Poesia

Poesia em casa – O poeta vertical

Roberto Juarroz em sua casa. Foto Daniel Mordzinski.

Por Pedro Gonzaga

Isto também acontecerá na prosa, mas de maneira mais rara. Sempre que dois leitores de poesia se encontram, depois de passarem por alguns poemas dos grandes nomes, começam a dividir as descobertas de versos que talvez poucos tenham lido, de nomes que deveriam ser conhecidos, mas que jamais terão a visibilidade mercadológica alcançada pelos prosadores. Por vezes, um poeta de primeira linha esteve aqui no país ao lado, e poucos aqui dele ouviram falar. Lembro da minha surpresa quando Paulo José Miranda, um dos importantes nomes da literatura portuguesa contemporânea, e que então vivia no Brasil, ocasião em que tive a sorte de conhecê-lo, falou-me de um excelente poeta argentino de quem eu não tinha a mais vaga referência, o que me pareceu ainda mais surpreendente dado meu gosto e interesse pela literatura platina: Roberto Juarroz. Recomendou-me então seus volumes chamados Poesía Vertical (depois eu descobriria que assim Juarroz havia entitulado toda a sua obra, numerando os livros e os poemas, sem títulos específicos).

À primeira leitura me foi possível perceber (e espero seja para vocês) a densidade temática, mas em especial a densidade expressiva de seus poemas, esta tensão viva entre o dizer e a forma do dizer. Seria legítimo contrapor que tal tensão é, em geral, base de toda e qualquer poesia, mas em alguns casos, como em  Juarroz, nota-se a exploração dos limites da inteligibilidade da experiência e da potência de articulá-la, o que levou o poeta a ser muitas vezes considerado metafísico e metapoético ao mesmo tempo.

Bibliotecário e professor por longa parte de sua vida, gosto de pensar, depois de ter lido muitos de seus versos e traduzido alguns, que as características notáveis de sua obra têm relação com uma certa melancolia portenha, com o convívio com a doce tirania dos livros e com frequentar assiduamente essa fronteira entre a compreensão e o fracasso que só existe nas salas de aula.

Seguem três poemas vertidos lá se vão alguns anos. Espero que sirvam de reencontro para os que conhecem a obra e de apresentação para os que como eu, antes, não sabiam quem era o vizinho da porta ao lado.

 

Encontrei o lugar justo onde se põem as mãos

Encontrei o lugar justo onde se põem as mãos,
a um só tempo maior e menor do que elas mesmas.

Encontrei o lugar
onde as mãos são tudo o que são
e também algo mais.

Mas lá não encontrei
algo que estava certo de encontrar:
outras mãos esperando pelas minhas.

Assim como não podemos

Assim como não podemos
sustentar por muito tempo um olhar,
também não podemos sustentar por muito tempo a alegria,
a espiral do amor,
a gratuidade do pensamento,
a terra em suspensão do cântico.

Não podemos nem sequer sustentar por muito tempo
as proporções do silêncio
quando algo o visita.
E menos ainda
quando nada o visita.

O homem não pode sustentar por muito tempo o homem,
nem tampouco o que não é o homem.

E ainda assim pode
suportar o peso inexorável
do que não existe.

Um amor para além do amor

Um amor para além do amor,
por cima do rito do vínculo,
para além do jogo sinistro
da solidão e da companhia.
Um amor que não necessite de regresso,
e nem tampouco de partida.
Um amor não submetido
às labaredas do ir e vir,
do estar acordados ou adormecidos,
do chamar ou do calar.
Um amor para estar juntos
ou para não estar
mas também para todas as posições
intermediárias.
Um amor como abrir os olhos.
E talvez também como fechá-los.

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.