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O português que não ia em anedotas

por Alberto Gonçalves

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É natural que os brasileiros não conheçam Vasco Pulido Valente. É pena que os brasileiros não conheçam Vasco Pulido Valente. Cronista, historiador, político intermitente e fugaz, Vasco Pulido Valente foi sobretudo o autor da prosa mais luminosa e certeira da nossa língua nos últimos 50 anos. A opinião não é minha, mas do poeta, escritor e tradutor Vasco Graça Moura. A minha opinião, que valendo nada é tudo o que tenho, é a de que no século XX ninguém escreveu português como Vasco Pulido Valente. Sim, incluindo Pessoa, que Vasco Pulido Valente desvalorizava em prol de Alexandre O’Neill. E claro que sim, incluindo Saramago, a quem Vasco Pulido Valente chamava o “Garcia Márquez dos pobrezinhos” e a que preferia de longe José Cardoso Pires. Mesmo descontando o factor “competitivo”, que com boa dose de infantilidade nos empurra a escolher “o melhor”, a verdade é que Vasco Pulido Valente escrevia maravilhosamente. E que, para admiti-lo, basta lê-lo.

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Vasco Pulido Valente (Acervo: Expresso)

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“O meu pai militava à época numa escola de pensamento, hoje desacreditada, segundo a qual a eminente ambição do filho dele consistia em não trabalhar. (…) Obviamente o meu extraordinário destino não se compadecia com a mesquinha actividade de adquirir um ‘modo de vida’. O ‘modo de vida’ acabava em definitivo com a vida. Para mim, a única vida era exactamente uma vida sem ‘modo’.” (1990)

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Vasco Pulido Valente nasceu Vasco Valente Correia Guedes, em Lisboa, a 21 de Novembro de 1941, e morreu na mesma cidade a 21 de Fevereiro de 2020. Entre as duas datas, adoptou o pseudónimo que perduraria (o nome do avô, célebre médico), conviveu com opositores ao regime de Salazar (“Nunca fui marxista”, disse), doutorou-se em Oxford, viveu brevemente em Washington, casou diversas vezes, teve uma filha, esteve na génese da Aliança Democrática (a coligação que destruiu a ideia de que os governos na democracia não dispensariam o Partido Socialista), ajudou a definir a estratégia na primeira eleição presidencial de Mário Soares, foi jornalista, secretário de Estado da Cultura (abominado pelas clientelas) e deputado (desistiu em curtos meses), fumou incontáveis cigarros e, para o que aqui interessa, publicou dezenas de livros e alguns milhares de artigos na imprensa. Os livros são principalmente de história, e principalmente de história política portuguesa, destino que Vasco Pulido Valente tomou como uma limitação (“A história portuguesa é uma história paroquial. Os grandes acontecimentos que mudaram o mundo não aconteceram em Portugal.”). Os artigos tratam de política, de história, de história política, de costumes e, ocasional e deliciosamente, de intimidades.

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“Nunca fui assim. Desconfio que amoleci ou me cansei. A minha paciência com os outros desenvolveu-se prodigiosamente. A minha tolerância para a estupidez, a inveja e o ressentimento aumentou. As crianças não me cansam. As mulheres não me exasperam. Os velhos comovem-me. Até a pátria às vezes me inspira sentimentos de uma estranha benevolência. Gostava de me retirar discretamente para a província ou para um canto da Biblioteca Nacional. Gostava de escrever prosa pacificante e apologética e de merecer a estima das autoridades. Já gosto de sopa, principalmente no Inverno.” (1992)

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Além do conteúdo, sempre culto e esclarecido, apetece-me insistir na forma. Vasco Pulido Valente considerava a história um género literário, e praticava a crónica como se esta o fosse. Em parte por não ser um romancista (“Porque nunca escreveu um romance?”, perguntaram-lhe certa vez. “Porque não sei.”, respondeu), em parte por não pertencer aos grupos que legitimam estas coisas (Vasco Pulido Valente não era propenso a tolerar nulidades), a escrita de Vasco Pulido Valente raramente suscitou a admiração que merecia. E merecia imensa. Quer dizer, toda a gente sabia que Vasco Pulido Valente escrevia muito melhor do que toda a gente: movidos por sentimentos menos dignos, poucos admitiam a superioridade evidente da prosa. É imaculada, repleta de palavras exactas e imagens surpreendentes. E é uma prosa irónica, com a enorme influência de Eça a surgir mais subtil e “actualizada” do que surge em Eça. E é uma prosa moderna, aberta e despojada do plural majestático e ranços afins. E é uma prosa “limpa”, onde os clichés só aparecem para sofrer enxovalhos. “The War Against Cliché” é o título de um conjunto de ensaios de Martin Amis, cujo pai Kingsley Vasco Pulido Valente apreciava bastante: os textos de Vasco Pulido Valente começavam com essa guerra já terminada, e os clichés rendidos ao vencedor. Ocasionalmente, Vasco Pulido Valente convocava um dos prisioneiros para efeitos de tortura. De seguida, com o infeliz em farrapos, abandonava-o sem considerações.

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“Não admira que os críticos das artes se lançassem com entusiasmo no caminho dos sociólogos. Não havia analfabeto nem ignorante que não se achasse autorizado, por exemplo, a dar a sua opinião sobre cinema. A ele, a opinião parecia-lhe tão boa como a do crítico e, no fundo, não percebia bem porque é que se pagava a uns paisanos para fazer coisa tão fácil: uma perplexidade que as administrações dos jornais desgraçadamente tendiam a partilhar.

Nestas condições o crítico precaveu-se. Onde antes ingenuamente teria escrito: O filme utiliza novas convenções narrativas, que ao mesmo tempo exprimem e são determinadas pela crise de certos valores na sociedade X. O realizador parece ter sido influenciado por Malaquias. Hoje prudentemente escreve: O texto fílmico opera um decisivo corte estético, quase que diríamos penetra numa linha de ruptura, instituindo um percurso que procede à segmentação e/ou desconstrução da linguagem que representa e constitui o estruturado-estruturante da fractura-conflito que emerge e se articula da e na relação complexa de dominância-sujeição ideológica, adentro e nos limites da formação social X. É ‘transparente’ no discurso do realizador a apropriação, na categoria subjectal, dos objectos estéticos malaquianos e que ele se redefine, na sequência de tal assimilação, por uma transformação dos vectores significantes do espaço da estética malaquiana.

Quem se atreverá agora a dizer que o crítico não é um especialista? Ninguém compreende uma palavra, mas todos ficamos esmagados. A não ser os que percebem que tudo aquilo oscila entre o lugar-comum e a burla.”  (1974)

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É vital lembrar que Vasco Pulido Valente escrevia como escrevia porque era como era: a prosa de Vasco Pulido Valente não caiu do céu. Além das influências directas e indirectas, a prosa vinha-lhe do carácter. Era um carácter incomum, e raríssimo em Portugal. Num lugar dado ao conformismo, em que a opinião pessoal se forma por contágio e pavor de destoar das “correntes”, Vasco Pulido Valente não alinhava em consensos, incluindo o consenso dos que proclamam não alinhar em consensos. Os críticos acusavam-no de se limitar a “dizer mal”. Vasco Pulido Valente explicava-lhes, em vão, que “dizer mal” é fundamental para se perceber que se pode e que se deve ser bom, e que é desonesto contentarmo-nos com o sofrível.

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“Os portugueses, é verdade, têm medo; têm, sobretudo, medos. (…) A gente que por aí anda, mal se mexe, submergida em medos. O medo que a mulher (ou o marido) lhe fuja ou o medo de ‘ficar sozinho’, de longe o mais espalhado; o medo que lhe tirem o emprego ou que lhe arranjem sarilhos no emprego; o medo cósmico de complicações e trapalhadas indescritas; o medo que se saiba e, pior, que se diga; o medo que as pessoas achem, que se ofendam, que se zanguem.” (1985)

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É útil notar ao leitor estrangeiro que o português médio toma todos os conterrâneos por anti-patriotas, critério essencial para que o português médio assuma um patriotismo desalmado. Assim, numa heróica epopeia contra a realidade, o português médio convence-se – ou finge convencer-se – de que um país pobre e atrasado e ornamentado de “modernidade” pelos dinheiros da Europa, é abençoado pelos deuses, que nos dotaram em tudo com o melhor que há no mundo, de futebolistas à comida, das praias às artes (juro). Por absurda que pareça, e é, semelhante patranha suscita o respeito de boa parte da população. Nunca suscitou o respeito de Vasco Pulido Valente, que se irritava muito com a mediocridade, as referências baixinhas, a redução das expectativas ao mínimo denominador comum. Escusado dizer que Vasco Pulido Valente se irritava muito com Portugal, atitude que lhe valeu a antipatia de inúmeros compatriotas. Estes, num truque típico e infantil, tentavam atingi-lo com menções rasteiras ao “azedume” e à “frustração”, prova de que se sentiam atingidos por Vasco Pulido Valente. Vasco Pulido Valente acertava-lhes onde doía.

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(…) uma das mais belas características do patriotismo oficial e oficioso é a leveza miraculosa com que ignora a realidade de Portugal. O ano passado, por exemplo, as instâncias resolveram organizar uma exposição de pintura portuguesa do século XIX, que abriu em Paris, ao lado de uma exposição de Goya, não sei se por acaso, se a requerimento do partido anti-espanhol. Sei que se fez e sei que foi aberta e patrocinada pelo Presidente da República e paga pelo Estado e pela Fundação Gulbenkian. Coisa linda, mas com um pequeno defeito: não há pintura portuguesa do século XIX, nem aliás de qualquer outro século. A história da pintura podia ser escrita e bem escrita, sem sequer uma nota de pé de página sobre o que os portugueses pintaram. A ideia de exibir os nossos pobres produtos em França (cuja pintura do século XIX só tem equivalente no Quattrocento italiano), e ainda por cima ao lado de Goya, faz tanto sentido como ir a Tóquio mostrar um canivete numa exposição de alta tecnologia (…). Parece que alguns grupos de turistas, que não distinguiam claramente entre Portugal e Espanha, chegaram a entrar pela nossa sala dentro, na desgraçada suposição de que estavam lá os Goyas, e que fugiram aterrorizados. A tenda fechou ao fim de quinze dias.” (1988)

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Desculpem as citações longas, mas agradeçam-me as citações longas, porque sem elas não conseguiria fazer justiça a Vasco Pulido Valente. Não tenho muito a acrescentar, excepto o que me apetece acrescentar de facto: Vasco Pulido Valente mudou a minha vida. Desde que o descobri, para aí aos 18 anos, descobri que a crónica jornalística podia ser assim, por oposição ao palavreado impessoal e nulo que era – e em larga medida continua a ser – o padrão na imprensa portuguesa. Com ele, descobri em simultâneo que o deplorável espectáculo do auto-contentamento nacional não representava uma sentença a que todos estivéssemos obrigados. Da crónica, fiz o meu ofício. No cepticismo, encontrei um aconchego. Por ironia, ou inevitabilidade, não arranjo palavras compatíveis com o que devo às palavras de Vasco Pulido Valente. Por azar, apenas conheci pessoalmente Vasco Pulido Valente nos últimos anos da vida dele. Por sorte, fui a tempo de conhecê-lo, e de o ouvir lúcido e cínico e ácido e hilariante por alguns serões dentro. Não me ocorre experiência que trocasse por essa. Excepto lê-lo.

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“Desta maneira involuntária e aleatória, acabei por me tornar um homem de pouquíssima fé. Em nenhuma altura da minha vida, acreditei em Deus ou na revolução e, sobretudo, não acreditei primeiro em Deus e depois na revolução, como foi a regra dos últimos trinta anos. Isto tem as suas vantagens e a menor não é, incontestavelmente, a de que a atrofia do órgão da fé me impediu de transferir o seu objecto da Santíssima Trindade para o divino Buda ou para o Zodíaco, ou da revolução comunista para qualquer ‘ersatz’ verdadeiramente soviético e marxista-leninista, em que a má consciência se lavasse no famoso “poder popular”. Escapei à fé (se ‘escapar’ é a palavra e, para mim, é), mas, mais do que isso, escapei às formas grosseiras dela, que são a suprema degradação intelectual.” (1988)

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Pediram-me uma espécie de apresentação de Vasco Pulido Valente ao leitor brasileiro. A benefício deste, e da minha preguiça, arrisco uma comparação pífia e termino a dizer que Vasco Pulido Valente tinha a impaciência de Paulo Francis, a graça de Millôr Fernandes e a erudição de Roberto Campos. Mas escrevia melhor do que qualquer dos três – na insuspeita e inabalável apreciação da minha pessoa, que gosto bastante de todos. Como eles, legou um exemplo e escassos, ou nenhuns, seguidores legítimos. E como eles deixou livros. A maioria das crónicas jornalísticas de Vasco Pulido Valente estão reunidas em volumes sortidos: “O País das Maravilhas”, “Às Avessas”, “Retratos e Auto-Retratos”, “Esta Ditosa Pátria” e “De Mal a Pior”. Os trabalhos de história, essenciais ao estudo dos séculos XIX e XX portugueses, são mais numerosos, pelo que recomendo “Tentar Perceber”, “Glória” e “Um Herói Português”. Hoje, alguns são quase impossíveis de apanhar. Todos merecem o esforço. Para usufruir do Vasco, a diferença geográfica não serve de atenuante. Eu sei o que ganhei quando conheci Francis, Millôr e Campos. Ao desconhecer o Vasco, vocês não sabem o que perdem.

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O Vasco (Acervo: SÁBADO)

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Alberto Gonçalves

Alberto Gonçalves, licenciado (por perversão) em Sociologia, assina (e, que remédio, escreve) artigos de opinião desde 1999, tendo já passado pela SÁBADO, Correio da Manhã e Diário de Notícias. Atualmente é autor de uma coluna semanal no Observador. Publicou alguns livros: "Selecção Nacional", em 2006, "Ninguém Diga que Está Bem", em 2010 , “A Ameaça Vermelha”, em 2017, e “O Estado a que Isto Chegou”, em 2019. Vive em casa.