Crítica na RedeFilosofia

Pascal Engel: Proposições, frases e afirmações

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O ensaio a seguir, do filósofo Pascal Engel, foi publicado originalmente na Routledge Encyclopedia of Philosophy, editada por Edward Craig (Londres: Routledge, 1998) Traduzido por Desidério Murcho, foi publicado em português no site Crítica na Rede.

A Crítica é uma publicação dedicada à filosofia, fundada em 1997 pelo Prof. Murcho, e tem uma parceria com o Estado da ArteGraças a essa parceria, reproduzimos aqui hoje a íntegra do ensaio de Engel sobre Proposições, frases e afirmações.

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Pascal Engel

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Uma frase é uma sequência de palavras, formada segundo as regras sintácticas de uma língua. Mas uma frase tanto tem propriedades semânticas como sintácticas: tanto as palavras como a frase completa têm significado. Os filósofos têm tido tendência para se centrar nas propriedades semânticas das frases indicativas, em particular no facto de serem verdadeiras ou falsas. Aos significados de tais frases têm chamado “proposições”, e têm ligado a noção de proposição às condições de verdade da frase associada.

O termo “proposição” é por vezes assimilado à própria frase; por vezes ao significado linguístico de uma frase; por vezes “ao que é dito”; por vezes aos conteúdos das crenças e de outras atitudes “proposicionais”. Mas seja como for que se definam, as proposições têm de ter duas características: a capacidade para serem verdadeiras ou falsas; e estrutura composicional (serem compostas de elementos que determinam as suas propriedades semânticas).

Uma razão para distinguir uma frase “do que a frase diz” é que uma frase pode ser destituída de significado, e por isso nada dizer, mas ser ainda uma frase. Mas talvez a principal razão é que duas pessoas, A e B, podem proferir a mesma frase, por exemplo, “Tenho calor”, e dizer a mesma coisa num sentido, mas não noutro. O sentido em que dizem a mesma coisa é que usam as mesmas palavras com o mesmo “significado” linguístico. O sentido em que dizem algo diferente é que dão “usos” diferentes às mesmas palavras: A usa “eu” para referir A, ao passo que B usa-a para referir B. Portanto, o que A diz pode ser verdadeiro, apesar de o que B diz ser falso. Se o que se diz pode ser verdadeiro num caso e falso noutro, A e B não fizeram a mesma afirmação. Por outro lado, se B proferir, ao invés, “Tens calor” quando A profere “Tenho calor”, dão o mesmo uso a frases diferentes e fazem a mesma afirmação. Deste ponto de vista (Strawson 1952), temos de distinguir a “frase”, o “uso” da frase e a “afirmação” feita ao usar uma frase num contexto em que a frase é proferida. Segundo Strawson, não são as frases, mas antes as afirmações, que são verdadeiras ou falsas.

Os lógicos abstraem habitualmente do contexto em que as frases são proferidas na comunicação propriamente dita, e falam das proposições expressas como entidades abstratas. O principal proponente moderno desta concepção é Frege (1918). Para ele, uma proposição é um “pensamento”, que é simultaneamente o significado cognitivo expresso por uma frase e o conteúdo de uma atitude proposicional como a crença ou o desejo; os pensamentos são os “sentidos” das frases. Os pensamentos distinguem-se segundo o seguinte princípio: se for racionalmente possível acreditar que p e não acreditar que q, então o pensamento de que p e o pensamento de que q são diferentes.

Numa concepção diferente, mas relacionada, proposta por Carnap (1947), a proposição expressa por uma frase F é o conjunto de mundos possíveis em que F é verdadeira. Esta perspectiva viola a exigência de estrutura composicional, visto que essas proposições não são apreendidas ao apreender as suas componentes. Parece também incapaz de diferenciar entre algumas proposições diferentes. Por exemplo, haveria apenas uma proposição necessariamente falsa, dado que só há um conjunto vazio de mundos, mas intuitivamente há muitas proposições necessariamente falsas.

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Carnap

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Uma perspectiva alternativa das proposições como entidades é a (neo)russelliana de que são colecções de entidades propriamente ditas que constituem “factos” ou “estados de coisas”. Assim, a proposição expressa por “Sócrates é mortal” é o par ordenado <Sócrates, ser mortal>, constituído pelo indivíduo Sócrates e pela propriedade de ser mortal. Três questões que se levantam quanto a esta perspectiva são as seguintes:

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(1) Serão os conteúdos das frases falsas factos negativos? Existirão factos desses?

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(2) Qual é o critério de identidade dos factos?

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(3) Como podem as proposições como factos ser os conteúdos das atitudes proposicionais?

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Esta última questão pode ser encarada como uma versão do problema que levou Frege a postular sentidos: pois o facto de que a = b tem de ser o mesmo que o facto de que a = a, apesar de quem acredita que a = a não acredita só por isso que a = b, e portanto as proposições não são a mesma. Os fregianos concluem que isto mostra que não podemos dispensar a noção de sentido. Se os russellianos o negarem, têm de complicar a sua concepção de facto ou a sua concepção de atitude proposicional.

Quer se defina a noção intuitiva “do que é dito” como uma entidade independente do contexto, quer se recorra à noção de afirmação ou proposição expressa por uma elocução num contexto particular, é preciso explicar o que é isso de duas frases exprimirem “a mesma proposição” ou fazerem “a mesma afirmação”. As duas expressões baseiam-se nas noções de significado e sinonímia, criticadas por Quine (1968). Mas se dispensarmos completamente as proposições, as afirmações e qualquer outra noção do conteúdo do que é dito, e optarmos ao invés por considerar que as frases são portadoras de valor de verdade, enfrentamos dois problemas. O primeiro é que é dúbio que as frases assumam o papel de conteúdos de atitudes proposicionais: se “Creio que sou estúpido” introduz uma relação entre mim e a frase portuguesa “Sou estúpido”, deveria ser traduzida em alemão (digamos), como ‘Ich glaube “Sou estúpido”’, apesar de a tradução correta ser “Ich glaube daß ich dumm bin”, que nada diz sobre qualquer frase portuguesa (Church 1950). O segundo problema é que, apesar dos nossos escrúpulos ontológicos quanto à admissão de proposições como entidades, precisamos ainda de uma noção como essa para exprimir o conteúdo do que se diz ou crê, e para dar conta da intencionalidade do pensamento em geral. Por isso, por mais que a noção de proposição seja vaga ou mal definida, não pode ser dispensada.

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Gottlob Frege por Gail Campbell, 2016

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Referências e leitura complementar

Blackburn, S. (1975) “The Identity of Propositions”, in S. Blackburn (ed.) Meaning, Reference and Necessity, Cambridge: Cambridge University Press. (Uma boa exposição de uma alternativa deflacionista à concepção ontológica do problema.)

Carnap, R. (1947) Meaning and Necessity, Chicago, IL: University of Chicago Press, 2.ª ed., 1956. (A primeira formulação moderna da abordagem dos mundos possíveis.)

Cartwright, R. (1962) “Propositions”, in R.J. Butler (ed.) Analytical Philosophy, First Series, Oxford: Blackwell, 81–103. (Uma discussão clássica das questões principais.)

Church, A. (1950) “On Carnap’s Analysis of Statements of Assertion and Belief”, Analysis 10: 97–99. (Formula o seu argumento da tradução contra as frases como objectos de crença.)

Frege, G. (1918) “Der Gedanke: eine logische Untersuchung”, Beitra?ge zur Philosophie des deutschen Idealismus 1: 58-77; trad. P.T. Geach e R. Stoothoff, “Thoughts”, in Collected Papers, ed. B.F. McGuiness, Oxford: Blackwell, 1984, 351–372. (A formulação clássica das proposições como “pensamentos” ou entidades abstractas.)

Geach, P.T. (1965) “Assertion”, Philosophical Review 74(4); reimpr. in Logic Matters, Oxford: Blackwell, 1968. (Uma crítica da noção de afirmação.)

Nuchelmans, G. (1973) Theories of the Proposition, Amsterdam: North Holland. (A melhor exposição histórica, ainda que algo doxográfica.)

Quine, W.V. (1968) “Propositional Objects”, Critica 5: 3–22; reimpr. in Ontological Relativity and Other Essays, Nova Iorque: Columbia University Press, 1969. (Inclui um sumário das apreensões de Quine acerca das proposições como entidades.)

Russell, B. (1918) “The Philosophy of Logical Atomism”, in Logic and Knowledge: Essays 1901–1950, ed. R.C. Marsh, London: Routledge, 1992.(Aborda as proposições como estados de coisas no mundo.)

Salmon, N. e Soames, S. (eds.) (1988) Propositions and Attitudes, Oxford: Oxford University Press. (Uma boa antologia sobre a semântica das atitudes proposicionais, centrando-se na perspectiva russelliana.)

Stalnaker, R. (1976) “Propositions”, in A.F. MacKay e D.D. Merrill (eds.) Issues in the Philosophy of Language, New Haven, CT: Yale University Press, 79–92. (Uma boa exposição da perspectiva dos mundos possíveis.

Strawson, P.F. (1952) “On Referring”, Mind 59: 320–344; reimpr. in Logico-Linguistic Papers, Londres: Methuen, 1971. (Os argumentos clássicos a favor da noção de afirmação.)

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