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A política das emoções e as emoções da política

por Christine Lopes

É uma faca que vejo diante de mim,

Ou és apenas

Uma faca da mente, uma falsa criação

Do cérebro oprimido pelo calor?

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Shakespeare, Macbeth

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Lady Macbeth por George Cattermole, 1850

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Em 55–56 AEC[1] o filósofo, dramaturgo e senador romano Lucius Annaeus Seneca, mais conhecido como Sêneca, escreve um ensaio ético-político intitulado Da Clemência.[2] O destinatário é Nero Caesar Cláudio Drusus Germanicus, mais conhecido como Nero e recém-empossado como quinto imperador romano aos 16 anos.

Utilizando-se do estilo retórico panegírico,[3] em que virtudes ou ações virtuosas são atribuídas ao destinatário ou audiência, não como fato ou opinião, mas antes com o objetivo de encorajá-las, Sêneca escreve ao jovem Nero:

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Isto sim…é clemência verdadeira — ser sem mácula, nunca ter derramado o sangue de um concidadão — o tipo de clemência que você mostra…Em uma posição de supremo poder, o verdadeiro autocontrole e o desejo de conectar a humanidade a si mesmo se mostram assim: dando e garantindo segurança aos concidadãos ao perceber que muitos homens, enraivecidos em seu nome, estão prontos a agradá-lo derramando o sangue de outros homens; não pagando para ver o quanto pode escapar impune ao perseguir concidadãos, ao ser movido por paixões ardentes ou loucura intempestiva…[4]

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Aos 60 anos, Sêneca havia sido tutor pessoal de Nero desde que este tinha 12 anos. Agripina, a poderosíssima mãe de Nero, o trouxera de volta do exílio político. Sêneca conhecia bem os meandros políticos dentro da dinastia imperial que estava há quase cem anos no poder. Com a ascensão de Nero como imperador, Sêneca é designado seu principal conselheiro político. Em 65 EC Nero o condena à morte por suicídio forçado em meio a uma onda crescente de conspiração.

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‘La muerte de Séneca’, Manuel Domínguez Sánchez, 1871

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Há muito o que aprender com Nero e Sêneca. Mas na relação histórica entre esses dois nomes, nada cala mais fundo do que o enredo político e emocional. Esse enredo continua presente nas fantasias sobre o poder e sobre o que é governar bem ou mal.[5]

Nero passou para a história oficial como o imperador que tocou lira enquanto Roma ardia em chamas. Quase dois mil anos mais tarde, governantes em diferentes partes do mundo são chamados de Nero e de mito.[6] Nenhum deles tem um filósofo ou dramaturgo como Sêneca para chamar de seu.

O que a maioria das pessoas não sabe é que o Nero que elas têm em mente não existiu como elas imaginam. O Nero que elas veem em seus governantes não passa de mito, de “Nero”. De modo que os seus governantes não são como Nero, e Sêneca não foi conselheiro de “Nero”.

Vale a pena descobrir, como num jogo dos sete erros, as diferenças entre o governante Nero e o mito “Nero”, e, assim, as diferenças entre Nero e governantes atuais. Ganha-se e perde-se nesse jogo: ganha-se a real dimensão desses governantes, e perde-se o direito de admirá-los.

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‘The Fire of Rome’, Hubert Robert, 1785

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Damnatio memoriae ou condenação da memória

O mito “Nero” é produto de uma prática comum no mundo antigo chamada damnatio memoriae ou condenação da memória. A imagem de Nero em moedas, pinturas de mural e estátuas foi sistematicamente apagada logo após a sua morte por suicídio forçado em 68 EC.[7] Ato contínuo, surge Otávia, uma tragédia de autor anônimo e de baixa qualidade dramatúrgica.

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A maioria dos elementos da narrativa anti-Neroniana básica…a imagem intransigente de Nero como tirano sanguinário e instigador de crimes horrendos, por exemplo, aparece pela primeira vez na peça trágica Otávia, escrita por um autor anônimo quase imediatamente após a morte de Nero. Otávia dá o tom, e a maioria da geração seguinte de escritores romanos que tomaram Nero como tema parece estar familiarizada com sua perspectiva e sentimento, apenas expandindo o enredo básico da peça em um gênero diferente.[8]

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No rastro de Otávia, dois senadores “historiadores” e um “biógrafo” foram os primeiros a fantasiar eventos e acontecimentos da era Neroniana, criando assim “Nero”, o mito que chegou até nós. Foram eles: Tácito (Publius Cornelius Tacitus), Suetônio (Gaius Suetonius Tranquillus) e Dio (Cassius Dio).

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O jogo dos sete erros

Nero é sistematicamente apresentado como um imperador fora de controle, escandaloso, e que teria cometido erros crassos na administração do império. O tratamento distorcido e deliberado da memória de Nero pode ser dividido, eu sugiro, em sete aspectos principais que o transformaram em “Nero”. Vamos ao nosso jogo.

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1. Diplomacia

Nero tendia à diplomacia em suas batalhas imperialistas. Em 60-61 EC, a rainha celta Boudica lidera milhares de homens contra a presença romana em terras britânicas. A revolta, motivada por desmandos dos oficiais romanos locais, é brutalmente esmagada. Nero substitui o general romano local por um general celta romanizado e familiarizado com a economia e cultura celtas, para quem passa a negociação com a população. A substituição, bem-sucedida, leva Tácito a condenar Nero.

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Tácito…claramente apresenta [essa] substituição…como a expulsão injusta de um senador-comandante bem-sucedido para dar lugar a homens socialmente inferiores, o que indica de saída uma narrativa distorcida…[9]

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2. Conspirações

Era comum que imperadores condenassem conspiradores ao exílio ou à morte. Em 59 EC, Nero condena à morte por conspiração a pessoa mais poderosa de seu governo: a sua mãe Agripina.[10] O poder político de Agripina era patente. Sucessivas emissões de moeda da época mostram os perfis de Agripina e de Nero lado a lado, como iguais. Conforme os rumores de conspirações se espalham, o perfil de Agripina nas moedas começa a se apagar, até desaparecer por completo.

Sabe-se ainda que tanto mãe quanto filho eram precariamente tolerados pela elite de homens romanos, cujo desprezo por mulheres é bem documentado. Naturalmente, odiavam quem as deixasse exercitar poder político.

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Assim como…atacam Agripina por assumir inadequadamente um papel masculino e se transformar em uma dux femina perigosa ou líder feminina — tolerável talvez entre os “bárbaros”, mas chocante e ultrajante para uma mulher romana — eles caracterizam Nero…como submisso, infantil e afeminado…[11]

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3. Mulheres

Nero se relacionou com mulheres tão fortes quanto sua mãe, às quais permitiu, até certo ponto, o exercício de poder em público e dentro do palácio imperial. Uma dessas mulheres foi o seu primeiro e grande amor, Claudia Acte, uma mulher liberta, ou seja, uma ex-escrava. As narrativas da posteridade são cheias de preconceito e segundas intenções políticas.

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Após a ascensão de Nero como imperador, várias mulheres o interessaram. Isso foi, no entanto, retratado de uma forma esmagadoramente negativa em relatos literários posteriores, que refletem apenas a intenção política dos seus próprios autores… Muitas das afirmações apresentadas são tão exageradas e contraditórias quanto duvidosas.[12]

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Nero passa para a posteridade como um homem ao mesmo tempo submisso e brutal com as mulheres. E, no entanto, não resta dúvida de que durante o seu governo as mulheres alcançaram pela primeira vez real influência social e política dentro do império romano.[13]

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4. Popularidade

Em uma noite tórrida de julho de 64 EC, Nero passava o verão na costa romana quando recebe a notícia de que Roma ardia em chamas. Seguindo o enredo de Otávia, Tácito, Suetônio e Dio contam, em diferentes versões, que Nero preferiu tocar lira enquanto a cidade era consumida pelo fogo.

Os cristãos foram eventualmente responsabilizados pelo incêndio. Sabe-se que pregavam publicamente a chegada do apocalipse com fogo e destruição, e que desejavam que isso acontecesse o quanto antes para antecipar o retorno de Jesus.[14] Nero ordenou que fossem queimados vivos, seguindo assim a tradição romana de fazer justiça usando o mesmo meio pelo qual a injustiça havia sido feita.

Tácito insinua que Nero só retornou a Roma e tomou medidas para aliviar o sofrimento do povo como disfarce, para distrair a atenção sobre quem teria sido o verdadeiro responsável pela catástrofe: o próprio Nero.[15] No entanto, o próprio Tácito admite que

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como um alívio para os sem-teto e a população fugitiva, ele abriu o Campus Martius, os edifícios de Agripa, até mesmo os jardins da sua própria casa, e construiu vários abrigos improvisados para acomodar as multidões indefesas. Os suprimentos necessários para a vida diária foram trazidos de Ostia e das cidades vizinhas, e o preço dos grãos foi reduzido para três sestércios [a moeda da época].[16]

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Sabe-se que a população de Roma, de diferentes províncias do império, e mesmo em terras rivais, prestavam homenagens a Nero com regularidade. Sua morte foi seguida por caos e banho-de-sangue durante um ano e meio.[17]

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5. Religião

A história de Roma é também a história da luta de vários povos contra a exploração romana. Havia décadas os judeus lutavam por liberdade em Jerusalém. Já em Roma levavam uma vida reservada, e sua religião não era problema para a população local. Isso muda radicalmente com o surgimento dos cristãos.

Pouca gente sabe que talvez tenham sido os cristãos os responsáveis pelo incêndio de Roma. Não teria sido difícil para o povo da cidade culpá-los e apoiar Nero na punição que deu a eles. Sabe-se que desrespeitavam as crenças religiosas dos outros, a começar pela religião hebraica, e importunavam as pessoas tentando convertê-las.

O povo romano aceitava qualquer deus e culto, contanto que todos os deuses convivessem em paz pela prosperidade do império. Sua percepção desses cristãos era de uma gente ruim da cabeça, de mente rudimentar e doentia que odiava a raça humana (odium generis humani).

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Representavam uma ameaça à pax deorum (“paz dos deuses”), o equilíbrio divino que os romanos procuravam manter por meio da devoção religiosa e de sacrifícios pelo bem-estar do estado.[18]

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6. Arte

Moedas cunhadas durante o governo de Nero mostram o deus grego Apolo—ou o próprio Nero, não é possível assegurar—tocando lira.[19] Apolo é o deus da música e da poesia, entre outras atividades que exigem maestria, equilíbrio, e sanidade de corpo e mente. Nero tinha uma enorme paixão pelas artes, além de habilidade em corridas de carruagem.

Após o incêndio de Roma, Nero reconstruiu a cidade em grande estilo arquitetônico. Seguindo de perto o enredo de Otávia, Tácito e Dio preferem justificar a renovação arquitetônica de Roma como sendo a razão pela qual Nero teria—na versão deles—mandado incendiar Roma.

Suetônio e Dio descrevem um Nero que não distinguia arte de realidade e se dedicava mais às artes e jogos competitivos do que aos assuntos do império. O que se sabe é que Nero quebra a tradição populista romana em que governantes fingiam gostar de atividades culturais para agradar o povo.

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Era prática política comum dos imperadores estarem presentes em eventos artísticos e de competição, e fazerem declarações em público que eram cheias de uma teatralidade forçada, de gestos e retórica fake, cuja intenção era meramente populista. Nero, ao contrário, se vestia para seus personagens, tocava e cantava, e competia com outros atores em apresentações públicas.[20]

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Com seus vinte e pouco anos, Nero escolhe entrar em diálogo com o imaginário popular romano ao atuar em palcos públicos como o personagem matricida Orestes, e como o incestuoso rei Édipo. Especulações apaixonadas se seguiram posteridade afora. Será que mãe e filho tiveram uma relação incestuosa? Será que Nero a matou com as próprias mãos?

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7. Ficção

Otávia apresenta Nero como incendiário e emocionalmente desequilibrado: “Muito em breve, as casas dos cidadãos serão vítimas do incêndio que eu irei desencadear! O fogo, a ruína total, pesará sobre essa ralé odiosa, as mais extremas privações, uma fome amarga com choro e tristeza!”. Suetônio vai mais longe e diz que Nero, ao ouvir alguém declamando um poema que dizia “Quando eu morrer, que a Terra seja consumida por chamas”, corrigiu: “Não, enquanto eu estiver vivo!”.[21]

O uso de narrativas ficcionais para fabricar fatos não é uma invenção dos romanos. Mas a sociedade romana sem dúvida popularizou essa prática política para a posteridade. O impacto dessa prática na criação do mito “Nero” é inegável.

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Otávia claramente acusa Nero de assassinato e apresenta um motivo altamente teatral: com seu último suspiro, a agonizante Agripina incita seu assassino a golpear o seu útero, dizendo “Este é o lugar, este é o local que deve ser perfurado pela tua espada, o lugar que deu à luz aquele filho monstro!” Cassius Dio simplesmente copia esse dispositivo cênico. Em sua versão, ao ver Aniceto, o prefeito de Nero, e seus homens, Agripina “pulando de sua cama, […] rasgou sua roupa, expondo seu abdômen, e gritou:” Golpeie aqui, Aniceto, golpeie aqui, pois isto deu à luz Nero.” Tácito adota uma forma ligeiramente mais curta: “Então, quando o centurião desembainhou a espada para dar o golpe mortal, empurrando o seu ventre para a frente, ela gritou: “Golpeie a barriga!”. Parece que nem mesmo a peça que inspira esses relatos “históricos” é particularmente inovadora: a passagem em Otávia…ecoa de perto uma das primeiras tragédias de Sêneca. No Édipo de Sêneca, a mãe de Édipo, a heroína trágica Jocasta (que se tornara a esposa de Édipo e mãe de seus filhos sem saber a sua verdadeira identidade), suicida-se com as palavras: “Acerte aqui, minha mão, aqui, o útero fértil que me gerou filhos e marido!”.[22]

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Emoção, política e filosofia

A relação política entre Nero e Sêneca estava escrita nas estrelas.[23] Ambos conheceram de perto o poder igualmente criativo e destrutivo das emoções. Os conselhos de Sêneca ao recém-empossado jovem imperador em Da Clemência deixam clara a sua filosofia: emoções são juízos inadequados sobre o bem e o mal, sobre o que tem valor nessa vida. Portanto, emoções são péssimos juízes das ações.

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O tirano está preso em um círculo vicioso: visto que é odiado porque é temido, ele quer ser temido porque é odiado. Ele recorre então àquele verso detestável, que arruinou a muitos — ‘Deixe-os odiar, desde que temam’ — embora ele não tenha consciência da fúria voraz que surge quando o ódio se torna demasiado.[24]

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Como bom filosofo estoico, Sêneca aconselha autocontrole e reflexão antes de reagir ao que se julga ser bom ou mau. O medo, por exemplo, é muitas vezes a razão de se julgar uma coisa ou situação boa ou má, e “visto que a causa do medo é a ignorância, não vale mais a pena conhecer a sua causa para remover o medo?”[25]

Diferentes escolas de pensamento estoico argumentam que as nossas emoções não estão só no coração batendo rápido, na ruminação, na preocupação excessiva, no andar para lá e para cá, na sensação de estar perdendo a cabeça. Emoções são a própria razão humana acossada, aflita para fazer alguma coisa frente ao que julga ser bom ou mau: “Por isso as pessoas vagam atordoadas em situações de desastre, e quanto mais o pânico e a religião se misturam e atacam as mentes das pessoas, mais se vê gente profetizando.”[26]

Se você quer uma vida menos angustiada, vai precisar praticar técnicas para se libertar dessa aflição emocional.[27] Em seu famoso Cartas Morais a Lucilius, Sêneca faz recomendações morais ao leitor através de Lucilius, o suposto destinatário de suas cartas.

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Abandone de uma vez por todas os bens traiçoeiros, que só têm valor enquanto você não os tem…Se houvesse algo de sólido neles, eventualmente nos sentiríamos saciados…Livre-se dessa bagagem, ela só serve às aparências.[28]

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Mas a filosofia estoica de Sêneca não recomenda pobreza material, isolamento social, ou passividade política. Afinal, vivemos bem ou mal, e morremos bem ou mal, dependendo de quem colocamos no poder. Também não há quem não goste de sair, participar de atividades culturais, debater ideias e opiniões.

Nada mais esperado de um filósofo estoico, senador e dramaturgo que se dedicasse às emoções humanas de corpo e alma. Em sua peça satírica intitulada O Endeusado Cláudio Vira Abóbora, Sêneca se vinga do padrasto de Nero, o falecido imperador Cláudio, que o exilara por oito amargos anos na ilha de Córsega em 41 EC.

As tragédias de Sêneca reelaboram temas da antiga tragédia grega, como por exemplo em Fedra, e muitas têm o mesmo título de famosas tragédias gregas, como por exemplo Medéia, Agamenão e Édipo. Mas a obra teatral de Sêneca passa para a posteridade pelas suas inovações literárias e dramatúrgicas. Entre elas, a linguagem e comportamento violentos e cruéis entre os personagens. Sêneca cria assim um conflito moral para o espectador: se desesperar com a maldade ao mesmo tempo em que a assiste.

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Em uma famosa linha da tragédia Troades, o mensageiro que traz notícias do assassinato de Astyanax relata a cena de sua morte—que ele já havia comparado a um teatro: “A maior parte da multidão inconstante abomina o crime, e o assiste” (II28-29). Aqui, na tensão entre o voyeurismo sádico e o horror frente ao drama que se desenrola, podemos reconhecer a posição incômoda do espectador frente ao desespero nas peças de Sêneca.[29]

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Considerações finais: vivendo com a maldade

Usa-se muito o nome de Nero para descrever governantes emocionalmente descontrolados e cujo prazer é perseguir desafetos políticos enquanto condenam o próprio povo aos azares da economia e à morte. O nosso jogo dos sete erros indica que essa prática faz justiça ao mito “Nero”, mas não a Nero.

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A imagem tradicional acerca do império sob Nero, e de Nero como administrador imperial, deixa a impressão de uma deterioração moral que teria contaminado todo o sistema imperial…Esta imagem não se sustenta com um exame minucioso.”[30]

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Governantes em várias partes do mundo estão sendo eleitos com narrativas que negam a humanidade do próprio povo. O seu grande feito é contar estórias sem qualquer moral, encorajar emoções baratas, e conseguir salvar a própria pele no último ato de dramas ruins. Chamar esses governantes de Nero e de mito é ignorar a vida como ela é.

Filosofia e arte sabem revelar, entre outras coisas, o esconderijo da maldade humana. Ela se esconde no impulso de fantasiar mal, de dar à gente em posição de poder, feita de carne e osso, poderes extraordinários que a dor e as leis humanas não sabem enfrentar. Nero tinha Sêneca. Nós vivemos com a maldade.

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‘Nero’s Torches’, Henryk Siemiradzki, 1876

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Notas:

[1] AEC e EC abreviam aqui as expressões “antes da era comum [ou cristã]” e “era comum [ou cristã]”.

[2] Cf. SÊNECA, Da Clemência [De Clementia], Lucius Annaeus Seneca: Anger, Mercy, Revenge, The Complete Works of Lucius Annaeus Seneca, Robert A. Kaster and Martha C. Nussbaum (eds.), Chicago/London: University of Chicago Press, 2010. Sobre o significado de “clemência” em Sêneca, cf. Vogt, Katja, “Seneca”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/archives/spr2020/entries/seneca/.

[3] O recurso retórico do panegírico foi usado por Sêneca com a intenção de criar o que ele compara a um “espelho moral” discursivo aonde bons governantes devem almejar ver suas ações espelhadas, e teve imensa influência no pensamento político da Idade Média e do Renascimento, notoriamente na obra de Niccolò Machiavelli. Cf. Kaster and Nussbaum, op. cit., p. 134.

[4] SÊNECA, op. cit., On Mercy, p. 157 [Livro I, seção 11, subseção 2, i.e., I.11.2].

[5] Platão já advertia que governantes e influencers políticos que fazem o que bem entendem só mandam nas aparências e assim enganam as pessoas duplamente: ao se dizerem poderosos, e ao fingirem que sabem o que é bom ou mau para os outros. (Cf. PLATÃO, ‘Gorgias’, Plato: The Collected Dialogues, Edith Hamilton and Huntington Cairns (eds.), Princeton: New Jersey: Princeton University Press, 1961, 466e–469d). Em seu ensaio intitulado ‘Crueldade na Vida Pública’, o filósofo norte-americano Thomas Nagel adverte que “Crimes públicos são cometidos por indivíduos que desempenham papéis em instituições políticas, militares e econômicas. E, no entanto, a menos que o ofensor tenha a originalidade de um Hitler, Stalin, ou Amin, os seus crimes parecem não lhe pertencer… [Indivíduos desse tipo] estão estranhamente protegidos do que fazem: tanto aos próprios olhos, quanto para quem os observa”. (Cf. NAGEL, Thomas ´Ruthlessness in Public Life’ in Mortal Questions, Cambridge/New York: Cambridge University Press, 1979, p. 75). Em seu livro ‘Diante da Dor dos Outros’, a fotógrafa e escritora norte-americana Susan Sontag adverte sobre o sentido político de imagens de dor e sofrimento: “Alguém que se sente constantemente surpreso pela existência de corrupção e perversidade, que se sente continuamente desiludido (e mesmo incrédulo) quando confrontado pela evidência da dor que os seres humanos são capazes infligir uns aos outros na forma de atos horríveis e cruéis, ainda não atingiu maioridade moral ou psicológica. Ninguém, depois de uma certa idade, tem o direito a esse tipo de inocência, de superficialidade, a esse grau de ignorância ou amnésia. Existe hoje um vasto repositório de imagens que torna muito mais difícil esse tipo de defeito moral.” (Cf. SONTAG, Susan, Regarding the Pain of Others, New York: Farrar, Straus and Giroux, 2003, p. 114).

[6] Buscas simples na internet relacionando nomes e as palavras Nero e mito mostram que essa dupla atribuição a governantes vem acontecendo no Brasil, na Belarússia, na Hungria, na Índia, na Rússia, e no caso do ex-presidente norte-americano.

[7] Cf. OPPER, Thorsten, Nero: the man behind the myth. London: The British Museum Press, 2021, pp. 269–275. Este é também o catálogo completo que acompanha a excelente exposição de mesmo título aberta no The British Museum em Londres de 27 de maio a 24 de outubro de 2021.

[8] OPPER, op. cit., p. 20.

[9] Ibid., pp. 111–112.

[10] Ibid., pp. 180–181.

[11] Ibid., pp. 180

[12] Ibid., p. 176.

[13] BARRETT, Anthony A., ‘Nero’s Women’, The Cambridge Companion to the Age of Nero, Shadi Bartsch, Kirk Freudenburg, and Cedric Littlewood (eds.), Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

[14] POLLINI, John, ‘Burning Rome, Burning Christians’, The Cambridge Companion to the Age of Nero, S. Bartsch, K. Freudenburg, and C. Littlewood (eds.), Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

[15] Cf. OPPER, op. cit., pp. 205–209, and POLLINI, John, ‘Burning Rome, Burning Christians’, The Cambridge Companion to the Age of Nero, Shadi Bartsch, Kirk Freudenburg, and Cedric Littlewood (eds.), Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

[16] OPPER, op. cit, p. 206.

[17] Ibid., pp. 256–275.

[18] POLLINI, op. cit., p. 226.

[19] LEIGH, Matthew, ‘Nero the Performer’, The Cambridge Companion to the Age of Nero, Shadi Bartsch, Kirk Freudenburg, and Cedric Littlewood (eds), Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 22.

[20] Ibid.

[21] OPPER, op. cit pp. 210-211.

[22] Ibid., p. 182.

[23] Cf. Miriam Griffin, Seneca: A Philosopher in Politics, Oxford University Press, 1992, e ‘Philosophy, Politics, and Politicians’ in Philosophia Togata I, M. Griffins and J. Barnes, 1–37, Oxford: Clarendon Press, 1989. Vale a pena conferir as obras seminais de Philippa Foot, Alasdair MacIntyre, e Martha Nussbaum, bem como de seus estudiosos, para discussões mais recentes sobre ética e política no contexto do pensamento estoico.

[24] SENECA, op. cit., Da Clemência, p. 158 [I.12.4]

[25] SENECA, op. cit., Questões Naturais [Naturales quaestiones], p. 91 [Livro 6, seção 3.1, subseção 4, i.e., 6 (3.1) 4].

[26] Ibid., p. 110 [6 (29.1) 3].

[27] Sobre ideias estoicas de virtude e terapia associadas ao controle ou erradicação de emoções, cf. Richard Sorabji, Emotion and Peace of Mind: From Stoic Agitation to Christian Temptation. Oxford: Oxford University Press, 2006.

[28] SENECA, op. Cit., Letters on Ethics [Epistulae morales ad Lucilium], Letter 15, pp.61–62.

[29] SENECA, op. Cit., The Complete Tragedies, volume I, p. xxv.

[30] NOREÑA, Carlos F. ‘Nero’s Imperial Administration’ in The Cambridge Companion to the Age of Nero, Shadi Bartsch, Kirk Freudenburg, and Cedric Littlewood (eds.), Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 48.

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Christine Lopes

Christine Lopes é PhD em Filosofia por Birkbeck, University of London. Ela obteve seu Mestrado e Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil). Tem lecionado em universidades na Inglaterra e no Brasil. Seus interesses são históricos e analíticos, e dizem respeito a tópicos em epistemologia, ética, metafísica, filosofias kantianas, mulheres na filosofia, teorias de gênero e filosofia judaica. Vive como filósofa independente na Inglaterra e é pesquisadora afiliada do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP, Brasil) e é uma das coordenadoras do grupo de pesquisa em pensamento judaico da Academia Judaica da Congregação Israelita de São Paulo (CIP). Ela é a fundadora do projeto Later German Philosophy (https://latergermanphilosophy.com).