Literatura

Pedro Gonzaga: “Prefiro a verdade inacessível”

Estado da Arte publica com exclusividade a “Apresentação” e as crônicas “Os dois movimentos” e “O trem (uma teoria)”, que compõem o lançamento de Pedro Gonzaga, O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), reunião de seus textos para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre.

Apresentação

Em um de seus mais célebres poemas, Álvaro de Campos vociferava: “se têm a verdade, guardem-na!” Eu não a tenho. Quem sabe gostasse de tê-la. É mais provável que não. Prefiro a verdade inacessível de todo, apenas antevista, especulada, vivenciada ao estarmos no mundo, nas coisas que usamos, mal gestamos e acabamos por perder. Coisas sempre de passagem, ainda que nós mais de passagem do que elas.

O que me leva ao título desta coletânea de crônicas, reunidas a partir de minhas contribuições quinzenais para o jornal Zero Hora, acrescidas de um texto publicado na revista Norte, uma fábula real, que fala de como me converti em poeta.

Um livro das coisas verdadeiras em sua beleza fugidia, coisas engolfadas pelo tempo e depois resgatadas, envoltas pelo limo da memória, cobertas por essa pátina orgânica que as humaniza, que as deforma, que as engalana, que as corrompe.

Espero, acima de tudo, que os textos aqui reunidos tenham a virtude de permanecer interessantes, justificando assim, de algum modo, o tempo que você passa agora a lhes dedicar.

Por fim, as crônicas vêm acrescidas de pós-escritos, concebidos especialmente para esta edição. O objetivo desses comentários é repercutir tanto as reações dos leitores a determinados temas, como também admitir os fracassos que o espaço por vezes exíguo do jornal me impôs.

É uma crença útil que mantenho: tivesse mais espaço e tudo estaria resolvido.

Talvez, a cabo e a fundo, a verdade seja uma questão tão-somente de espaço.

Os dois movimentos

E porque já quisemos beber com Átila — nossos corpos ainda ferventes de sangue e suor —, e porque já experimentamos a paz de uma espreguiçadeira num jardim cultivado, e porque vivemos a euforia de nos perdermos de nós mesmos depois de um mês de viagem, e porque sabemos o que é o amor nos olhos de alguém ao chegarmos em casa, percebemos: há em nós uma divisão antiga, nascida ao raiar da espécie, que faz de nossos corações, a um só tempo, nômades e sedentários.

Se considerarmos esses dois movimentos primitivos e contraditórios, descobriremos o modo como dividem tudo o que sentimos, tudo o que somos, tudo o que em nós se move ou se aquieta, e depois se inquieta e volta a se mover. E me perdoem pelo nós, se o que digo lhes parece uma obviedade. Se o for, prometo que será curta. Agora vejam. Não há apenas uma solidão, mas sim a solidão nômade e a solidão sedentária. O que é m de processo para uma (a vontade de lançar raízes), é o justo início para a outra (as raízes por aqui não vingaram ou precisam ser transmudadas). A dualidade dos sentimentos é a dualidade dos movimentos. Assim também para o amor. O nomadismo do one night stand, contra os laços das criaturas entrelaçadas. Casamento. Separação. Família. Novas famílias.

Se isto não explica o constante desassossego dentro de nós, explica ao menos a insatisfação daquele ser no trono de um apartamento em “Ouro de tolo”, do Raul Seixas, como também o “estar-se preso por vontade” do mais célebre soneto de Camões. Nômades e sedentários são até os confortos das grandes religiões: a unidade sedentária com o Pai e a santa mãe no calvário, o tudo passa de um mundo ilusório feito um rio.

Durante anos comprei os livros que compõem a peque- na biblioteca onde agora escrevo. Livros são quase sempre objetos sedentários. Em nossas mãos ou bagagens, no entanto, passam a ser nômades. Durante anos pensei que minha casa estaria onde meus livros estivessem. Mas hoje sinto que me basta o que as mãos puderem levar.

Não se trata de um aprendizado, nem de evolução. Iluminação, para mim, fica melhor se for indireta.

Talvez seja apenas um momento nômade num corpo que ainda não cansou de ser sedentário.

Escolhi abrir o livro com esta crônica porque acredito que há alguma coisa que deixei apenas esboçada, longe de ser resolvida, que ainda agora mal começo a perceber. Falo das implicações de considerar os sentimentos divididos entre uma cor nômade e outra sedentária. Explicá-los por este conflito. O ciúme, por exemplo. A posse sedentária, mas a necessidade de que nômades a visitem. Gosto de pensar que a diferença entre alegria e felicidade é uma diferença de movimentos da sensação: instante móvel e estável duração. E poderíamos ir além, expandir a ideia para outros conceitos. O classicismo é sedentário, o modernismo é nômade. Isto bem valeria uma teoria. Ou um palpite. Sedentarismo. Nomadismo.

Em um momento, chegamos cedo; noutro, tarde demais à plataforma. Noutra vez, experimentamos a simpatia de um olhar que se perderá ao desembarque. Depois, somos aqueles prontos para tentar quando o outro está fechado, depois fechados quando o outro está aberto às tentativas.

O trem (uma teoria)

 O trem chega. Você caminha pela plataforma. Pessoas caminham pela plataforma. Uma delas chama a sua atenção, mas ela se perderá ao entrar no outro segmento do trem.

Dias, ou semanas, ou meses, ou anos depois, vocês voltam a se cruzar na mesma estação. Desta vez, dividirão o carro e talvez seus olhares se encontrem, mas a viagem dela não terá o mesmo destino que a sua, ela descerá antes que você possa perceber.

Na próxima oportunidade, ela terá sentado mais perto, você vai descobrir seu cheiro, seu modo de sorrir, talvez até escute seu nome, enquanto a pessoa que entrou com ela lhe vota palavras de amor, indiferença ou ódio.

Virá a vez em que ela estará muito próxima, mas será você a criatura absorta em pensamentos gerados por outra criatura, ali presente ou mesmo distante.

À espada da sorte (ou do azar), vocês dois, um dia, sentarão lado a lado. E haverá um reconhecimento, quem sabe um acidente, os dois corpos postos em rota de colisão. E vocês se farão companhia. E a natureza desamparada dos viajantes solitários estará suspensa. E então haverá a leveza das conversas novas. Quem sabe suas pernas discretamente se toquem, e depois as mãos. Para além, estará a cabine em que vocês, isolados do mundo, flutuarão até o fim da viagem.

Nós, esses passageiros.

A vida, uma viagem de inúmeras paradas e baldeações. Em nosso vagão há conhecidos, amigos, as pessoas que amamos, enquanto nós também podemos estar em seus vagões, até que os caminhos se bifurquem. No meio disto, os encontros amorosos, aleatórias intersecções que, racionali- zadas, teriam a feição absurda daquele conto do Cortázar, “Manuscrito encontrado em um bolso”, em que um homem segue transições programadas no metrô de Paris a m de encontrar o amor de sua vida.

Não há transições programadas.

Em um momento, chegamos cedo; noutro, tarde demais à plataforma. Noutra vez, experimentamos a simpatia de um olhar que se perderá ao desembarque. Depois, somos aqueles prontos para tentar quando o outro está fechado, depois fechados quando o outro está aberto às tentativas. Por fim, somos os que se encontram, esses que por um momento descobriram a felicidade, semelhante a um descarrilamento, afortunadamente esquecidos de quão minúsculos são sempre os destinos naqueles mapas afixados nas paredes das estações.

E mais uma vez uma teoria. Ou palpite, não, teoria, pois lembro de testá-la na realidade, tanto a partir de meus desencontros como dos daqueles a quem também a expus. Contudo, por uma questão de fé, desconfiado do empirismo, sempre vou à literatura em busca de contraprovas. Entre inúmeros exemplos, além do já citado conto do Cortázar, me encanta uma cena em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que Brás volta a encontrar Virgília, agora casada com seu rival Lobo Neves, sendo que o mesmo Brás tivera a chance de se casar com ela antes, o que não ocorreu porque não houvera entre eles qualquer tipo de atração. Por que, anos depois, sentiam-se compelidos um ao outro? Assim o explica o defunto-autor: A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era oportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.