Filosofia

O problema da sorte moral

por Denis Coitinho

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Considerem o seguinte caso. Beto está passando em uma rua e percebe um prédio em chamas. Identifica que há uma criança presa no quinto andar. Sem pensar muito em sua segurança, entra no prédio para salvá-la. Acontece que passado uns 10 minutos, Beto retorna do resgate sem ninguém em seus braços, dizendo que no terceiro andar havia encontrado uma barreira na escada que o impediu de continuar o salvamento. Após 30 minutos, Augusto, que está passando pela mesma rua, também percebe o prédio em chamas e que há uma criança para ser salva. Rapidamente, decide entrar no local para efetuar o resgate. Mas, diferentemente de Beto, dez minutos depois, retorna com a criança em seus braços, uma vez que a escada não estava mais bloqueada. A população que acompanha a situação aplaude entusiasmada a ação de Augusto. Mas, por que as palmas teriam sido direcionadas apenas à Augusto, uma vez que Beto também demonstrou o mesmo caráter corajoso e benevolente? Ambos não se arriscaram igualmente para salvar a vida da criança? Como explicar essa seletividade no elogio?

Imaginem ainda um segundo exemplo. João está no trânsito e um automóvel bate na traseira de seu carro. Ele desce apressado para reclamar com o outro motorista. Segue-se uma discussão sobre quem seria o culpado. Após uma ofensa verbal, João saca uma arma e dispara duas vezes, matando o outro motorista. Em uma rua próxima, no mesmo dia e horário, Carlos também está no trânsito e alguém bate na traseira de seu carro. Ele também desce para reclamar do ocorrido, seguindo-se uma discussão. Após ser ofendido verbalmente, Carlos saca uma arma e dispara duas vezes, mas não mata ninguém porque as balas passam de raspão. Após o devido julgamento, João será punido por homicídio doloso a 12 anos de prisão em regime fechado e Carlos por tentativa de homicídio, com redução de dois terços da pena. Mas, considerando que a intenção de matar foi a mesma, seria justa esta profunda distinção na censura legal?

O problema central que emerge a partir dos casos descritos é que eles parecem colocar em xeque as nossas avaliações morais que deveriam considerar a responsabilidade dos agentes circunscrita apenas às suas capacidades de ação voluntária (escolha livre) e deliberada, mas, de fato, levam em conta igualmente o resultado das ações intencionais para o elogio e censura. Por exemplo, a intenção de Beto foi igual a de Augusto, isto é, a de salvar a criança, sendo igualmente corajoso e benevolente, porém a falta de êxito foi um aspecto aleatório à sua vontade. E, por mais que seu esforço seja reconhecido, sua ação não seria tão elogiada quanto a de Augusto. O problema é que o ter de fato salvado a criança estava além do controle dos agentes, mas este resultado é contabilizado na avaliação moral. Similarmente, João e Carlos manifestaram a mesma mens rea, isto é, a mesma intenção censurável de matar uma pessoa. Entretanto, censuramos mais severamente a João, mesmo sabendo, teoricamente, que o resultado da ação estava além de seu controle, estando além de sua responsabilidade moral.

Como já bem observado por Adam Smith em The Theory of Moral Sentiments (Parte II, Seção iii), a sorte parece influenciar nossos sentimentos sobre o mérito e demérito das ações e caráter dos agentes. De forma abstrata, a atribuição de responsabilidade deveria estar restrita à intenção dos agentes, uma vez que o movimento corporal é neutro e as consequências dos atos não estão sob o controle intencional. Mas, de fato, os resultados têm um grande efeito em nossos sentimentos morais, de forma a sentirmos maior gratidão por quem, além de tentar nos ajudar, consegue o benefício, bem como sentindo maior ressentimento ou indignação por quem, além de agir erradamente, sendo imprudente, por exemplo, causa um dano real. A isso Smith chamou de irregularidade dos sentimentos que, para ele, deve ser aceita e incorporada em uma teoria moral. Contemporaneamente, esse problema é denominado de sorte moral e, como dito por Williams no “Postscript” do livro Moral Luck, editado por D. Statman, o termo seria um oxímoro, pois ele parece se contrapor ao racioci?nio moral padra?o que considera a vida moral como isenta de sorte. A ideia básica é que este fenômeno nos mostraria um certo paradoxo entre a atribuição de responsabilidade e os elementos aleatórios à vontade dos agentes, que podem incluir, para além dos resultados, as circunstâncias e causalidade das ações, bem como a constituição mental dos sujeitos e, como defendido por Nagel em “Moral Luck”, ocorreria quando um agente é tratado como objeto de um juízo moral, a despeito de aspectos significativos pelo qual ele é julgado dependerem de fatores além de seu controle.

Monumento a Adam Smith, em Edimburgo

Além de ser um problema para a atribuição de responsabilidade moral, este fenômeno também coloca uma dificuldade adicional para a justificação da punição. Por exemplo, como se pode justificar que a pena atribuída a João seja muito maior do que a pena atribuída a Carlos, considerando que ambos foram igualmente culpados do ato errado de querer matar em razão de uma simples discussão? De um ponto de vista preventivista, a justificação da diferença das penas se daria pela compreensão de que apenas em um caso ocorreu o dano e que o motivo para punir seria a prevenção de futuros crimes, não tendo uma relação direta com a culpa dos agentes. O problema é que esta posição parece invalidar a estreita conexão entre a moralidade e a legalidade que é a base de nosso sistema penal, o que pode ser percebido, por exemplo, pela distinção entre culpa e dolo. Também, essa posição parece contrariar nossos juízos morais intuitivos que consideram injusto punir um inocente ou punir um culpado mais drasticamente apenas para obter a prevenção. Por outro lado, quem defende uma concepção retributivista não teria problema em reconhecer essa estreita relação entre moral e direito, uma vez que a justificação das penalidades se daria em razão da culpa do agente em ter agido erradamente. Como a punição se justificaria em razão da culpabilidade dos agentes, sendo João e Carlos igualmente culpados da intenção de matar e terem puxado o gatilho, eles deveriam ser igualmente punidos, sendo a pena proporcional à culpa e ao erro. O problema aqui seria outro, exigindo a modificação das práticas punitivas na direção de uma equalização das penas, tendo por foco apenas a intenção e não o dano.

David Enoch

Mas, vejamos mais atentamente esse problema nos casos de sorte resultante. Uma estratégia usual para justificar a distinção das penas nos casos em que a culpa é igual é negar a sorte moral. Enoch, por exemplo, em “Moral Luck and the Law”, defende que podemos duvidar da sorte moral, mas não da sorte legal, uma vez que nossas responsabilidades legais são determinadas parcialmente por questões que não estão sob nosso controle. E a justificação deste tipo de sorte se daria pelo princípio da prevenção, pois o motivo para punir seria a prevenção de futuros crimes, que são atos danosos. O problema com essa estratégia é que, desconectando o direito da moral, as penas atribuídas parecem arbitrárias. O exemplo dos motoristas imprudentes mostra bem esse ponto. Imaginemos duas pessoas que bebem e dirigem, mas só uma atropela e mata um pedestre porque a outra não encontra ninguém em seu caminho. Em uma situação jurídica normal, o agente que bebeu e dirigiu, e atropelou e matou um pedestre por acidente, seria condenado à 5 ou 6 anos de prisão em regime semi-aberto. Por sua vez, a punição para o que apenas bebeu e dirigiu e foi parado em uma barreira, seria de multa, retenção do veículo e suspensão do direito de dirigir por um ano. Mas, como justificar esta não proporcionalidade da pena com o grau de culpa do agente, uma vez que a imprudência foi a mesma? Inclusive, tendo a punição apenas o objetivo de evitar atos danosos, teríamos que aceitar a equivalência das penalidades para o que mata intencionalmente alguém e para o que mata acidentalmente alguém, como no caso de estar praticando tiro ao alvo e acertar alguém próximo. Se o dano for tudo o que importa, estes agentes teriam que ser igualmente punidos, o que parece um absurdo por contrariar nossos juízos éticos que valorizam também as intenções e o caráter dos agentes.

Uma outra estratégia que também busca negar a sorte moral, estabelece uma distinção entre o grau e o escopo da responsabilidade, indo na direção de uma equalização das penas. Zimmerman, por exemplo, em “Taking Luck Seriously”, argumenta nesse sentido, defendendo que devemos punir igualmente os agentes que são igualmente censuráveis por serem igualmente culpados. Assim, a culpabilidade dos agentes e a proporcionalidade da punição se estabeleceria em graus. Por exemplo, os dois motoristas imprudentes seriam censuráveis no mesmo grau, pois o estado mental culpado apareceria em ambos, variando apenas em escopo, pois em apenas um caso haveria a morte de alguém. Segue-se que como ambos seriam igualmente culpados, eles deveriam ser igualmente punidos ou, mesmo, se deveria abolir a punição. O problema com essa estratégia é o seu absoluto intencionalismo, pois teríamos que punir os agentes a partir de suas intenções e não em razão das consequências dos atos, o que poderia levar a uma situação absurda de termos que punir alguém por possíveis atos que seriam praticados em razão de uma certa intenção. Essa situação não parece nem exequível e nem desejável, uma vez que teríamos que mudar a nossa forma de avaliação moral, além de termos que alterar o nosso próprio código penal e, também, como alertado por Smith, se formos punir os agentes por suas intenções, todas as cortes de justiça se tornarão verdadeiras inquisições, o que implicará uma grave situação de insegurança.

Uma característica geral dessas estratégias que procuram negar a sorte moral é que elas parecem fazer uso de uma concepção irrealista de agência humana, tomando a pessoa como um agente noumêmico ao estilo kantiano e a responsabilidade moral ancorada na ideia de livre-arbítrio. Assim, a escolha humana estaria livre das influências heterônomas (externas), bem como a responsabilidade moral estaria baseada em uma capacidade metafísica de agir de outra maneira. Esta concepção é especialmente problemática para lidar com casos de sorte circunstancial. Vejamos um interessante exemplo dado por Nagel em “Moral Luck”. Cidadãos comuns sob o nazismo tiveram a oportunidade de agir heroicamente se opondo ao regime injusto ou agir mal falhando neste teste, isto é, sendo no mínimo conivente com os crimes praticados. Mas, esta foi uma prova moral que cidadãos de outros países não tiveram que enfrentar e é provável que a maioria tivesse igualmente fracassado. Em uma perspectiva noumêmica e libertista, o cidadão que não agiu heroicamente, aceitando o regime nazista, agiu erradamente, sendo culpado em razão de ter escolhido livremente e, assim, ele deveria ser punido. Pensemos em Eichmann, que foi condenado à morte por enforcamento por ter sido responsável pela logística de transporte dos judeus, sobretudo, aos campos de concentração na Segunda Guerra. Sua punição seria correta em razão de ter sido culpado por ter cumprido ordens injustas. Mas, veja que essa forma de pensar não leva em conta as circunstâncias históricas da decisão, que foi a de escolher a partir de um regime político despótico e cruel, onde o descumprimento de ordens podia levar a morte, como foi o caso de Sophie Scholl. Se poucos passariam neste teste, poderia a pena capital ser considerada justa?

Registro do julgamento de Adolf Eichmann em 1961.

Concordando com Walker em “Moral Luck and the Virtues of Impure Agency”, ao invés de pensar no agente moral como aquele que escolhe livremente, afastado das circunstâncias, é mais eficiente compreender a agência humana de uma forma impura, de maneira a tomar o julgamento moral como recaindo sobre a integridade do agente, que significa uma disposição para ter uma postura moral correta face às adversidades, e a partir de uma compreensão de que o erro tem uma história narrativa complexa. A despeito da dificuldade do problema, creio que a melhor forma de lidar com esses casos de sorte resultante e circunstancial e, também, com os casos de sorte causal e constitutiva, seja fazendo uso uma concepção mais pedestre de agência humana e uma noção compatibilista de responsabilidade moral, que apenas exige o controle (de direcionamento) da escolha na ação real a partir de uma capacidade moderada para identificar razões morais e agir a partir delas. Dessa forma, se poderia considerar a censura não apenas como uma avaliação negativa do caráter ou como uma emoção reativa, mas como uma desaprovação ao não cumprimento das obrigações, isto é, como uma mudança das nossas disposições em razão de uma ação do sujeito que deteriora sua relação com os outros, tais como descaso, imprudência, negligência, egoísmo etc. Assim, a responsabilidade moral, jurídica e até mesmo epistêmica estaria conectada com a expressão de certas virtudes, tais como a integridade, humildade, justiça, autonomia, prudência etc. Mas, isto já ultrapassa os propósitos dessa reflexão que apenas buscou apontar para o complexo problema da sorte moral, sobretudo quando pensamos na justificação da punição.

Denis Coitinho

Denis Coitinho é professor do PPG em Filosofia da Unisinos e Pesquisador do CNPq. Doutor em Filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado na London School of Economics e na Universidade de Harvard. É autor de Justiça e Coerência e Contrato & Virtudes, ambos por Edições Loyola.