Poesia

Poesia em Casa – Especial Polônia: Czes?aw Mi?osz e Wis?awa Szymborska

Wis?awa Szymborska, Nobel de Literatura polonesa.

por Pedro Gonzaga

Neste especial sobre a Polônia, juntando-me a outros colunistas do Estado da Arte, preparei uma homenagem a esta nação tantas vezes dilacerada ao longo de sua história, em particular no século XX, por meio de uma breve seleção de seus maiores poetas. É espantoso que um país de fora do eixo central das línguas ocidentais tenha conseguido ganhar dois nobeis (Milosz e Szymborska), além de ter pelo menos mais um candidato forte e vivo, Adam Zagajewski. Boa parte dos poetas escolhidos já apareceu aqui no Poesia em Casa, mas nunca é demasiado a eles retornar. Nesta e na próxima semana, apresentarei algumas traduções, feitas do inglês e do espanhol, para maior conhecimento do público brasileiro. Ainda que seja um trabalho de versão deveras distante dos originais, creio que uma parte da maravilha desses líricos sobrevive a tudo, como o próprio país em que nasceram. Não custa também destacar o importante trabalho que a Companhia das Letras vem realizando com dois volumes traduzidos da poeta Wislawa Szymborska, na tradução acurada de Regina Przybycien, com enorme sucesso entre os leitores.

Hoje centrarei minhas escolhas nos dois maiores da poesia polaca, os laureados  Szymborska e Milosz.

Escolhi quatro poemas que, para mim, representam em essência o que é a grande lírica e o fiz tendo em mente este luminoso trecho da apresentação de uma coletânea de poesia mundial feita pelo Milosz:

“Uma vez que a poesia lida com o particular, não com o geral, ela não pode — se for boa poesia — olhar para as coisas desta terra senão de maneira colorida, variegada, excitante, e, assim, ela não pode reduzir a vida em todas as suas dores, horrores, sofrimentos e êxtases, a uma tonalidade única de tédio ou resmungo. Desse modo, e por necessidade, a poesia está do lado do ser e contra seu aniquilamento.” 

Adolescente (Wislawa Szymborska)

Eu — uma adolescente?

Se ela de repente parasse aqui, agora, diante de mim,

teria de tratá-la com proximidade e afeto,

ainda que me fosse estranha e distante?

Chorarmos juntas, beijar-lhe a testa

só porque dividimos

a mesma data de nascimento?

Tantas dissimilitudes entre nós

apenas os ossos guardam alguma semelhança,

a caixa craniana, as órbitas oculares.

Por seus olhos parecem um pouco maiores,

seus cílios são mais compridos, e ela é mais alta,

e seu corpo inteiro está firmemente talhado

em uma pele tesa, imaculada.

Parentes e amigos ainda nos unem, é verdade,

mas em seu mundo estão quase todos vivos,

enquanto no meu quase não há sobreviventes

de círculo que partilhamos.

Diferimos profundamente,

pensamos e falamos sobre coisas em tudo distintas.

Ela não sabe quase nada —

mas tem uma tenacidade que merece melhores causas.

Eu sei bem mais —

mas não estou certa de nada.

Ela me mostra poemas,

escritos numa letra limpa e caprichada

que há anos já não uso.

eu leio os poemas, leio todos

bem, talvez aquele

se fosse menor

com alguns retoques em certas partes.

O resto não vale grande coisa.

A conversa não se firma.

Em seu patético relógio

o tempo é ainda instável e barato.

No meu é tão mais precioso e preciso.

Nada na partida, um sorriso fixo

e nenhuma emoção.

Apenas quando desaparece,

esquecendo o cachecol em sua pressa.

Um cachecol de lã pura,

com listras coloridas

para ela tricotado

por nossa mãe.

Eu ainda o tenho.

Uma descrição honesta de mim mesmo com um copo de whisky num aeroporto, digamos, em minneapolis  (Czeslaw Milosz)

Meus ouvidos captam cada vez menos as conversas, meus olhos vêm se tornando fracos, embora sigam insaciáveis.

Vejo suas pernas em minissaias, em calças compridas, em tecidos ondulantes,

Observo uma a uma, separadamente, suas bundas e coxas, acalentado pelo imaginário da pornografia.

Velho depravado, é chegada a hora da cova, não dos jogos e folguedos da juventude.

Mas eu faço o que sempre fiz: componho cenas dessa terra sob as ordens da imaginação erótica.

Não é que eu deseje estas criaturas em particular, desejo tudo, e elas são como um signo de uma união extática.

Não é minha culpa se somos feitos assim, metade contemplação desinteressada, metade apetite.

Se um dia eu puder subir aos Céus, lá haverá de ser como aqui, exceto por estar eu desfeito de meus sentidos embotados e do peso de meus ossos.

Transformado em puro olhar, absorverei, como antes, as proporções dos corpos humanos, as cores das irises, uma rua parisiense na alvorada de junho, e toda a inconcebível, a inconcebível multiplicidade das coisas visíveis.

Um amor verdadeiro (Wislawa Szymborska) 

Um amor verdadeiro. É normal,

é sério, é prático?
O que ganha o mundo com a união de duas pessoas
que passam a existir num mundo só delas?

Postas num mesmo pedestal sem qualquer razão,
retiradas ao acaso de entre milhões, mas convencidas
de que assim tinha de ser – uma recompensa pelo quê? Por nada.
A luz que se projeta de lugar nenhum.
Por que sobre esses dois e não sobre outros?
Isto não afronta a justiça? Claro que sim.
Isto não conturba nossos princípios dolorosamente erigidos,
e lança a moral de um desfiladeiro? Sim para as duas questões.

Olhem para o casal feliz.
Será que eles não podiam ao menos tentar esconder,
fingir uma leve depressão em benefícios de seus amigos!
Escutem como eles riem – é um insulto.
A linguagem que usam – de uma clareza decepcionante.
Todas as suas pequenas celebrações, rituais,
as rotinas mutualmente elaboradas –
trata-se com certeza de um complô contra a raça humana!

É mesmo difícil saber onde as coisas podem parar
se as pessoas começarem a seguir seu exemplo.
Com o que poderão contar a religião e a poesia?
O que será lembrado? O que teremos de renunciar?
Quem suportará viver dentro dos limites?

Um amor verdadeiro. É realmente necessário?
O tato e o bom senso nos dizem para passar por ele em silêncio,
como por um escândalo nos altos círculos da Vida.
Crianças totalmente perfeitas nasceram sem sua ajuda.
Ele não poderia povoar o planeta nem em um milhão de anos,
sua aparição é rara demais.

Deixem que as pessoas que nunca encontraram o amor verdadeiro
sigam dizendo que tal coisa não existe.

Esta fé há de lhes fazer mais fácil viver e morrer.

A queda (Czeslaw Milosz)

A morte de um homem é como a queda de uma poderosa nação
Que teve valentes exércitos, capitães e profetas,
E ricos portos e barcos em todos os mares,
Mas agora não socorrerá nenhuma cidade sitiada,
Não entrará em nenhuma aliança,
Porque suas cidades estão vazias, sua população dispersa,
Sua terra que certa vez proveu de colheitas está saturada de cardos,
Sua missão olvidada, sua língua perdida,
O dialeto de um povo posto sobre inacessíveis montanhas.

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.