Política

Antipolítica como projeto

por Pedro Augusto Pinto

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“Chamem-no de homofóbico, racista, misógino — só não podem chamá-lo de corrupto”. Essa máxima, teoricamente uma credencial para o atual presidente da República, foi repetida à exaustão nas eleições de 2018, e uma rápida pesquisa no Google demonstra que segue circulando com o mesmo fim. Embora, à primeira vista, chame a atenção pelo que traz de escancaradamente questionável, ela também contém outros aspectos reveladores de nossa atualidade, a começar pela forma extremamente simples com que estrutura uma hierarquia de valores e até mesmo um sistema político. O paralelismo entre as duas orações entrega que ambas tratam de qualidades negativas, atribuindo-lhes, porém, importâncias desiguais: a listagem da primeira oração, aliás, poderia ser estendida com qualquer tipo de discriminação ou crime, contanto que a segunda permanecesse intacta. Dito de outro modo, semelhante “imunidade à corrupção” desponta como critério absoluto para a emissão de juízos políticos, e serviria, seguindo-se à risca a lógica do bordão, como salvo-conduto para que a pessoa que o possui seja tudo o mais de ruim que lhe aprouver. Não haveria, assim, por que se perder tempo rebatendo as acusações de misoginia, racismo etc.: se tudo isso são apenas falhas morais, a corrupção também é uma, com o distintivo de ser, de acordo com a escala proposta, a única que de fato importa. Ora, Bolsonaro não é corrupto — logo, assunto encerrado.

Semelhantes entimemas[1] fundados de maneira implícita na indistinção de fenômenos qualitativamente distintos (como o racismo e a corrupção, por exemplo) bem como em sua imediata hierarquização — são  abundantes no discurso bolsonarista, sendo sempre preparados de acordo com a ordem do dia.[2] Mas há também outro aspecto da máxima que citamos que parece ser igualmente significativo, uma sutileza identificável em sua segunda parte (“porque não podem chamá-lo de corrupto”). A forma com que essa oração foi construída tem implicações sobre a própria ideia de ‘corrupção’, e colabora com sua redução a uma esfera exclusivamente moral. Seu pressuposto é de que “não ser corrupto”, longe de ser um fato corriqueiro ou uma exigência mínima para o exercício da política, é por si só uma virtude, capaz de destacar Bolsonaro entre, deduz-se, pessoas que, pelo contrário, podem, sim, ser chamadas de corruptas. Assim sendo, se é possível pensar que tal afirmação teria como fundamento um histórico político supostamente irretocável, sua coloração moralizada também sugere uma leitura independente de qualquer causalidade — com o que Bolsonaro surge como alguém imune à corrupção. O predicado “não ser corrupto” deixa de ser consequência de uma conduta — o que implicaria o risco de sua reversão por mudança ou desmascaramento —, e passa assim a ser um atributo constitutivo, inalienável, inerente ao sujeito a quem se lhe atribui. Em outras palavras, ‘corrupto’ e ‘não corrupto’ tornam-se traços fundamentais de um caráter humano, e não mais decorrências de suas ações. Ora, se Bolsonaro é “aquele que não podem chamar de corrupto”, a causalidade se inverte, e seu histórico político e moral se torna uma função da sua personalidade, pouco importando o que faça, tenha feito ou venha a fazer contanto que a sua pessoa siga desempenhando tal papel na mente de quem o apoia.

Como isso se deu, e ainda se dá, é o que pretendo elucidar de algum modo. Não pretendo, contudo, fazer de uma frase isolada, ou da ambiguidade de alguns de seus termos o fundamento único para uma interpretação geral. Tal método, ao supor o real como reflexo ou criação da linguagem, é chuva que cai sobre justos e injustos, e leva sua água também para o moinho do bolsonarismo.[3] O que pretendo é, antes, analisar a evolução de algumas constantes discursivas que acompanharam, na última década, a gestação e o desenlace de uma crise que implicou não a superação de suas causas estruturais, mas, pelo contrário, justamente o seu reforço.[4] Suas molas mestras, conforme comentei, são a equiparação retórica de fenômenos desiguais e sua imediata hierarquização em uma dada escala moral — opaca, decerto, porém respaldada por certo senso comum; seu resultado se mostrou na mistificação de algumas instituições e personalidades, das quais a maior é obviamente Jair Bolsonaro, tornadas por meios negativos em encarnações absolutas de determinados valores morais. É isso o que explica, ao menos em parte, que a despeito de seu rompimento com o lava-jatismo, sua aliança com o Centrão e sua evidente implicação em malversação de dinheiro público, Bolsonaro não apenas siga firme com seu público cativo como ainda tenha conseguido expandir, de acordo com pesquisas recentes, a parcela da população que o apoia.[5] Sua caracterização essencialmente negativa, isto é, como aquele “contra tudo isso que está aí”, lhe teria permitido catalisar sobre sua pessoa as projeções de uma difusa moralidade, cuidadosamente seduzida por suas ações e, sobretudo, por sua retórica.[6]

Nesse sentido, a pauta da corrupção, destacada na frase que abriu este texto, não surge por acaso. Desde as manifestações de junho de 2013, mas sobretudo com a operação Lava-Jato e com a crise que culminou no impeachment de 2016 — atrizes frequentemente listadas no elenco de nossa tragédia —, a corrupção passou a ocupar um lugar cada vez maior no noticiário e no imaginário político brasileiro, contribuindo com a fermentação de um amplo sentimento antipolítico — alimentado com largueza pelos grandes meios de comunicação, e de resto já presente entre nós desde longa data. Na oposição que o caracteriza, todavia, tal sentimento implicou em sua radicalização uma ideia nada trivial daquilo a que pretendia se opor: se partimos do pressuposto de que todas as esferas da vida humana são políticas (embora não o sejam na mesma medida), uma negação da política in totum só é concebível se a ideia de disputa legítima pelo poder se encontra restrita a uma dada dimensão da vida social — implicando, em contrapartida, que todas as outras estão assentadas sobre bases indisputáveis. Aí principia, portanto, uma estrada ampla rumo ao fascismo ou ao autoritarismo, tendo sido razoavelmente identificada como um dos meios pelos quais aventureiros da laia de Bolsonaro, Witzel, Zema et caterva se catapultaram nas eleições de 2018. Significativamente, tais concepções também podem ser vistas em uma espécie de deslocamento semântico da palavra ‘política’, bem como de seus cognatos ‘politizar’ e ‘politização’, identificável em amplos setores da nossa sociedade: algo ‘político’ é hoje, para muitos, algo ‘parcial’ e ‘interesseiro’, restrito a disputas particulares ou até pessoais de poder, com o que se tornou quase um sinônimo de ‘politiqueiro’ oupoliticagem’. Com conotação pejorativa, tal uso tem sido prodigalizado pelos demagogos de ocasião, sobretudo em meio aos embates ocasionados pela pandemia.

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(Reprodução: Fernando Frazão/ABr)

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Evidentemente, há aí grandes doses de hipocrisia, de ignorância complacente, ou de mera repetição de um lugar-comum. Mas não só: tal sentimento reflete também um descontentamento legítimo, ou ao menos fundamentado, diante dos rumos que a disputa, o debate e a prática política institucional assumiram no decorrer da Nova República. Pode-se ilustrá-lo com um caso das eleições de 2010, isto é, anterior não só à Lava-Jato como até mesmo às Jornadas de Junho: a eleição do comediante Tiririca para a Câmara dos Deputados, amealhando naquele ano a maior votação para o cargo em nível nacional.

Embora se tratasse de uma personalidade conhecida e com bastante visibilidade — caracterizando um assim chamado puxador de votos —, há algo de particularmente significativo em sua eleição quando a olhamos em retrospecto, a partir de 2020: com o mote “vote no Tiririca: pior do que tá, não fica”, o humorista conseguiu canalizar um descontentamento político então incipiente e difuso para uma candidatura puramente pessoal e fisiológica. Em sua campanha, Tiririca parodiou discursos pomposos, confessou pretender ajudar só a sua própria família e admitiu não entender absolutamente nada de seu futuro cargo. Ao mesmo tempo, com sua popularidade, seguia à risca o roteiro da mesma prática que denunciava, tornando-se um ativo precioso para a sua agremiação (o arquifisiológico Partido da República, hoje Partido Liberal) e também para a sua coligação, puxando para o Congresso pessoas de partidos e convicções provavelmente ignorados por seu eleitorado. Tão ignorados, talvez, quanto o seu próprio partido e suas próprias convicções.

Tiririca, portanto, ao mesmo tempo em que denunciava em sua campanha o abismo sistêmico entre a política institucional e amplos setores da sociedade, capitalizava a si mesmo e a seu partido com os assim chamados votos de protesto, diluindo-os na mesmíssima lógica daquilo contra o que supostamente protestavam. Tal expediente, porém, repousava sobre um conteúdo de verdade: sua campanha fazia apenas ecoar um sentimento disseminado de indignação e incompreensão ante os jogos de poder, reificados pelas disputas publicitárias e sobretudo pelo progressivo abandono dos movimentos sociais pelos partidos de esquerda. A retórica antipolítica, de resto um lugar-comum já bastante antigo, comprovava assim ter se tornado uma ferramenta funcional de leitura da realidade, e portanto um meio eficaz de sedução do eleitorado: os outros falam, mas não fazem nada; já este nos faz rir, e pelo menos não nos engana. A denúncia, portanto, ao invés de levar à revolta, acabava esteticamente neutralizada em cinismo, recebido com aplausos pela cortesia da franqueza e com gratidão sincera por algumas boas risadas.

O que interessa observar nesse caso, de resto anedótico em mais de um sentido, é como a simples denúncia da injustiça é capaz de sugerir o seu repúdio sem qualquer necessidade de implicá-lo. Pelo contrário, a denúncia poderia servir justamente para perpetuá-la, na medida em que se antecipa à crítica de pretensões transformadoras e presta contas retóricas, isto é, restritas ao plano da linguagem, aos seus pedidos de satisfação. Em outras palavras, temos aí uma oposição revertida em situação, ao mesmo tempo em que, por sua suposta honestidade, é tida como moralmente superior à situação tradicional, que se valeria dos mesmos embustes mas sem a hombridade de confessá-los. Na medida, porém, em que reverte uma crise política para um desenlace estético e moralista, favorável à ordem em que a crise se engendrou, tal dinâmica se confunde com o fascismo: em um sistema político e econômico alienante, onde, reduzidos a indivíduos, somos socialmente determinados por fatores que escapam ao nosso controle, a necessidade de uma mínima orientação entre os acontecimentos e dinâmicas que nos engolem faz com que todos, sem exceção, sejam levados a formular algum tipo de explicação geral para a contradição gritante entre a vida social e nossa subjetividade, sob o risco de desenvolver formas mais graves de distúrbios oriundos de conflitos com a realidade.[7]

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O Poprishchin de Gogol por Ilya Repin

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Na falta, porém, de explicações fundamentadas, e sobretudo capazes de oferecer alternativas humanizadoras aos conflitos e crises sociopolíticas com que nos deparamos, são os preconceitos tradicionais e bem enraizados — como o nacionalismo, o antissemitismo e o personalismo — que passam a exercer o papel fundamental de explicação para as mazelas que observamos diariamente. E é justamente deles que se vale a retórica fascista para, diante de problemas sociais reais, à semelhança de Tiririca, oferecer soluções que preservem e reforcem as verdadeiras causas que os ocasionaram.

Sem desfazer da permanência de estereótipos antissemitas no Brasil, observa-se todavia como são outros os preconceitos — ligados sobretudo a uma visão moralista do mundo e da sociedade — que vêm servindo de modelo explicativo geral para a mobilização bolsonarista desde 2018, ao que se soma o nosso já tradicional personalismo.[8] Seja na crítica à permissividade sexual,  na falácia da meritocracia, no punitivismo raivoso ou ainda, travestido de indubitável conhecimento tecnocrático, no fiscalismo obcecado com a “ineficiência do Estado” ou com o “desequilíbrio das contas” (sutilmente moralizados com os termos “responsabilidade” e “austeridade”), identifica-se um recurso constante a uma espécie de modelo explicativo moral, capaz de elucidar todas as crises em que nos encontramos (ocultando, evidentemente, seus aspectos sociais e ambientais), e que parece ter encontrado sua maior expressão e mobilização na pauta anticorrupção.[9] Já mostramos, ainda que em um caso específico, como esta pode ser habilmente reduzida a um problema exclusivamente moral, isto é, restrito ao caráter de alguns indivíduos, ocultando assim sua natureza sistêmica e enraizada. O caso de Tiririca, e a expressividade de sua votação mostraram como semelhante redução pode ser produzida através de simples mecanismos discursivos: confessando publicamente a baixeza de seus interesses e seu despreparo para a vida pública, Tiririca demonstrou ser honesto, e se destacou de seus colegas parlamentares na exata medida em que prometia agir  como eles.[10] É com tal referência a uma moral difusa que o cinismo bem-humorado apresenta seus piores riscos, pois a própria inconsistência de tal moralidade, de resto indiscutida e dada como um fato, é um alçapão aberto para os piores preconceitos e obscurantismos enraizados em nossa sociedade.

Isso fica claro ao observarmos as implicações da própria ideia de antipolítica, isto é, da restrição das disputas legítimas pelo poder a uma única esfera da sociedade. Como foi dito, semelhante banimento da política para a disputa partidária tautológica traz consigo o corolário de que todo o resto da vida social (em particular a vida privada e a economia de mercado, mas também o judiciário, a religião, as forças armadas, etc.) estaria assentado sobre bases indiscutíveis, alheias ou imunes às disputas pelo poder. Dito de outro modo, a antipolítica traz necessariamente uma ideia de apolítica, que, sendo humanamente impossível, só é concebível enquanto sedimentação de disputas já assentadas. Como, porém, seu estabelecimento aqui se dá por via negativa, isto é, pela simples oposição à política institucional desacreditada, semelhante esfera apolítica atrai facilmente a projeção dos contrários da política institucional: assim, se esta é interessada, aquela há de se destacar pelo desinteresse altruísta; se ineficiente (leia-se preguiçosa), aquela há de encarnar a proatividade; se é libertina, aquela trará a marca da decência; se é ideológica, por fim, aquela se destaca pelo primado neutro da técnica e do bom-senso. À luz de tais dicotomias, não só a política partidária, mas tudo o  que traz dela a mais remota semelhança passa a figurar não apenas como daninho, mas sobretudo como um intruso, em particular quando ousa se aventurar nos domínios supostamente apolíticos do mercado, família, educação, carreira, religião, justiça, etc. Se estes, aliás, ocupam justamente o polo positivo do binômio, nada mais lógico do que propor um movimento inverso, fazendo com que as instâncias ideais da família, do mercado, da igreja, do exército, do judiciário, etc. se lancem a uma conquista da esfera política, visando aplicar sobre ela os mesmos princípios indiscutivelmente sensatos que garantem o seu bom funcionamento. Não se trata mais deste ou daquele partido, mas do bem do Brasil, da honestidade, do patriotismo, da família, de Deus, coisas genericamente consideradas como boas, mesmo que  ninguém as siga à risca.[11] Tais valores, aliás, são tão indiscutíveis, que se algum político não os aplica, só pode ser por ser por maucaratismo, ou porque forças obscuras lhe impedem a aplicação.

Com isso, a desigualdade moral entre os polos do binômio política/apolítica termina perfazendo uma mal disfarçada usurpação: aquelas esferas e instituições tidas como imunes às disputas de poder — porque resultantes de disputas consolidadas — passam a se arrogar o direito de, por sua ausência de disputas, disputar de maneira inconteste a única área à qual a disputa havia sido concedida. Por seu caráter pretensamente homogêneo, tais esferas se apresentam como superiores àquelas onde o dissenso é legítimo, mascarando assim suas pretensões ao poder. Conquistando-o, não admite divergência, a não ser na forma de imoralidade e de má-fé, de modo que sua supressão se torna um ato necessariamente moral.

Desde 2013, quando as ruas foram tomadas por gritos de “sem partido!”,[12] convertendo-se em protestos interessados apenas na verde-amarela cruzada contra a corrupção, vimos esse ocultamento retórico da política se espraiar progressivamente por discursos e práticas dos mais diversos oportunistas. Ainda em 2016, foi brilhantemente encarnado por João Dória, que se elegeu com o mantra “Não sou político, sou empresário”, repetido, pasmem, não em uma sala de sua suposta empresa, mas sim em debates, palanques e comícios. No hoje congelado “Escola Sem Partido”, prestou-se ao ocultamento das posições partidárias e ideológicas de seus defensores, que se vendiam como “inimigos das ideologias” apenas para insinuar a neutralidade de seus próprios preconceitos. Já em 2018, foi apropriado pela mobilização de caminhoneiros, onde se misturou à defesa de uma intervenção militar em nome da moralidade, e expressou sua força na eleição do capitão Jair Bolsonaro, do juiz Wilson Witzel, do empresário Romeu Zema, do comandante Moisés, e de tantos outros que se valeram da ocultação de seu único qualificativo relevante, o de candidatos, para faturar com um imaginário fundado na oposição a um espantalho — a política partidária.

Não importa que, a partir do momento em que alguém se candidata a um cargo ou o aceita por indicação, automaticamente se manifestam suas pretensões ao poder e, portanto, seu envolvimento político. Tampouco importa que, no pior de todos os casos, isto é, no do presidente, tal mascaramento abranja não só a candidatura ou a aceitação de um cargo, mas sua própria carreira como deputado, cheia de rolos e histórias mal contadas: não importa o que se é, o que importa é ao que se está opondo. Bolsonaro não existe por aquilo que afirma, mas sim por aquilo que a sua imagem nega, e é de tal negação que derivam seus supostos atributos positivos, como a honestidade, a bravura, idoneidade etc. Nesse sentido, a resposta clássica “E o PT?” é mais que um bordão diversionista: é um testemunho eloquente dos mecanismos por detrás de sua sustentação. Enquanto estes permanecerem, ela também permanecerá, bastando que nenhum comprometimento com a realidade lhe atrapalhe o funcionamento. Daí a importância de isentá-lo de toda e qualquer responsabilidade por seu próprio governo, por suas palavras ou pelos seus atos, excetuando aqueles capazes de reforçar sua imagem de alguém contra tudo isso o que está aí — mesmo que o que esteja aí seja, e em larga medida tenha sempre sido, apenas ele mesmo.

Uma obviedade, decerto: mas faz ao menos dois anos que a questão deixou de ser o que está óbvio e o que não está, passando a ser por que o óbvio não está mais óbvio, e como lhe devolver a sua obviedade. Busquei ajudar a responder a primeira; a segunda, mais importante, não será resolvida tão cedo — não antes que ao repúdio pelo falso volte a se juntar o amor pelo verdadeiro.

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(Reprodução)

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Notas:

[1] O entimema é caracterizado em Aristóteles como um silogismo retórico, fundado em verdades de opinião, em índices ou exemplos. Ao contrário do silogismo lógico, suas premissa e sua conclusão são apenas prováveis, e por isso mesmo pode ser manipulado tanto pelo sim como pelo não — como, ademais, as próprias verdades de opinião. ARISTÓTELES, Rhétorique. Trad. Médéric Dufour. 2ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1960, t. 1, p. 14. Na frase que mencionamos, as verdades de opinião que parecem fundamentar o raciocínio são, por um lado, de que a corrupção é o maior de todos os males sociais (o que provavelmente tem a ver com a sua natureza de roubo ou violação da propriedade), bem como de que o racismo, a misoginia e a lgbtfobia são problemas irrisórios, ou mesmo exageros — não por acaso, muitas das manifestações mais vergonhosamente discriminatórias do atual presidente costumam ser feitas como “brincadeiras”, permitindo simultaneamente o desrecalque do ódio (à maneira do chiste freudiano) e a  isenção de responsabilidade, pois “não se quis dizer aquilo que se disse”. Com isso, para além de diminuir a importância de tais questões, o presidente ganha tanto a aprovação de quem se identifica com tal ódio quanto a tranquilidade de quem dele discorda nesse quesito, mas deseja apoiá-lo por outras razões.

[2] É o que se observa em sua posição diante da pandemia: ao rebater o questionamento sobre o inaceitável número de mortes com a afirmação de que “todo mundo morre”, o que vemos é novamente uma equiparação entre mortes de naturezas distintas, como se morrer em uma crise sanitária passível de resposta estatal fosse o mesmo que morrer escorregando no box do chuveiro. Novamente, o denominador comum é moral, mas a hierarquia proposta resulta em uma indiferença valorativa: afinal, “toda morte é uma tragédia”, isto é, qualquer morte é em princípio lastimável, de modo que, se o presidente não pode fazer nada para evitar que escorreguemos no chuveiro, não há por que imaginar que faria algo para que não morrêssemos contaminados. Com isso, novamente, temos um raciocínio extremamente simples e aparentemente sensato, e que tem como principal implicação a isenção do presidente de qualquer responsabilidade pela crise sanitária — não obstante o fato óbvio de que todo chefe de governo é responsável pela administração das crises que eclodem sob sua gestão. A julgar pelo resultado da pesquisa do Instituto DataFolha sobre a responsabilização de Bolsonaro pelas mais de 100 mil mortes, tal estratégia foi até agora bem-sucedida.

[3] Basta lembrar como a palavra ‘socialismo’, contida por razões retóricas no termo ‘nacional-socialismo’, é usada como prova de que o nazismo é um fenômeno de esquerda — com o que um irrisório índice linguístico se torna a base de um revisionismo tão radical quanto tacanho. Aqui, vemos claramente como o bolsonarismo se vale da nivelação acidental de fenômenos desiguais (nesse caso, uma palavra e o conjunto documental e científico a respeito do nazismo) para reduzir discussões a escaramuças retóricas, dissolvendo a realidade em um problema de linguagem e, o que é pior, afastando a atenção do que realmente importa: sua natureza neo- ou criptofascista, cujo êxito é atestado justamente pela facilidade com que conseguiu se dissociar do fascismo histórico, de acordo com observações de Robert Paxton. A anatomia do fascismo. Trad. Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 333-334. Um mecanismo similar de associação acidental, embora não linguística, foi também frequentemente utilizado como argumento retórico contra a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), na medida em que seu texto teria sido parcialmente inspirado na Carta del Lavoro da Itália fascista — ocultando intencionalmente o fato de que a inspiração estava sobretudo no controle estatal dos sindicatos, e não na garantia de direitos, de resto um fruto, em sua maioria, das lutas operárias das décadas de 1920 e 1930, de onde a ideia de uma consolidação.

[4] Tal movimento, aliás, é análogo ao do nazifascismo histórico, quando conservadores alemães e italianos viram na aliança com partidos de extrema-direita uma maneira de isolar e conter as esquerdas em um contexto de crise e de temor do avanço comunista. Cf. PAXTON, R. Opus cit. No nosso caso, a falta de um avanço comunista real foi generosamente compensada com a retórica a seu respeito.

[5] Evidentemente, aqui colaboram muitos outros fatores, em particular o alcance do auxílio emergencial e o inegável enraizamento de sua base de extrema-direita. Mesmo nesses dois setores, porém, a retórica moralista não deixa de ter certo papel, na medida em que reveste a violência bolsonarista com roupagens razoáveis e até justas, tornando-a  palatável para quem não tolera engoli-la crua, e fornecendo razões e pretextos para quem a aprova de qualquer maneira. A violência se torna assim não apenas aceitável, mas também justa e necessária. Em termos psicológicos, este último caso é descrito por Adorno como uma cooptação do supereu pelos impulsos destrutivos do isso, fazendo com que a força da autoridade e da ordem introjetada passe a ser uma aliada dos sentimentos de hostilidade pura. The Authoritarian Personality. [S.l.]: Norton, 1969, p. 630. Outro fator aventado pela imprensa para o aumento na popularidade de Bolsonaro foi o seu silêncio desde a prisão de Fabrício Queiroz, o que condiz diretamente com a nossa hipótese de uma sugestão por via negativa: o imaginário constituído a seu respeito, isto é, o de alguém que é honesto por ser “contra tudo isso que está aí”, é tão mais sugerido quanto menos Bolsonaro tem de se posicionar sobre situações ou problemas que ele mesmo não pauta. Não por acaso, uma de suas grandes estratégias nas eleições de 2018 foi um silêncio análogo — sua ausência sistemática nos debates.

[6] Também aqui há muitos outros fatores, como a penetração em grupos religiosos ou nas redes sociais, sobre os quais não poderei me debruçar. De todo modo, se entendermos a retórica como o estudo das formas de persuasão, é possível falar em uma retórica característica também desses espaços e meios, e que deve ser igualmente compreendida para a elaboração de respostas políticas e discursivas ao bolsonarismo.

[7] ADORNO, T. Opus cit., pp. 607-608. A literatura russa nos fornece dois exemplos notáveis de personagens cuja incapacidade de processar a disparidade entre suas pretensões subjetivas e a realidade social termina por levá-las à loucura. Trata-se de Póprischin, do Diário de um louco de Gógol, e de Goliádkin, do Duplo de Dostoiévski. O primeiro, frustrado em seu amor por uma personagem de status social incompatível com o seu (a filha de seu chefe), termina se autoproclamando rei da Espanha, enquanto o segundo se vê diante de uma completa cisão de sua personalidade em um arrivista descarado, incontido em sua busca por ascensão social, e em um cordato funcionário ciente de sua condição.

[8] Para uma ideia da função exercida pelo antissemitismo em uma visão de mundo protofascista — bem como a decorrente possibilidade de sua substituição por outros preconceitos mais ou menos análogos —, ver ADORNO, T. Opus cit., pp. 607-608. Para Paxton, a ideia de função perpassa também a simbologia nacional ou religiosa mobilizada pelo fascismo, variando não só entre a sua manifestação histórica e seu ressurgimento, como também entre as diversas agremiações do fascismo histórico. Cf. PAXTON, R. Opus cit.

[9] Adorno já mencionava como o ódio às figuras do político e do burocrata também se prestava à mesma função do antissemitismo. Opus cit., pp. 618-619.

[10] Muitos anos depois, vimos uma comédia análoga ser encenada pelos então ministros da Casa Civil e da Justiça, respectivamente, Onyx Lorenzoni e Sérgio Moro. Indagado sobre o envolvimento do primeiro com esquemas de caixa dois, o segundo afirmou que ele já teria “admitido e pedido desculpas”, com o que se observa que, reduzida à categoria de pecado, a corrupção deixa de ser um problema jurídico para se tornar uma questão de consciência, de gravidade variável de acordo com os interesses do momento. No caso em questão, a leveza da transgressão era assegurada pelas palavras de alguém que passou a encarnar, em si mesmo, a ideia de moralidade pública, confundindo-a com seu próprio arbítrio.

[11]  O caráter genérico, absoluto e inexequível de tais valores também explica por que são imunes às acusações de hipocrisia: permitem grandes doses de autocomplacência, contanto que não sejam sacrificados. Se acaso alguém passa da conta (pensemos no caso recente da pastora Flordelis), sacrifica-se a pessoa, mantendo-se intactos os valores que ela defendia.

[12] “É verdade que o NSDAP [Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei], de Hitler, denominou-se um partido desde o início, mas seus membros, que sabiam não tratar-se de um partido como o demais, chamavam-no de “o movimento” (die Bewegung). A maioria dos fascistas chamava suas organizações de movimentos, campos, bandos, rassemblements, ou fasci: irmandades que não atiçavam grupos de interesses uns contra os outros, afirmando unir e revigorar a nação”. PAXTON, R. Opus cit., p. 121. “O movimento” (The movement) é também o nome dado por Steve Bannon à sua confederação internacional de extrema-direita. É igualmente notável que o partido que Bolsonaro pretendia fundar recusasse o nome de partido, transmitindo a ideia de um movimento puramente altruísta pelo bem da nação (“Aliança pelo Brasil”).

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Bibliografia

ADORNO, T. et al. The Authoritarian Personality. [S.l.]: Norton, 1969.

___________, “O ensaio como forma” in Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, 2003.

ARISTÓTELES. Rhétorique. Trad. Médéric Dufour. 2ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1960, t. 1.

KIERKEGAARD, S. Either/Or. Trad. Edna H. Hong e Howard V. Hong. Princeton: Princeton University Press, 1987, v. 1.

_________________. O conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates. 3ª ed. Trad. Álvaro Valls. Bragança Paulista: São Francisco, 2006.

_________________. Ou – ou: um fragmento de vida. Trad. Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2013, v. 1.

KOSELLECK, R. Crítica e crise. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999.

______________. Futuro passado. Trad. Wilma P. Maas e Carlos A. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.

PAXTON, R. A anatomia do fascismo. Trad. Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

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Pedro Augusto Pinto

Pedro Augusto Pinto é tradutor e mestre em Cultura e Literatura Russa, com estágio de pesquisa no Instituto de Literatura Mundial Górki da Academia Russa de Ciências, pela FFLCH - USP. É bacharel em História pela mesma instituição, com intercâmbio acadêmico na Universidade Estatal de Moscou e na St. Mary's University College. É também autor da coletânea de poemas "Um bicho de circo" (7 Letras, 2018).