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Para quem quer liderar o País nas próximas eleições: menos ‘cola’, mais valores

por Vinícius Müller

Há uma gritaria, algo pertinente, em torno à lacuna que vivemos em relação ao aparecimento de novas lideranças públicas. De tempos em tempos esta conversa vem à tona, tomando os debates, com alguns candidatos surgindo aqui e ali para ocupar este hiato. E, quase sempre, ou ao menos nas últimas vezes, ela se encerra com certa frustração – quando não com processos de impeachment.

Tal debate por vezes faz lembrar uma passagem de Dan Ariely, em sua obra magistral Previsivelmente Irracional. Nela, o professor de psicologia relata alguns testes que levou adiante com alunos de diversas universidades norte-americanas. Os testes ocorriam, com os cuidados que a ciência deve tomar, com alunos que, convidados a enfrentarem uma prova de conhecimentos gerais, eram colocados diante de situações que tornavam progressivamente maior a chance de ‘cola’, ao mesmo tempo que se diminuía a probabilidade de ela ser descoberta. Ou seja, os alunos tinham em mãos chances cada vez maiores de acertar as questões da prova apelando à ‘cola’ e chances cada vez menores de serem pegos. E o detalhe é que para cada acerto que obtinham na prova ganhavam um dólar de prêmio.

No caso mais extremo, as provas continham em seus cadernos de perguntas (havia um outro caderno, de respostas, só para que fossem anotadas as alternativas corretas) um “descuido” da parte de quem elaborou as questões, já que as alternativas corretas apareciam em negrito. Quem já elaborou provas com questões de múltipla escolha sabe que, muitas vezes, colocamos a alternativa correta em negrito para depois, antes da impressão, retirarmos o destaque. No caso do teste feito por Ariely e sua equipe, o responsável pela elaboração das questões “esqueceu” propositalmente de tirar o negrito, indicando aos alunos as respostas corretas.

Além disso, os próprios alunos deveriam computar o número de respostas corretas ao término da prova, a partir de um gabarito apresentado a eles no final, e, sem que precisassem entregar ao fiscal da prova nem o caderno de perguntas nem o de respostas, colocavam no bolso os dólares correspondentes aos acertos. Em outras palavras, os alunos tinham as respostas certas em negrito (a ‘cola’) e não precisavam comprovar a ninguém quantas questões haviam acertado, bastava solicitar os dólares.

Os resultados do teste de Ariely foram esclarecedores. Em tais circunstâncias, como era de se esperar, os alunos “acertam” mais. Porém acertam menos quando, nas mesmas circunstâncias, são lembrados de forma direta ou indireta sobre algum código ético do qual, em tese, fazem parte. Por exemplo, quando antes do início da prova o professor responsável por aplicá-la os lembra de que quando ingressaram na faculdade assinaram um código de ética. Detalhe: esse código não existe.

Há várias interpretações possíveis para tais resultados. Uma das mais plausíveis é que as pessoas, mesmo quando “invisíveis”, não estão dispostas a trapacear de maneira mais abrangente se lembradas de que pertencem a alguma comunidade amparada por um código ético. Não importa qual o código. Não importa nem mesmo que ele, de fato, exista. Importa, sim, que alguma referência a algo que pareça estabelecido sobre a noção do que é certo e errado seja lembrado pelo aluno.

Em geral, esses valores éticos são compostos por itens abstratos que, conforme a História avança, ficam cada vez mais distantes de alguma concretude. Por exemplo, o conceito de “igualdade”. Abstrato por definição – afinal no plano concreto ninguém é igual a ninguém – ele serviu à construção de um código que, no momento em que foi engendrado, atendia a alguns desejos e interesses defendidos ou representados por certas lideranças. Ele esteve presente no debate britânico do século XVII, e foi fundamental para o arranjo representado pela adoção do parlamentarismo naquele reino. Mas, foi nos acontecimentos franceses do século XVIII que ganhou amplitude. E, mais importante, tamanha influência decorreu, entre outras coisas, da capacidade que algumas lideranças francesas tiveram de perceber que, mesmo em outro século, em outro país e em um contexto muito diverso do britânico, o conceito e o valor da igualdade poderiam ser defendidos em nome da transformação que queriam que ocorresse.

A questão central ilustrada por este exemplo é que as grandes lideranças identificam os valores mais abstratos e, ao mesmo tempo, os associam ao concreto, às condições de seu tempo e lugar, percebendo que o concreto em si não é um valor, mas apenas o representa. Fazem isso em contextos diferentes e em momentos diferentes.

“Parábola dos cegos conduzindo cegos” [Mt 15, 13-14] de Pieter Bruegel o Velho (1568).

Exemplos não nos faltam. Durante o século XX, duas das maiores lideranças públicas brasileiras foram aquelas que não só entenderam sua época, mas principalmente entenderam como preservar os valores, abstratos e centrais, mesmo que em contextos diferentes. Getúlio Vargas identificou que o que parecia moderno relacionava-se com tudo aquilo que era identificado com os direitos políticos e sociais que então dominavam o debate europeu. O moderno, então, seria um valor que, manifestado por meio do direito (voto feminino e direitos trabalhistas, por exemplo), sustentaria sua liderança. Anos mais tarde, o “moderno” não parecia mais ser a questão do direito, mas sim o “consumo”. O antigo trabalhador, beneficiado pelo direito trabalhista de Vargas, já se transformava em classe média. Por isso, Juscelino Kubitschek apostou sua liderança na ampliação daquilo que caracterizaria a classe média, consumo e velocidade: “cinquenta anos em cinco”, indústria automobilística e construção da capital em forma de avião.

Assim, não há surgimento de lideranças novas sem alta capacidade de abstração, conhecimento da história de seu povo e, mais importante, clareza a respeito dos valores sobre os quais ele se ampara. Além disso, é decisiva a capacidade de reconhecer quem, no seu tempo, sustenta tais valores e também como eles se manifestam concretamente. E isso é o contrário do que em geral assistimos: pretensos líderes que, mesmo sem saber uma só linha de nossa história, acham ou são inflados a achar que sabem quais as respostas aos problemas brasileiros, mesmo que não saibam sequer, nem de longe, quais são esses problemas! Desta forma, as soluções que apresentam não têm aderência aos valores que estão em jogo e muito menos aos grupos que, atualmente, os representam e às atividades que, concretamente, podem representá-los.

O surgimento de uma nova liderança depende, então, de alguém que conheça quais valores estão ameaçados, que aponte como e junto a quem vai defendê-los de tais ameaças e que, por fim, nos lembre, todos os dias, de como esses valores são centrais para nossa sociedade. Talvez assim, analogamente aos alunos de Ariely, ‘colemos’ menos nas próximas provas: as eleições.

Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.