas mansões do país. Endereço de muitos milionários. É onde tem residência, por exemplo, o ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Rússia, Dmitri Medvedev. E onde mora, há 28 anos, Mikhail Gorbachev.

A concessão para usufruto vitalício da residência, bem como instruções a respeito da aposentadoria, aconteceu quatro dias antes da renúncia. Das doze assinaturas constantes, onze delas eram de presidentes de países que acabaram de se declarar independentes e que haviam pertencido à União Soviética. Apenas a Belarus, dentre os signatários, ainda não havia proclamado sua independência, no momento em que o documento foi redigido.

Não é possível afirmar com exatidão os valores da aposentadoria de Mikhail Gorbachev recebe mensalmente, pois a depender da cidade onde poderia ter sido feito o registro, para obtenção do benefício, a cifra muda. Além da pensão, ele conta ainda com uma equipe de funcionários pagos pelo estado. Segurança, enfermeiro, motorista, cozinheiro e mais um auxiliar para serviços domésticos. Calcula-se que a aposentadoria alcance 800 mil rublos (algo em torno de R$ 60 mil). A quantia é maior do que a pensão recebida por ex-presidentes brasileiros, cujo valor é de pouco mais de R$ 28 mil, sem contar os gastos com assessores, viagens, combustível, etc.

Com a saúde constantemente debilitada, Gorbachev passa longas temporadas em tratamento. Seu aniversário de 90 anos também foi celebrado num hospital, de onde foi realizada uma transmissão via Zoom. Foi assim que conversou com os amigos e assessores que trabalham em sua fundação. Num vídeo, publicado pelo jornal Pravda, foi possível ver um bolo de três andares em cujo topo havia duas velas do tipo vulcão ladeando os números correspondentes à idade do aniversariante que foram acesas por dois enfermeiros.

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“Como é que fala um, dois e três em russo?”, perguntou Peter Kuras, prefeito da Dessau-Rosslau, cidade alemã localizada no estado de Saxônia-Anhalt, antes de descerrar o manto que cobria a estátua de corpo inteiro de Mikhail Gorbachev, fixada em frente à Câmara de Vereadores. O monumento foi inaugurado em outubro do ano passado, como um marco das comemorações de três décadas de unificação da Alemanha. Aquela não foi a primeira vez que as feições do russo foram talhadas em bronze. Dez anos antes, também para celebrar a efeméride, em Berlim se erigiu um monumento aos Pais da Unificação. Os traços do rosto de Gorbachev ficaram imortalizados em um busto, ao lado das efígies do ex-premiê alemão, Helmut Kohl e do ex-presidente americano, George Bush, o pai,

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(Reprodução)

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À época, ao participar da solenidade e responder se não ficava incomodado com o fato de que em vida já haver monumentos em sua homenagem, Gorbachev, que costuma falar de si mesmo em terceira pessoa, não deu tratos à modéstia e opinou que não. “Acredito que ainda dá para haver em outros lugares”.  O jornalista sugeriu onde mais poderia e arriscou: “… na Rússia?” Uma expressão de tristeza caminhou sobre as rugas do velho líder, que asseverou: “Na Rússia, não”.

Não se restringe apenas a comemorações oficiais e a cerimônias a ligação de Gorbachev com a Alemanha, cuja capital lhe conferiu título de cidadão honorário, presenteando-o com passe livre em todos os transportes públicos, bem como possibilidade de, obviamente após a morte, ser enterrado em solo germânico, sem quaisquer custos. Foi de lá que veio uma proposta inusitada. Trabalhar como ator. O convite veio do festejado diretor Wim Wenders.

Na escola, localizada na pequena vila rural em que nasceu, Gorbachev chegou a dar vida a personagens de clássicos da dramaturgia russa como Lermontov e Ostrovsky. As artes cênicas era algo que unia Gorbachev a outro personagem importante, que marcou o século XX: o polonês Karol Wojtyla. Ambos eram jovens quando chegaram ao poder: o religioso aos 58, o político aos 54. No emblemático ano da queda do Muro de Berlim, 1989, os dois realizaram um feito inédito.  Era a primeira vez que um chefe de estado soviético, uma nação oficialmente ateia, visitava o Vaticano, um estado teocrático.

Mas a experiência de estar em um set, atuando, era inédita. Gorbachev, mesmo que interpretando a si próprio, estava diante de câmeras de um cineasta que fazia um filme de ficção. Ouvir o grito de “ação” era algo a que estava acostumado outra figura central do século XX:  o presidente Ronald Reagan. Os dois se encontraram pela primeira vez, em 1985, em Genebra, na Suíça.  Naquela ocasião, era a primeira vez que, ao se encontrarem, o número um do Politburo era mais novo do que o chefe do Pentágono. O americano, de 74 anos,  estava diante de seu interlocutor russo,  duas décadas mais jovem.

Nos créditos do filme Tão Longe, Tão Perto (1993), do alemão Wim Wenders, Gorbachev aparece como ator que dá vida a si mesmo. Sua aparição é curta. Está em um gabinete. Ouvimos sua voz em off que diz: “Sim, uma eterna questão, o sentido da vida. O que viemos fazer no mundo”. A reflexão filosófica prossegue. Um anjo se aproxima. Põe a mão em seu ombro. O mundo, antes em preto e branco, adquire cores. Até que Gorbachev pega a caneta. O colorido some. Ele assina. A história prossegue.

Muitos são os russos que acreditam que o próprio Gorbachev não reside mais no país há muito tempo. Pensam que sua moradia é na Alemanha. O que dá força a este boato não se limita apenas ao fato de praticamente toda a sua família viver em solo germânico. Em Berlim, onde morreu a esposa Raíssa, vítima de leucemia em 1999, se mudaram a neta, Ksenia e a filha Irina, que fixou residência na capital alemã após casar-se com o empresário Andrey Trukhachev. A união aconteceu em 2006. Naquele mesmo ano, Gorbachev tornou-se proprietário de uma vila localizada em Rottach-Egern, cidade que pertence ao estado da Baviera.

Construída em 1908, com três andares e 17 quartos, a residência ocupa uma área de 600 mil metros quadrados. A cinematográfica mansão, localizada em um bairro nobre próximo a Munique, onde vivem bilionários como o ex- residente do Bayern de Munique, Uli Höneß, era o endereço preferido de Gorbachev quando podia viajar. Ao ser posta à venda, em 2017, a imobiliária responsável orçou a casa em 7 milhões de euros.

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Uma delegação de representantes da URSS, do ministério das relações exteriores, trazia flores nas mãos. Era dezembro de 1984. O acontecimento teve lugar no Swains Lane, em Londres. Mais precisamente no cemitério de Highgate. Cumpriam uma cerimônia protocolar. Iriam visitar o túmulo Karl Marx, filósofo cuja obra era reverenciada pelos soviéticos como uma espécie de escritura sagrada.

Eram 30 os representantes daquela comitiva. Dois deles não compareceram ao ato. Talvez notaram a ausência de Gorbachev pelo fato de à época já ser considerado uma espécie de número dois do Kremlin. Porém, quem provocou mais admiração foi Raíssa. Não tanto pela ausência, mas por sua presença em outro lugar. Ao invés de prestar culto àquele sob cuja inspiração assentou as bases ideológicas do regime, ela foi vista em outro templo. O do consumo.

A aproximadamente 11 quilômetros de onde estavam enterrados os restos mortais do ideólogo do marxismo, na Regent Street, número 132, fica uma das mais tradicionais joalherias do Reino Unido, a Mappin and Webb. Fundada em 1775, chegou a obter, no Império Russo, mandato real de nomeação, espécie de selo de garantia que era emitido a fornecedores e comerciantes que prestavam serviços à realeza. Foi lá que Raíssa Maksimova esteve. Comprou um par de brincos de ouro com diamantes e rubis.

Numa sociedade altamente patriarcal como a russa, causava espanto e estupefação que Raíssa estivesse sempre presente ao lado do marido, algo único entre os líderes soviéticos. Era com ela que Gorbachev discutia tudo. O fato de o casal estar sempre junto deu origem a várias piadas bem populares à época. Numa delas Gorbachev entra na sauna e de repente todos os homens, que estavam nus, se escondem, com vergonha. “— O que foi, camaradas? Sou eu, Mikhail Sergeyevich, um homem como qualquer um de vocês!” “— Desculpe, Mikhail Sergeyevich, é que pensamos que, como sempre, o senhor iria estar acompanhado da sua mulher, Raissa Maksimovna!”

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Registro do funeral de Raíssa

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Não é raro ouvir elogios à superioridade intelectual daquela que desempenhou o inédito papel de primeira dama, nas hostes do poder soviético.  O escritor e jornalista Andrey Karaulov verbaliza quase um senso comum entre os russos.  “Ela era mais inteligente do que ele”.  De acordo com suas palavras, foi por esta razão, por apreço a Raissa Maksimovna, que Yuri Andropov, conterrâneo e chefe da KGB que chegou a ser secretário geral do Partido Comunista, escolheu Gorbachev para sucedê-lo.  Embora sua vontade imediata não tenha se realizado e a velha guarda se impôs quando alçou o enfermo Chernenko, que governou por apenas alguns meses.

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Uma limusine já esperava esperava no aeroporto de Santa Bárbara, na Califórnia, quando o Boeing 727 jetliner “The Capitalist Tool”, aeronave cedida pela Forbes, aterrissou na pista.  Era 3 de maio de 1992. Pela primeira vez, os Gorbachev viajavam ao exterior após a bandeira vermelha, com a foice e o martelo, ter sido arriada no Kremlin. Ao pisar em solo americano, foram recebidos pelos anfitriões, os Reagan, cujo patriarca já havia se aposentado de suas funções públicas, após dois mandatos consecutivos como presidente da República.

Reagan, que sonhara em mostrar o seu país de helicóptero ao antigo colega, assistiu ao triunfo de do seu vice-presidente, George Bush, que ascendeu à Casa Branca, nas eleições presidenciais de 1988. No ano anterior, Gorbachev vivia o auge de sua popularidade. Havia sido eleito personalidade do ano pela revista Time. Àquela altura, o Partido Democrata se esforçava para se contrapor ao predomínio republicano. Pesquisa realizada pelo jornal Los Angeles Times mostrou um dado curiosíssimo: Gorbachev, com 40% da preferência dos eleitores democratas, era considerado melhor do que quase todos os pré-candidatos, inclusive, do governador Massachusetts, Michael Dukakis, que acabou sendo oficializado na disputa.  Ficou atrás apenas do pastor Jesse Jackson na preferência.

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Gorbachev e Reagan em 1992

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“Ele se encontrou com todos os presidentes dos Estados Unidos após George Bush, pai”. Quem dá esta informação, sem esconder uma ponta de orgulho, é Pavel Palazhchenko, 71 anos. Ex-tradutor oficial do Kremlin, que continua trabalhando com Gorbachev até hoje.  “Já recebemos as parabenizações de Angela Merkel, Emmanuel Macron, Boris Johnson”, contou. Foi enviado também um telegrama do presidente russo, Vladimir Vladimirovich Putin, a quem Gorbachev, ao longo dos anos, vem apoiando de modo irrestrito, como por exemplo, na questão da anexação da Crimeia, em 2014.

Uma cópia escaneada da mensagem enviada pela presidência foi publicada, com destaque, no site oficial de Gorbachev.  “Caro Mikhail Sergeyevich! Receba minhas felicitações por ocasião deste notável 90º aniversário. O senhor pertence por direito à plêiade das pessoas extraordinárias e brilhantes, dos notáveis ??estadistas de nosso tempo, que tiveram um impacto significativo no curso da história nacional e mundial […]”.

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O primeiro contato oficial com o Brasil, na Era Gorbachev, se deu entre as primeiras damas. Foi no final de março de 1985. O Kremlin tinha um novo chefe havia poucas semanas. A União Soviética vinha de recentes lutos sucessivos. Em pouco mais de três anos, enterrou três chefes de estado: Brezhnev (1982), Andropov (1984) e Chernenko (1985), este último, como Tancredo Neves, estava doente quando assumiu o poder. Eleito no Colégio Eleitoral, que punha fim a uma ditadura militar de 21 anos, o presidente brasileiro, porém, não teve a mesma sorte e morreu antes de assumir. Enquanto era tratado no hospital, sua esposa, Dona Risoleta, recebeu um telefonema de Raíssa no qual ela se desculpava por não ter ligado antes e desejava recuperação.

Assumiu a presidência o vice, José Sarney, sendo o primeiro e único presidente da República do Brasil a visitar a União Soviética, sendo acompanhado, em uma das audiências com Gorbachev, do brasileiro mais popular na Rússia, o escritor Jorge Amado. A inédita visita presidencial aconteceu em 1988. Um ano antes, o instituto DataFolha fez uma pesquisa, para aferir a aprovação e conhecimento que o povo brasileiro tinha sobre a abertura política que estava acontecendo na União Soviética.

Mais de 5 mil pessoas foram entrevistadas em dez capitais brasileiras. Ao todo, 37% da população sabia quem era Mikhail Gorbachev. O índice variava significativamente de acordo com a taxa de escolaridade. Entre as pessoas com até o ensino fundamental, o desconhecimento chegava a 84%. A estatística era inversamente proporcional entre os que detinham formação universitária: 85% o conheciam. Para se ter uma melhor fotografia da época, é importante lembrar que o analfabetismo, em 1986, atingia 20,3% da população, enquanto que apenas 4,3% possuíam curso superior.  Os dados de hoje apresentam alguma mudança. A taxa de analfabetismo é de 6,6% , praticamente três vezes menor do que há três décadas e o número de pessoas com diploma dobrou em percentual saltando para 8,7%.

Um dado curioso da pesquisa. O grau maior de confiança se deu, justamente, na faixa da população que declarava o Partido dos Trabalhadores como sua legenda preferida. Segundo o DataFolha, 39% da população brasileira acreditava nas reformas. Esse dado, porém, atingia o índice de 58% entre os petistas. Um termômetro desse entusiasmo pode ser obtido ao se ler o caderno especial que Folha de São Paulo editou sobre a Glasnost. Em um dos textos foi possível saber a opinião de políticos de espectros ideológicos diversos. A matéria foi assinada por Igor Fuser, jornalista que migrou para a academia.

O sociólogo Florestan Fernandes, que aos 67 anos, estava no primeiro de dois mandatos sucessivos como deputado federal, afirmou que a União Soviética havia atingido “o clímax da ditadura do proletariado”. O entusiasmo do intelectual era partilhado por outras personalidades da esquerda brasileira. “A glasnost reabre uma nova esperança no quadro de crise do socialismo real, em que as pessoas acreditam que não há alternativa”, afirmou Plínio de Arruda Sampaio, que 22 anos depois iria ser candidato à presidência da República, pelo Partido Socialismo e Liberdade, legenda formado a partir de uma dissidência do PT.

Outro presidenciável, este da eleição de 1989, o deputado Guilherme Afif Domingos também foi ouvido. À época no Partido Liberal e representante da direita que vociferava contra o peso e a ineficiência do estado, disse: “Marx deve estar se remexendo no caixão”. O parlamentar tentou ainda traçar um paralelo histórico com o Brasil. “A URSS está revendo Stálin. Temos de ter coragem para rever Getúlio”. Por sorte, Fuser colheu a opinião de outro futuro candidato à presidência, mas que viria a ser vitorioso nos pleitos de 1994 e 1998, o senador por São Paulo, Fernando Henrique Cardoso. Para ele, o que estava acontecendo na URSS “não parece suficiente para renovar as ideias socialistas”.

A cobrança, porém, veio de uma estrela em ascensão no parlamento. Aos 41 anos, José Genoino estava em seu segundo mandato como deputado federal.  Subia à tribuna com um documento em mãos. Um manifesto assinado por políticos e intelectuais de vários países. O texto era endereçado ao Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev. O deputado estava “reivindicando”, “solicitando” e “exigindo” a reabertura, “o reexame de todos os processos de Moscou”. O petista argumentava que “os fatos verificados nos famosos processos de Moscou representaram para a humanidade, e particularmente para os socialistas, para os comunistas, uma questão que não pode ser tratada como vem ocorrendo, através da versão oficial ou do esquecimento”.

O discurso de Genoíno prosseguia no mesmo tom inflamado. “E é necessária a reabertura desses processos no sentido de que a verdade seja colocada perante a humanidade. Os socialistas não podem negar-se ao esclarecimento da verdade, até porque, Sr. Presidente, há uma máxima de um dos fundadores do socialismo que diz que a verdade é revolucionária, e quem é revolucionário não pode temer a verdade”.

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Genoino e Ulysses Guimarães (Estadão Conteúdo)

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Se a reivindicação do deputado petista trazia um pouco de visão crítica à quase unanimidade que Gorbachev desfrutava nos meios políticos brasileiros, uma voz solitária imprimia o ataque. E o torpedo foi disparado, na Câmara de Deputados, pelo representante do Partido Comunista do Brasil, o baiano Haroldo Lima. Sobrevivente da Chacina da Lapa, em 1976, como ficou conhecida a operação do Exército da qual tombaram sem vida Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, Lima esteve entre os 5 sobreviventes que acabaram presos.

O PCdoB, do qual Haroldo Lima chegou a fazer parte do Comitê Executivo, foi o responsável pela ação na guerrilha do Araguaia, do qual participou o seu colega deputado José Genoíno. A legenda criou-se, em 1958, a partir de uma dissidência do Partido Comunista Brasil que havia se alinhado às diretrizes encaminhadas por Moscou após a ascensão ao cargo de Secretário-Geral do PCUS de Nikita Kruschev, responsável por revelar ao mundo os crimes de Stálin.

Não foi à toa que, em seu discurso inflamado, Haroldo Lima fizesse um recuo no tempo: “a capitulação da antiga URSS ao capitalismo se insere em um processo complexo que começa na URSS com a traição de Kruschev, pouco depois da morte de Stalin. Gorbachev eleva esse processo a nível mais alto”. Nem é de admirar, portanto, que a “perestroika” despertasse os sentimentos de repulsa mais apaixonados e viesse a ser considerada como “a política da traição mais desavergonhada ao socialismo e que o Sr. Gorbachev é, na atualidade, o maior renegado e traidor dos comunistas, o serviçal mais rabugento da burguesia internacional”.

Haroldo Lima vociferava contra o livro de Gorbachev, Perestroika – Novas Ideias para o Meu País e o Mundo, lançado naquele ano de 1987.  O deputado, que considerou a obra “uma apostasia completa”, não economizou nos insultos: “traidor dos comunistas”, “o serviçal mais rabugento da burguesia internacional”, “trânsfuga”, “filisteu soviético”, “filisteu russo”, “renegado traidor”, “renegado Gorbachev”, “vendido ao imperialismo”, “traidor covarde e pusilânime”.

Mas os petardos não se restringiram apenas ao campo da esquerda mais ortodoxa. Quem abrisse a edição de 6 de fevereiro de 1988, do Jornal do Brasil, na página 13 do caderno um, iria se deparar com a manchete: “Polícia Federal da Paraíba quer censurar ‘Perestroika’”. O Brasil não era mais uma ditadura, mas ainda não havia aprovado a nova Constituição, que seria homologada no final do ano.

Com apenas três meses no Nordeste, o catarinense Lauro Viana emitiu uma nota na qual denunciava um processo de “doutrinação comunista”, que estaria ocorrendo em seis escolas de João Pessoa. Acusou os “professores radicais” de estarem “doutrinando os alunos com ideias de extrema-esquerda” e exigia a exclusão do currículo escolar de O Capital, de Karl Marx, OSPB, de Frei Betto e, por fim, Perestroika, de Mikhail Gorbachev.

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Partindo de Moscou, o trem chega em Stavropol após um dia e meio de viagem. A cidade, que se localiza no Sul da Rússia, é capital de uma unidade territorial chamada de “krai”, situada na região do Cáucaso do Norte.  Foi lá onde nasceu Gorbachev e para onde regressou, em 1955, com seu diploma de advocacia na bagagem, dando início a uma carreira política de sucesso dentro da máquina burocrática do regime.

Cheguei nos primeiros dias de janeiro de 2021 na capital da província. Aluguei um apartamento, em um conjunto habitacional recém construído e afastado do centro, o que me levou a fazer deslocamentos de táxi com frequência. No primeiro deles, o motorista puxou conversa. Era jovem. Estuda em uma universidade de Moscou, mas devido à pandemia, voltou para casa. As aulas seguem pela internet. Arrumei um jeito de falar em Gorbachev. Tentei, sem sucesso, recordar o nome do vilarejo onde nasceu. Após um tempo, o rapaz lembrou. “Privolnoye”. Tive vontade de acertar com ele uma corrida até lá. O motorista percebeu minha hesitação e como quem sugerisse falou. “É uma hora e pouco até lá”.

Após visitar todos os museus da cidade, não encontrei rastro algum daquele que governou a região e depois dirigiu os destinos do país, tornando-se um dos cidadãos mais famosos daquela província. Encontrei uma fotografia.  Apenas uma. No museu de história e geografia. Mas tão sem ênfase. De uma visita do Secretário-geral à cidade.  Nem parecia a chegada de um conterrâneo famoso mundialmente. Gorbachev, porém, não brilha sozinho no panteão dos filhos ilustres.

A glória do político é dividida com um escritor: Aleksandr Soljenítsin que, como Gorbachev, é também detentor de um prêmio Nobel, e com quem chegou a trocar farpas.  “Soljenítsin disse, por aí, que a glasnost de Gorbachev estragou tudo”. Apesar de dizer que aquilo era um “grande equívoco de uma pessoa que eu respeito muito”, Gorbachev não escondeu a mágoa. “Se não fosse pela glasnost, Soljenítsin continuaria cortando lenha em Vermont”.

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Soljenítsin

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O escritor William Taubman, autor de Gorbachev – A Biografia, ficou admirado que, em pleno 2008, Felix Dzerzhinsky, fundador do serviço secreto soviético, a Cheka, ainda dava nome a uma avenida de Stavropol. Constatei não só que o nome se mantém até hoje, como se trata da área mais nobre e mais importante da capital.

Foi consultando o livro de Taubman que localizei o endereço onde Gorbachev morou com a mulher Raíssa, em uma residência coletiva, tão logo chegou e passou a trabalhar na seção da juventude do Partido. Coloquei no Google maps: “Rua Kazansky”. Número 49. Aproximei o mapa. “Rua Clara Zetkin”. Os dados conferiam. Após verificar que seria preciso andar muito a pé, se fosse de ônibus, resolvi chamar um táxi. O motorista não usava máscara. Várias vezes falava ao celular enquanto dirigia. Fiquei contando os minutos para aplicar-lhe a menor pontuação no Yandex, serviço semelhante ao Uber, que eu usei para chamá-lo.

Até que o carro se afastou do Centro. Se afastou das ruas asfaltadas. Fomos entrando numa região escondida. Como o desnudar de uma matrioska, o automóvel ia descendo como que por círculos, os pneus deslizando com cuidado para contornar a geografia acidentada do barro batido de uma área semelhante a um morro onde casas se acumulavam como que à beira de um abismo. Quis, muitas vezes, que o meu destino chegasse logo. Mas a paisagem ia adiante. Mais e mais. Até que ouço o motorista perguntar, meio em dúvida, se era ali mesmo que eu queria estar, no número 49, eu respondi que sim, lhe disse muito obrigado e apliquei 5 estrelas na cotação como forma de agradecimento por ter me levado a um lugar tão íngreme.

Era um domingo. A névoa do inverno a cobrir a paisagem. Saquei meu telefone como quem cometia um crime. Fotografei a entrada da casa. Não há placa. Não há indicação nenhuma de que um dos homens que mudou a história. A única memória que se preserva é a manutenção de uma pobreza que parece não reconhecer tempo. Que sempre houve. Que sempre haverá. Haja no Kremlin alguém traje roupas vermelhas ou use uma coroa.

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Não tive coragem de ir até a aldeia onde Gorbachev nasceu, mas li a reportagem de Alexey Ovchinnikov. O repórter do jornal Pravda seguiu de carro até lá.  Ao avistar alguns adolescentes, na beira da estrada, e perguntá-los sobre a direção a ser seguida, ouviu: “— A terra natal de Gorbachev? Vá em frente, que lá vai ter um monumento”. O repórter quis saber a quem era dedicado o monumento. E arriscou a pergunta.  “— A Gorbachev?” Ao que lhe responderam: “— Pra quê? A Lenin…”

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Enquanto preparava o material para escrever este texto, assisti às matérias que foram veiculadas nos principais canais de televisão. Uma espécie de fio narrativo foi se impondo, costurando muitas vozes, salvando imagens. A juventude dele ao chegar ao poder. O fato de sorrir e de falar com o povo diretamente, sem estar lendo os discursos. O fim da Guerra no Afeganistão. Os debates migrando da cozinha para os jornais. A lei seca e as formas de contornar a proibição como servir vodka em bules de chá. A tentativa de golpe, em 1991. O retorno e o triunfo do rival Yeltsin. O pronunciamento na televisão em que se lia a renúncia.

Aqui na Rússia, Gorbachev é lembrado não como Secretário-Geral do Partido Comunista, mas como Presidente da União Soviética. Cargo que exerceu apenas durante pouco mais de ano. De março de 1990 a dezembro de 1991. “O primeiro e o único”, como veio a se chamar um documentário, em sua homenagem, exibido no Canal 1, o mais popular daqui, no dia de seus anos.  A desintegração do grande país ainda desperta debates acalorados. E, sim, o culpam. Com muita frequência, a voz de Gorbachev é ouvida. Os jornais sempre estampam sua opinião sobre os mais diversos temas. Em fevereiro, sugeriu o Nobel para os criadores da vacina Sputnik. Depois da eleição americana, afirmou que Biden entende a importância da relação com a Rússia.

Quando o mundo todo relembrou o episódio do acidente nuclear devido ao sucesso da produção da HBO, Chernobyl, Gorbachev conversou com uma rádio em Moscou e disse que não era verdade que ele tenha sido responsável por qualquer represália ao químico Valeri Legasov, personagem em cujo ponto de vista se estruturou a narrativa de toda série.  Era 2019, Gorbachev estava na Alemanha, internado. Não havia assistido à série. “Prometeram fazer uma sessão aqui no hospital, mas ainda não fizeram”, disse.

Uma das poucas, senão a única entrevista que deu por ocasião do aniversário, foi concedida ao jornalista Alexander Gamov, também da equipe do jornal Pravda. Ao ser perguntado o que queria ganhar de presente, respondeu: “amizade e apoio. Nada mais é preciso”.

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O pequeno Gorbachev e seus avós ucranianos nos anos 1930

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Astier Basílio

Astier Basílio é poeta e dramaturgo. Vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia, em 2014, com a peça Maquinista. É mestre em ensino de literatura russa para estrangeiros pelo Instituto Estatal Pushkin e doutorando pelo Instituto de Literatura Maksim Górki, ambos de Moscou, onde atualmente mora.