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Por que você não deve ter permissão para uma corridinha em torno da praça mesmo que isso não faça qualquer diferença?

Por que você não deve ter permissão para fazer uma corridinha em torno da praça ou da lagoa mesmo que isso não faça qualquer diferença?
Uma resposta de Ética Prática.

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por Isabella Passos

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Nem o argumento nem o título deste artigo são originais. Eles seguem uma ideia defendida pelo prof. Alberto Giubilini no prestigiado blog de Ética Prática da Universidade de Oxford. Contudo, sua defesa veste como uma luva as mãos daqueles que como eu ficam tentados em aproveitar os espaços da cidade que hoje se encontram praticamente vazios por força da regra de isolamento social. Que vontade de ir fazer uns 15k pela cidade. Afinal, que problema há em uma senhora caminhado sozinha em torno da Praça da Liberdade como foi noticiada em um jornal televisivo? Que problema há se as medidas de um metro de distanciamento, de uso de máscara e de higienização das mãos estiverem religiosamente sendo cumpridas?

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Dr Alberto Giubilini (Acervo Oxford Martin School)

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A resposta é mais simples do que se imagina: porque há uma pandemia e porque há um consenso de que o isolamento social é a medida mais eficaz para a mitigação dos problemas (números x tempo) originados de uma possível contaminação em massa. Em vista de duas condições impossíveis de serem questionadas: a não existência de anticorpos contra o vírus e a limitação dos bens de saúde disponíveis. Equação, portanto, de fácil entendimento que poderia dar por encerrado este artigo. Mas por que ele não será? Porque cenários de pandemias ou quaisquer outros com vislumbres de crises generalizadas se constituem oportunidades urgentes de alinhamentos sobre vontades e condutas não somente coletivas mas, sobretudo, condutas individuais já que são essas a determinar aquelas.

Mas antes é preciso pontuar que você não está errado por querer aproveitar os espaços da cidade. Em termos simples, não. Isso realmente não faz muita diferença no quadro geral da pandemia e você realmente não estaria prejudicando ninguém. A princípio. Mas a pergunta mais importante a se fazer não se esgota na resposta produzida sobre a intenção e o direito privado. Há outros aspectos eticamente relevantes em torno do distanciamento social.  E podemos aqui levantar uma questão para demonstrar quão antiético se tornou a fugidinha mesmo que você não burle, a princípio, quaisquer das orientações protetivas contra o corona vírus. E esta questão é feita sobre o teste da universalização. Ensaio imaginativo sem qualquer sofisticação e largamente aceito pelo senso comum.

Esse teste consiste em perguntar: e se todos fizessem o mesmo? Se todos fossem aproveitar a praça, a lagoa, o sol para alongar os corpos retraídos pelas horas ou dias enfurnados dentro de casa?  E naturalmente a pergunta é por “todos” já que na terra de meu deus ninguém é mais especial que o outro, não tendo, portanto, o direito de violar uma regra de abrangência de “todos”. Concorda?

Então por que seria moralmente errada a corridinha quando todos estão orientados a ficar em casa? Primeiro, porque a noção de regra seria inutilizada se todos pensassem em infringi-la. Imagina? Por definição uma regra é algo que as pessoas devem respeitar e arcar com seus custos. Segundo, por uma linha mais pragmática e intuitiva, se todos se sentissem a vontade para burlar a regra de isolamento a cidade voltaria a ficar cheia e a festa do vírus estaria montada. Bicho solto atrás de corpos. Mas aí você, menos abstrato, poderia objetar: mesmo que a regra de distanciamento seja razoável por que eu não poderia fazer a minha corrida já que factualmente há poucas pessoas na rua?  Opa. Problema resolvido? Não.

E aqui uso diretamente o argumento do prof. Giubilini. Manter a distância social é um problema de ação coletiva, isto é, de adesão individual ao corpo coletivo. Requer cooperação de uma parcela suficientemente grande da população. E nenhum indivíduo ou grupo de pessoas dentro de uma comunidade poderia garantir o êxito da manutenção do distanciamento mesmo que pudéssemos tolerar um grupo pequeno de pessoas que fugissem à regra. Se tolerássemos outros dois problemas nasceriam: como definir os poucos privilegiados que poderiam correr enquanto os outros ficassem em casa? Como teríamos garantia de que outras pessoas cooperariam ficando em casa?

Da primeira pergunta nasce uma obrigação moral a cada um de nós. Se a obrigação de manter o distanciamento social é uma questão de responsabilidade coletiva os encargos dessa responsabilidade devem ser compartilhados de maneira justa entres todos os indivíduos da coletividade. Há uma obrigação moral de cada um de nós fazer a sua contribuição justa mesmo que isso “não faça a diferença”. É justo que cada um de nós fique em casa já que cada um de nós se beneficiará do que o distanciamento social produzirá. Além do mais, distanciamento é uma realização sobre coletividade. Logo, “todos” se distanciam.

Mesmo que seja uma contribuição “insignificante”, sua repercussão é psicologicamente forte, uma vez que diz respeito a como interpretamos o mundo e agimos sobre ele. É fato que a justiça é um dos fundamentos das interações e sociedades humanas. Fazemos nossas contribuições e queremos ter certeza que os outros igualmente façam as suas. Você se mantém em um determinado padrão e se engaja com ele na medida em que espera que os outros também se engajem e cumpram esse mesmo padrão. É o que os filósofos chamam de “problema da garantia”: precisamos de alguma garantia de que todos façam a sua contribuição justa para sermos motivados a fazermos a nossa. É assim que alguma unidade se torna possível, bem como, o equilíbrio social derivado dessa unidade. O contrário, em sentido forte, coloca em xeque a manutenção dos laços que mantém forte uma comunidade, cultura ou país.

E quanto à segunda pergunta? Como teremos garantia que outras pessoas cooperariam ficando em casa? Aqui entra o papel da coerção estatal. Até mesmo o mais liberal de nós concordaria que a coerção estatal pode empregar as garantias suficientes de que, seja qual for o sacrifício que precisássemos fazer, outras pessoas provavelmente fariam o mesmo que nós. É essa coerção do Estado que fornece a mesma segurança e, portanto, a mesma motivação para todos.

Então, por tudo isso, e sem maiores reivindicações, você deve — ser coagido a — ficar em casa mesmo que isso não faça qualquer diferença. E essa coerção e autocoerção empática será a garantia de todos nós. Esperando que em breve todos nós possamos voltar a correr em torno de nossas praças e lagoas. O que ficará a critério de cada um a escolha do local e, por tabela, a escolha de suas muitas companhias.

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(Acervo Estadão)

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Isabella Passos

Isabella Passos é professora de Filosofia e pesquisadora em Ética Aplicada (FAJE e UFSJ).