Sociedade

Por que a fraternidade ainda importa?

por Rodrigo de Lemos

Uma classe média superior desenraizada, soberbamente opaca ao restante do país; mais diplomados do que a média em universidades de elite, seus membros se agrupam entre iguais em comunidades fechadas. Ali, eles desenvolvem um estilo de vida próprio, incompreensível aos compatriotas – feito de comida integral, férias em países longínquos e cafés latte. Esse é o quadro que o cientista político conservador Charles Murray pinta dos Estados Unidos de hoje em Coming Apart, the State of White America, 1960-2010 (2012), livro que prenuncia a rebelião das massas a que estamos assistindo. Murray trata esse panorama como uma grande novidade. Para um brasileiro, o diagnóstico pode soar familiar, e a possibilidade de um outro estado de coisas não deixa de o intrigar: “Mas não é natural que seja assim?”; para uma nação cuja mitologia repousa sobre o mais nivelador dos igualitarismos democráticos, como os EUA, a divisão em classes sociais, econômicas, culturais e educacionais incomunicáveis surge como um traumatismo.

Murray poderia declarar logo que o perigo que se anuncia nos Estados Unidos é o de um afrouxamento dos laços de fraternidade. Ele dificilmente formularia o problema nesses termos. A fraternidade sofre de bad press à direita; fala-se em fraternidade, e logo se imaginam bandeiras vermelhas desfraldadas, ao fundo o Hino da Segunda Internacional. O conservantismo religioso a tem frequentemente por corruptela secular da irmandade cristã; para o puro liberalismo de mercado, trata-se de uma excrescência revolucionária, prescindível ao nivelamento social promovido mais ou menos de soi por mecanismos econômicos. Essa desconfiança não é sem motivos. A direita republicana ainda pode se reclamar da igualdade e da liberdade. Já a fraternidade se afigura a ela como um campo propício aos autoritarismos de esquerda: não haveria, com efeito, algo de temerário em um grupo político tomar para si a missão de, através do Estado, instaurar um modo de relação entre os homens, em especial um tão orgânico quanto aquele de irmão?

Na tríade republicana, a fraternidade destoa da igualdade e da liberdade. Estas duas últimas dizem respeito, em primeiro lugar, a uma certa condição jurídica: há uma igualdade perante a lei, uma liberdade protegida em lei pela limitação dos poderes públicos. Não há tal coisa como uma condição jurídica de fraternidade; esta última se relaciona antes a uma ontologia (“somos todos irmãos”) e, daí, a uma obrigação moral (a de ajuda mútua, de solidariedade). Se a igualdade é igualdade perante a lei (ou, no limite, na repartição das riquezas), a fraternidade seria uma igualdade por assim dizer constitutiva: aquilo de que todos seriam partícipes enquanto membros da humanidade. Não haveria uma distância invencível nos males, nas alegrias, nas aspirações entre os homens. Malgrado todas as diferenças evidentes de talento, de educação, de riqueza e de posição, nada de essencial me separa do meu vizinho naquilo que constitui a substância de que nossos sonhos são feitos. A fraternidade é tanto um ideal a atingir quanto uma crença sobre a natureza do homem, para além de suas modulações de superfície.

“José recebe seus irmãos” e “José perdoa seus irmãos”, Bacchiacca, 1515

Ainda na tríade republicana, é da fraternidade que não somente emanam a igualdade e a liberdade, mas nela que ambas se harmonizam. Se a obra de Sade tem algum valor demonstrativo, esse reside em exemplificar como igualdade e liberdade estão longe de se pressuporem mutuamente. Ninguém é mais livre do que o aristocrata intocável; não há o que o restrinja de dispor do inferior na ânsia de apaziguar seus apetites, e a contradição entre ambos os princípios deixados por si não escaparia mais tarde a um antidemocrata empedernido como Nietzsche. É somente porque há um laço de fraternidade, porque o homem democrático sente que a vida interior de um desconhecido vale o mesmo que a sua, que ele aceita a igualdade entre si mesmo e o outro, assim como a abdicação de um tanto de sua liberdade. Não é diverso o sentido do artigo 4o. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com sua fórmula falsamente trivial de que “a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”.

O exemplo de uma sociedade em que a fraternidade é desconhecida enquanto princípio talvez seja das advocacias mais eloquentes de sua importância para além de qualquer monopólio ideológico. Tocqueville, ao tratar dos costumes brandos que vigoram nas democracias, em A Democracia na América, contrasta-os aos das sociedades aristocráticas, por esclarecidas que essas sejam. Madame de Sévigné, a maior escritora epistolar do reino de Luís XIV, mulher brilhante e espirituosa capaz de expressar as maiores delicadezas do sentimento, as devoções mais puras a amigos e a parentes, reportava sem esgares torturas e execuções atrozes quando essas incidiam sobre seus inferiores. Relatando em uma carta a repressão monárquica a uma revolta burguesa na Bretanha em 1675, a mulher que manifestava com graça e sentimento o apego à filha no início de um parágrafo descreve impiedosamente, algumas linhas em seguida, a miséria dos banidos pelo poder real que “erravam aos prantos na saída da cidade sem saber aonde ir, sem ter comida, nem onde se deitar”, assim como os esquartejamentos e os enforcamentos em massa que o Antigo Regime reservava aos rebeldes. Tocqueville não deixa de observar que os escritores da época não agiam assim por “ódio habitual ou desprezo sistemático pelo povo”, mas porque “como não faziam uma ideia clara dos sofrimentos do pobre, interessavam-se debilmente por seu destino”.

Nada garante que essa sensibilidade democrática aos “sofrimentos do pobre” esteja votada a perdurar, e é perturbador imaginar no que uma democracia pode se converter sem ela. Um tal rompimento pode assumir diversas formas para além da divisão entre as latte neighborhoods e os bairros de brancos lumpemproletarizados descrita (e temida) por Murray. Em democracias flageladas pela violência como as latino-americanas, partidários dos direitos humanos por décadas consideraram os criminosos não como seres fundamentalmente iguais aos não-criminosos, sujeitos como eles a direitos e deveres, mas como vítimas inermes a serem justificadas e protegidas. A reação da extrema-direita, de celebração a linchamentos e a execuções policiais, certamente não contribuirá a devolver os infratores à simples categoria de humanos. O mesmo se passa nas velhas democracias sob o impacto da imigração massiva; há alguns dias, circulou o vídeo de um imigrante africano que se suicidava em um canal de Veneza sob os impropérios de residentes e de turistas. Por quanto tempo um ordenamento jurídico poderá sobreviver, uma vez enfraquecidos os sentimentos morais que deveriam lhe servir de esteio?

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.