Política

Politicostes: A Festa do Espírito de Porco

por Tiago Pavinatto

Mais política neste Estado da Arte? Sim! Política é arte e arte, por sua vez, pode ser muitíssima coisa.

Foi só digitar a palavra “arte” no Michaelis do nosso computador de mão que também telefona e uma enxurrada de significados se arrolou na tela… e a Política consegue ser arte dentro de inúmeras daquelas denotações, até mesmo no seu sentido coloquial, a traquinagem (lembram-se de quando um ex-prefeito de São Paulo fez uma pegadinha falseando sua agenda com o conteúdo da agenda do governador?), muito embora ande em baixa a Política neste sentido em virtude (melhor seria vício) da facilidade da perpetração de crimes, que são mais lucrativos… e há quem diga que o crime é uma arte, sentença da qual é difícil discordar tamanhas e tantas as peripécias (ou pirotecnias conforme a linguagem ignara de um iliterado ex-presidente) diuturnas reveladas diariamente.

E o circo? É arte? É sim, senhor!

Tem palhaço? Tem sim, senhor!

Tem truque? Tem sim, senhor!

A pedido de Juscelino, Niemeyer concebeu e Cardozo armou o maior picadeiro e pôs de pé a maior lona do mundo. Mas, com todo respeito aos genuínos e não Genuínos artistas circenses, bem como à plateia, neste circo, os artistas são mais perigosos que o globo da morte ou qualquer acrobacia sem rede, ficando, ainda, a audiência na jaula do leão, que fareja e avança na região das coxas. Circo estranho com palhaços em todo lugar. Nenhuma novidade até aqui.

Fujam já de seus lugares, pois o circo da política tem um número novo; e tem participação maciça do respeitável público.

O número é uma apropriação das escrituras, na narrativa do início do capítulo 2 do Livro dos Atos dos Apóstolos, quando, no quinquagésimo (pent?kost? em grego) dia depois da ressurreição de Vosso Senhor Jesus Cristo, surgiram, para os apóstolos, línguas de fogo que pousaram sobre cada um deles. Eles ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, menos Judas Iscariotes, que já havia dado cabo de sua vida no pent?kost? dia anterior.

Pois bem! Nos Estados Unidos da América na virada do século XIX para o XX, fiéis das igrejas pentecostais começaram a entrar em contato direto com o Espírito anteriormente qualificado e a falar em línguas. Mas essa experiência religiosa de origem sagrada foi grosseiramente convertida em número circense nas igrejas neopentecostais. Quem de nós nunca ouviu, ao pular de um canal pra outro ou mudando de estação no rádio, um “Oh, Hamanaiah!” ou um “Hanna macantarava suya!”?

Mais indecifráveis que as letras do Djavan, pastores salpicam em suas orações a fala em línguas que nem o próprio Deus, estivesse Ele ouvindo (ou estivesse Ele), entenderia.

Fiéis em serviço pentecostal

Que reste claro: não temos nada contra quem acredita, amamos as pessoas que acreditam, temos até gente que acredita e frequenta nossa casa, mas não nos venham fazer apologia e falar que isso é sério.

Glossolalia: este seria o nome da nova atração que, incorporada ao circo da Política e para espanto dos observadores menos ferozes, deixa de ser mero truque de políticos e tônica entre catequistas, seculares ou não, e volta, como em primícias, a ser transe oriundo de truques de discurso de má-fé, imbecilidade ou idiotia; esse inconciliável desentendimento ocorre porque, vale lembrar o pensamento de Eric Hoffer, “pessoas até mesmo decentes, comuns, que fazem o trabalho do país nas cidades e nas terras, são trabalhadas e moldadas pelas minorias dos dois extremos” (Fanatismo e movimentos de massa).

Na glossolalia, ninguém se entende e, não causaria estranheza, nem entende a si próprio.

Por mais que o interlocutor tenha falado com alguma propriedade sobre algum assunto relevante em Política, à direita, reativamente dizem “olha o mimimi!” ao que, à esquerda, automaticamente respondem “golpistas!”.

O transe não cessa.

Ficam apenas atirando uns contra os outros as conotações de “coxinha” e “mortadela”.

Todavia, os debatedores falam o mesmo idioma. Falam o que querem e entendem, quando ouvem e quando entendem, aquilo que quiserem entender.

Eis a glossolalítica: posto que glossolalia, além de significar fenômeno religioso, também é termo correto na seara médica para designar um distúrbio de linguagem que acomete alguns doentes mentais, a glossolalítica é uma nova espécie por se tratar de transe politicostal no qual as pessoas xucras (em sentido figurado), políticos ou eleitores, mesmo falando o mesmo idioma, entretanto tocados pelas artimanhas do Espírito Nada Santo de Porco, são incapazes de compreender umas às outras, principalmente, mas não exclusivamente, quando estão em lados ideológicos opostos.

Perto deles, a cadela Baleia se faria entender com maior facilidade.

A glossolalítica, que seria capaz de refundar os complexos argumentos linguísticos do filósofo Herbert L. A. Hart nos prados e campinas nada verdejantes do Direito, atinge em cheio a máxima rodrigueana de que “a platéia só é respeitosa quando não está a entender nada”, posto que é justamente quando nada entende ou não quer entender que ela enviesa o diálogo irremediavelmente.

Dia desses, um famoso historiador brasileiro sentiu na pele a fúria da glossolalítica logo após publicar uma foto sua na companhia do Sumo Magistrado. Acusado de antônimos, frente às reações bestiais de muitos dos seus seguidores virtuais, disse que, assustado, nunca viu tamanho ódio em rede. Uma pena ele não ter se atentado à advertência de Manuel Castells sobre a ferocidade do povo brasileiro conectado, cuja simpatia, disse o respeitado sociólogo espanhol, “é um mito”.

O fenômeno, no entanto, não é exclusivo nosso. A glossolalítica é cada vez mais gritante, literalmente, ao redor do globo.

Pode até ser também que ela sempre tenha existido, mas, além da horda de iletrados e alienados de antes, era quase impossível ouvir a voz dos xucros. Hoje, as ferramentas virtuais que permitem o diagnóstico da glossolalítica são muitas, posto que as redes sociais, conforme a sábia percepção do Saudoso Umberto Eco, deram voz a uma legião de imbecis.

É Politicostes.

Tiago Pavinatto

Tiago Pavinatto é advogado. Graduado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP do Largo São Francisco. Coordenador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (PUC-SP). Autor de “A Condição do Fanático Religioso”.