Literatura

Marcel Proust: uma brevíssima introdução aos espaços sensíveis

“La Digue”, de René Xavier François Prinet

por Thiago Blumenthal*

Na Recherche de Proust, a personagem Gilberte concentra alguns dos elementos afetivos mais genuínos da narrativa. Sua figura perpassa toda a obra e interage com o Narrador, Marcel, de diferentes maneiras, da infância à vida adulta, quando passa de um encanto passional a uma amizade profunda. É por Gilberte que adentramos também, logo em Chez Swann, em um universo um tanto quanto particular e muito caro ao autor francês, o da botânica.

Filha de Charles Swann e Odette de Crécy, tomamos primeiro contato com Gilberte justamente através de seu pai, em conversas em família e durante as visitas de Swann em Combray. Como é muito comum em Proust, o primeiro contato com determinado personagem se dá pela voz de outrem, pela história que se ouve deste ou daquele, o que gera um jogo mental de expectativas por parte do Narrador. Até que Marcel aviste Gilberte pela primeira vez, o que sabemos dela vem através da fala dos outros e do pensamento imaginativo do próprio narrador, que, mesmo sendo em primeira pessoa, tem a onisciência dos fatos passados em um récit do que ocorre ao mesmo tempo que se conta. Vejamos.

A mãe do Narrador, na célebre primeira visita que nos é relatada de Swann em Combray, pergunta a este: “Vamos ver, senhor Swann, fale-me um pouco a respeito de sua filha; estou certa de que ela já tem gosto pelas coisas, como o pai.” Após a reação inicial da sineta que anunciava a visita e todos os sussurros sobre Swann, é desta maneira que a mãe de Marcel decide receber o pai de Gilberte que, nós, leitores, ainda não a conhecemos pelo seu nome e de quem nada sabemos. Contudo, a frase já se apresenta de modo a mostrar uma característica que será comum tanto ao pai como à filha: o bom gosto. Cria-se assim uma imagem de Gilberte, que, tal qual o pai, detém essa aura superior, das boas coisas da vida e das artes.

Mais adiante, Gilberte retorna em pensamento ao Narrador, “que me haviam dito ser uma linda menina e na qual eu pensava seguidamente, emprestando-lhe cada vez mais um mesmo rosto arbitrário e encantador”. Outros tempos, outras dinâmicas, em que não se era possível tomar contato de alguém em quem ouvimos falar senão pelo contato direto ou por uma foto que nos é mostrada, quase como um bibelô. Fosse hoje, a Recherche e tantos outros livros seriam impossíveis de serem concebidos, com uma dinâmica completamente distante do faire-connaître – mas isto, bem, é uma obviedade que deixarei de lado.

A arbitrariedade sem dúvida exponencial a carga semântica de tantos elementos narrativos da Recherche. O arbitrário, sendo este um produto mental a partir dos elementos, condições e circunstâncias aos quais estamos todos intimamente ligados, conecta esse jogo de pontos até que as imagens, uma vez cristalizadas na cabeça de Marcel, tomem seu lugar com suas peculiaridades da memórias e também suas arbitrariedades, o que vale muito para a questão espacial de que trato aqui.

Gilberte é, até este momento, Swann, uma criança de meios privilegiados, filha de um homem respeitado, apesar do casamento com uma mulher pouco respeitada, na cabeça do narrador.

[…] quando soube naquele dia que a srta. Swann era uma criatura de condição tão rara, banhada, como em seu elemento natural, no meio de tantos privilégios que, quando perguntava aos pais se haveria alguém para jantar, lhe respondiam com aquelas sílabas cheias de luz, com o nome daquele conviva de ouro que não passava, para ela, de um velho amigo de sua família: Bergotte; que, para ela, a conversa íntima à mesa, e que correspondia, para mim, à conversa de minha tia-avó, eram palavras de Bergotte sobre todos aqueles assuntos que ele não pudera abordar em seus livros, e sobre os quais desejaria ouvi-lo baixar seus oráculos; e que, enfim, quando ela ia visitar cidades, ele caminhava a seu lado, desconhecido e glorioso, como os deuses que desciam em meio dos mortais; compreendi então, juntamente com o valor de uma criatura como a srta. Swann, o quanto não lhe deveria eu parecer grosseiro e ignorante, e senti tão vivamente a doçura e a impossibilidade que haveria para mim em ser seu amigo, que fui tomado ao mesmo tempo de desejo e desespero. Agora, quando pensava nela, geralmente a via diante do pórtico de uma catedral, explicando-me a significação das estátuas e, com um sorriso que dizia bem de mim, apresentando-me, como seu amigo, a Bergotte. E sempre o encanto de todas as ideias que despertavam em mim as catedrais, o encanto das colinas da Ilha de França e das planícies da Normandia, refluíam seus reflexos sobre a imagem que eu formava da srta. Swann, o que era estar inteiramente pronto para amá-la.

A frase é longa, porém parece que nos pede que a citemos assim, inteira, e requer uma apreciação cuidadosa, pois temos aqui justamente a imagem juste que Marcel faz de Gilberte até que se conheçam de fato. Mais do que isso, surge aqui uma ideia de sentimento amoroso, platônico, comme on dit, ainda que genuíno. Gilberte é descrita como alguém de “condição rara”, “banhada”, alguém que costuma jantar em seu cotidiano com Bergotte, o mesmo Bergotte que encantava e ainda encantaria o narrador vezes e vezes adiante na Recherche.

O espaço que se constrói aqui é um espaço mental, onde claramente Marcel ocupa uma posição inferior, quase de alguém pouco digno de conhecer a misteriosa filha de Swann. Quem, afinal, ele pensa que é para conhecê-la? Seus jantares são com sua tia, com sua avó, com seus pais, não com a alta sociedade e com os seus artistas preferidos. Mais do que um espaço hierarquizante, subjetivo, profundo, esse é o espaço que prenuncia muitos dos espaços reais da obra. Assim como as personagens são conhecidas a partir do que se ouve falar delas, assim são os espaços, as viagens empreendidas, em uma tipificação do romance que se está por escrever: os espaços são os espaços imaginados, ainda que vivenciados, assim como os amores e as relações empreendidas em toda a obra.

Não é por acaso que após descrever a imaginação que tem do que seja a relação de Gilberte com Bergotte, o Narrador apresenta uma lista de espaços, como “catedrais, o encanto das colinas da Ilha de França e das planícies da Normandia”, em uma composição perfeita, digna de um Proust, do que se pretende projetar de dentro para fora do romance e, mais do que isso, de dentro para fora da mente de um hábil Narrador que já prenuncia tantos espaços e tantos afetos que estarão por ser construídos ao longo de toda uma vida – e recuperados, rejuntados, remontados.

São ideias sensíveis, em que cada coisa, cada modelo, cada criatura e cada espaço como uma generalidade é tratado como uma ideia sensível, e que ultrapassa a mera concepção de tempo e de espaço, como se este espaço ainda por ser criado concretamente no romance, apenas em potencialização, fosse um “espaço fora do espaço”, como o tempo proustiano é um “tempo fora do tempo”. Tratemos disso com mais cuidado.

O livro de Mauro Carbone, An Unprecedent Deformation, pode nos ajudar um pouco com este conceito de espaço fora do espaço, em que o visível carrega consigo (e em si) todo o elemento invisível que o ser compartilha com a linguagem que está sendo ali instrumentalizada, como em uma ideia de “espaço infinito”, ligando assim a uma conceituação muito cara à filosofia de Merleau-Ponty.

Tempo e espaço são assim horizontes, mais do que uma série de coisas dispostas a nós, leitores, e a nós, em um plano mais geral, que compartilhamos cotidianamente desses mesmos elementos: tempo, espaço e as narrativas que estamos a criar e as que estamos a acompanhar. Carbone fala em uma “transtemporalidade” e em uma “trans-espacialidade” que caracterizam um elemento pressuposto como “raios do passado e raios do mundo aos fins dos quais pulsam as estruturas mais sensíveis”. (p. 38). Não é simples o raciocínio, mas também não é simples o mecanismo espacial realizado por Proust, que cria para seu Narrador um espaço próprio, infinito, mental, onde ele encontra Gilberte jantando de maneira muito natural – uma criança, veja só – com um autor de ficção.

Carbone cita o “manifesto técnico” dos pintores futuristas, de 11 de abril de 1910, algo contemporâneo à escritura da Recherche, destacando que “para a persistência da imagem na retina os objetos se multiplicam e se deformam, seguindo uns aos outros, como vibrações, no espaço pelos quais atravessam”. Georges Braque, alguns anos mais tarde, resumiria esse manifesto com a seguinte passagem: “o que o sentido deforma, a mente forma”.

Para Proust, trata-se, antes de “julgar que uma criatura participa de uma existência desconhecida em que seu amor nos faria penetrar é, de tudo o que o amor exige para nascer, aquilo a que ele mais se prende e que o faz desdenhar do resto.” Desdenhar de todo o resto é desdenhar do espaço real, muitas vezes da pessoa real, ou mesmo do amor real. Não “real” no sentido de “verdadeiro”, mas no sentido de sua concretude da retina dos olhos vistos.

São de fato ideias muito caras a Proust, a essa cosmologia da Recherche, em que tempo, espaço, sentido e, claro, mente, estão conectados em uma poderosa equação, que se expande ainda mais quando o espaço da imaginação se presentifica, como no momento em que o Narrador encontra pela primeira vez Gilberte.

A sebe entremostrava no interior do parque uma aleia bordada de jasmins, amores perfeitos e verbenas, dentre os quais abriam uns goivos a sua bolsa fresca, de um róseo odorante e fanado de velho couro de Córdoba, enquanto pelo caminho serpenteava uma comprida manga de regar, pintada de verde e que, dos pontos onde tinha orifícios, erguia por sobre as flores cujo aroma impregnava com sua frescura o leque vertical e prismático de suas gotículas multicores. De súbito parei, não pude mais me mover, como acontece quando uma visão não se dirige apenas a nossos olhares, mas requer percepções mais profundas e dispõe de todo o nosso ser. Uma menina de um loiro-avermelhado, que parecia voltar de um passeio e que tinha na mão uma pá de jardinagem, olhava-nos, erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa. Seus olhos negros fulguravam e, como eu então não sabia, nem o aprendi depois, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão muito forte, como não tinha suficiente “espírito de observação”, como se diz, para poder isolar a noção de sua cor, durante muito tempo, de cada vez que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos logo se me apresentava como de vivíssimo azul, visto que ela era loira; de modo que, se acaso não tivesse uns olhos tão negros — coisa que tanto surpreendia ao vê-la pela primeira vez —, eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente enamorado, nela, de seus olhos azuis.

Nós, leitores, ainda não sabemos que se trata de Gilberte. Estamos nos arredores de Combray, justamente pelo caminho de Swann (Méséglise), em Tansonville, e é por este caminho que devemos recuar um pouco antes de chegar a Gilberte em si. Primeiramente, há uma imagem muito linda, que é a da contemplação dos pilriteiros, que persegue o leitor por todo o volume de maneira sutil e poética – devemos recuar aqui porque é através deles que se avista Gilberte, já chegamos lá. Diz Marcel que a paixão por esses pequenos arbustos de florzinhas brancas ou rosadas começou durante o “mês de Maria”, na igreja, estendidos em “pequenos tufos de botões de alvura deslumbrante”. Atribuía o jovem Marcel àquela decoração florida algo da própria natureza, que constituía uma diversão popular e uma solenidade mística, de silenciosa imobilidade, com um odor que era quase como

um murmúrio de sua intensa vida, com que vibrava o altar, como uma sebe agreste visitada por vivas antenas, nas quais a gente pensava ao ver certos estames quase vermelhos que pareciam haver guardado a virulência primaveril, o poder irritante, de insetos agora metamorfoseado em flores.

Pausa para essa passagem de insetos metamorfoseados em flores. Ora, não é o espaço em constante transformação, desta vez da natureza, que está a tratar o jovem e contemplativo Marcel? Vai-se criando assim toda uma concepção espacial que pertence mais ao sentido do que à geografia, do que à cartografia, tal e qual. Como um mapa dos sentidos onde os pilriteiros, se olhados com bastante detalhes, parecem ter anteninhas que são insetos fora de estação. Ou como o odor, católico, puro, ainda que inebriante, da catedral de Combray, que deixa o Narrador aturdido por alguns instantes.

E é sob uma sequência de altares, que forma a sebe pelo caminho de Swann, que se dá o primeiro encontro de Gilberte e Marcel. “O sol pousava na terra um quadriculado de luz, como se acabasse de passar por um vitral”. Não sabia o que fazer, com o pensamento perdido sob o odor dos pilriteiros, fazia-se bater o coração, assim nos conta o Narrador. Chamando-os de “obras-primas”, que a gente pensa ver melhor depois que deixou um momento de contemplá-las, despertava no Narrador um sentimento vago e obscuro, que não sabia ainda nomear, mas que era totalmente preenchido pelas plantinhas.

Seria possível dedicar um livro inteiro somente à belíssima imagem dos pilriteiros, mas o que importa aqui é que são eles que anunciam de algum modo – e aqui o termo “anunciação” tem algo de religioso, uma vez denotado o caráter católico da planta – a aparição de Gilberte. Como se o espaço da imaginação do Narrador enfim desse espaço (e aqui a expressão não é gratuita ou trocadilho) ao espaço real tantas vezes sonhado, o do encontro concreto. Voltemos, é preciso, ao longo trecho em que Gilberte surge, mas desta vez desmembrando alguns pares. A sebe que deixava entrever uma “aleia bordada de jasmins, amores perfeitos e verbenas” também deixava entrever uma menina de um loiro-avermelhado que observa do outro lado, “erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa”. Não seriam as mesmas manchinhas cor-de-rosa dos pilriteiros que momentos antes o avô de Marcel chama atenção: “Tu, que gostas de pilriteiros, repara neste pilriteiro cor-de-rosa; como é bonito!”.

Espaços e afetos se fundem na Recherche de modo a criar uma relação causal, circunstancial, como se o Narrador e os personagens aos quais ele está ligado estivessem condicionados aos lugares por onde passam. Os sentimentos, uma vez fundidos através de um jogo entre mente e coração, se confirmam no estar aqui-agora, como se o mundo estivesse a nosso dispor, tudo encaixado a fazer um sentido que confirmasse, para o bem e para o mal, nossas expectativas, nossos sonhos, nossos amores. 

*Este ensaio é um recorte livre de minha tese de doutoramento.

Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.