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Poesia em Casa – Quarto tipo de pretensão: A voz redentora

por  Pedro Gonzaga

Nossa coluna continua esta semana com a análise do quarto tipo de pretensão poética — a voz redentora.

Por sua natural concentração espacial, pela concisão de sua linguagem, um poema acaba por magnificar quaisquer efeitos de comunicação, expondo, inclemente, intenções que poderiam passar subcutâneas em textos prosaicos. No branco luminoso da página, golpes retóricos, convocações inflamadas, toda sorte de panfletarismo adquirem o tom ordinários das discussões de grêmio estudantil, e nem poetas consideráveis escaparam de maus momentos por causa de um ou outro poema que gostariam sociais, mas que acabaram sendo apenas condescendentes com os seres que julgavam dignificar. Um exemplo é “O operário em construção”, de Vinicius de Moraes.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?

Talvez, vá lá, o operário até pudesse ser vítima da alienação que lhe impõe o eu-lírico, mas é inegável que, antes de tudo, não passa de um simples estereótipo, mil vezes requentado em gabinetes. Mais certo seria dizer que isto que ocorre no poema não chega a ser um tema político, mas apenas proselitismo, como certo seria dizer também que o proselitismo está para a política assim como o sentimentalismo está para os sentimentos. A ausência de fundamentação, de causa e efeito, leva ao exagero. É o violino doce que soa para que possamos nos emocionar com uma cena que não atingiu a adequada temperatura dramática. Um poema político, com raras exceções, precisa partir do enfrentamento individual, particular, contra as forças de uma sociedade iníqua. Vemos isto em “Elegia 1938”, de Drummond (que cometeu seus deslizes depois em momentos de A rosa do povo), ou no doloroso despojamento de “O bicho”, de Manuel Bandeira.

Pintura de Diógenes de Jean-Léon Gérôme

O quarto tipo de pretensão nasce da prepotência de se colocar como porta-voz do outro, de uma crença, por vezes sustentada pelo tempo, de que um coletivo fala através de mim, fazendo-me um procurador a quem ninguém conferiu procuração. Despersonificado, começo a utilizar palavras e imagens que inicialmente parecem bombásticas, mas que muitas vezes são apenas ocas, já que servem para quaisquer injustiças, desde que os leitores possam acreditar nas minhas intenções ou nas minhas condições. Se de fato há um lugar de fala, que ele apareça dentro do poema, tenso, conflitivo, sopesado. Senão, vejamos. Alguém enuncia: “Trago em meu corpo tantas marcas”. Tal verso serviria para dar voz a uma mulher, uma criança traumatizada, uma vítima do preconceito, um presidiário, o operário lá de cima, um soldado, um mendigo.

Se a poesia é o espaço de reivindicação da singularidade da experiência, a política na poesia bem faz em evitar o caminho fácil que é falar dos outros enquanto, a um só passo, trata de reduzi-los a lugares-comuns.
O mesmo Vinicius antes criticado alcançou o sublime quando encontrou, em “A rosa de Hiroshima“, vencida a comiseração pelas vítimas, uma rosa única (a antirrosa atômica das feridas radioativas), que só o gênio do poeta poderia encontrar.

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.