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Quase deuses

por Flávio Romero Palma 

A Genética é uma ciência jovem. Desde 1865, quando o monge Mendel publicou os “Experimentos de hibridação de plantas” e lançou as bases deste ramo da Biologia, até o sequenciamento do Genoma Humano no começo deste século não se contam 150 anos. O progresso, porém, foi avassalador. Com as ferramentas da Genética Moderna aplicadas à Biologia Humana passamos a prever e evitar doenças por meio do aconselhamento genético, entender os mecanismos que levam à doença e propor terapias. São muitas as possibilidades e, mesmo que muitas pesquisas tenham boas motivações – afinal, quem não desejaria acabar com o sofrimento causado por uma doença genética? –, os meios empregados podem não ser igualmente bons. Existe uma linha muito tênue entre o que é ou não realmente ético em Biologia e, por vezes, é comum confundir inovação com irresponsabilidade. O que esperar num futuro próximo? Contarei duas histórias.

Primeira história: uma pessoa, três DNAs

Há poucos meses foi noticiado o nascimento da primeira criança com material genético de “três pais”.  O intuito do procedimento foi permitir a um casal jordaniano radicado nos Estados Unidos gerar uma criança livre da Síndrome de Leigh. Trata-se de uma doença genética grave que, na maioria dos casos, leva a uma morte prematura.

O histórico do casal revela o drama: dois filhos nasceram com a síndrome e morreram ainda na infância, pois a mãe possui cerca de 25% de mitocôndrias carregando mutações no seu DNA – as mitocôndrias possuem um DNA próprio, diferente daquele presente nos cromossomos. Assim, o casal recorreu ao Dr. John Zang da clínica New Hope Fertility, em Nova York, que lhe apresentou as possibilidades para contornar o problema. A técnica escolhida, chamada transferência nuclear de fuso (spindle nuclear transfer), consiste na substituição do material nuclear de um óvulo proveniente de uma doadora com mitocôndrias sadias pelo material nuclear da mãe portadora, com a posterior fertilização do óvulo pelo espermatozoide do pai. O resultado é um zigoto com o DNA nuclear dos pais e mitocôndrias (e consequentemente o DNA mitocondrial) de uma mulher doadora. Apesar de não ser nova, a técnica permanece proibida nos Estados Unidos. Assim, o casal e a equipe médica realizaram o procedimento no México, que não possui legislação específica sobre o assunto.

O menino nasceu sadio, com uma porcentagem muito pequena de DNA mitocondrial mutado, sendo improvável o desenvolvimento da doença. A comunidade científica aclamou o primeiro caso de sucesso do procedimento, e, há poucos dias, o órgão que regula os procedimentos em fertilização no Reino Unido, o Human Fertilization and Embriology Authority (HFEA), aprovou o uso da técnica para alguns casos.

Segunda história: editando genes

Em 2015, cientistas chineses liderados pelo Dr. Junjio Huang, da Universidade Sun Yat-sen em Guangzhou, anunciaram a primeira modificação genética de embriões humanos por meio da técnica CRISPR/Cas9. O procedimento consiste em tratar as células com enzimas que promovem a edição de DNA: um gene contendo uma mutação prejudicial pode, por exemplo, ser “cortado” e substituído por uma versão “sadia”. Na ocasião foram utilizados 54 embriões para a edição de um gene ligado à talassemia, um distúrbio sanguíneo hereditário. Estes embriões, provenientes de clínicas de fertilização in vitro, apresentavam defeitos e não seriam implantados. Como resultado, a correção da mutação se deu em 4 embriões. Nos demais embriões foram detectadas alterações não específicas em outros pontos do genoma, ou seja, houve edição de genes que não eram alvos das enzimas.

Também na China, há poucos meses, um grupo da Universidade de Medicina de Guangzhou promoveu a modificação genética de embriões humanos inviáveis ao inserir uma versão mutante do gene CCR5. Esta versão, que ocorre em algumas pessoas, confere uma resistência ao HIV. O Dr. Yong Fan e sua equipe mostraram que 4 dos 26 embriões foram modificados com sucesso. Como no caso anterior, ocorreram modificações não específicas.

O Reino Unido, cuja legislação bioética é sabidamente flexível, aprovou o uso da técnica CRISPR/Cas9 para pesquisas com embriões sadios, com a condição de destruição destes após o sétimo dia de desenvolvimento.

Tendo em vista estes dois casos, vale a pena pensar nos desdobramentos científicos e éticos que deles provém.

Admirável Mundo Novo?

Aldous Huxley, em seu livro “Admirável Mundo Novo”, mostra uma sociedade onde tudo segue padrões determinados. Desde a produção orgânica de seres humanos – todos são gerados in vitro, geneticamente construídos para a perfeição – até a identidade que cada um terá: nada, ou quase nada, escapa ao determinismo genético e moral pensado. Já não existem imperfeições, mas apenas estabilidade.

Guardando as devidas proporções, já vivemos este admirável mundo novo. Ou, pelo menos, temos conhecimento para criá-lo. Como descrito nas histórias 1 e 2, a técnica já toca a possibilidade de manipular geneticamente o homem em seu estágio embrionário. A Ciência e a Ética não caminham a passos iguais e, ainda que haja relativo consenso sobre certas questões éticas, o progresso científico nos apresenta, a cada dia, novos dilemas. Algumas questões devem ser respondidas: estes procedimentos são seguros? Quais seriam as implicações de sua aplicação na identidade do indivíduo? Esta situação abre as portas para pensamentos e atitudes eugênicas, ou são elas próprias uma forma de eugenia?

A respeito da segurança dos procedimentos (fator chave para sua liberação): é possível imaginar que num futuro próximo haja maior taxa de sucesso. A eficiência baixíssima atual será, provavelmente, contornada pelo aprimoramento da técnica ou mesmo o surgimento de outras mais eficazes. Assim, ainda que o foco dos cientistas esteja, principalmente, nesta questão, os impactos sociais e as possíveis aplicações destes procedimentos parecem mais importantes.

A situação relatada na primeira história cria uma situação nova: a criança possui, realmente, três pais? A resposta do Ministério da Saúde do Reino Unido é um rotundo “não” à questão, mas esta não é uma opinião unânime. Geneticamente há, de fato, o DNA de três indivíduos diferentes: o DNA nuclear dos pais biológicos e o DNA mitocondrial de uma doadora. No entanto, as características e traços pessoais provém apenas do DNA nuclear e a contribuição do DNA mitocondrial é de menos de 0,1% do material genético total de um ser humano. Estudos feitos com modelos animais, porém, mostram que a técnica pode mudar o padrão de expressão de genes nucleares, afetando como remarca o Dr. Klaus Reinhardt e seus colaboradores em uma revisão sobre o assunto publicada na revista Science[1].

Deriva daí a questão da identidade da criança: se as características e traços pessoais são os principais fatores que definem a identidade de uma pessoa, o procedimento parece ter pouco efeito sobre a criança. Porém, como sugere a Dra. Françoise Baylis, especialista em Bioética da Dalhousie University no Canadá, “a identidade de uma pessoa não é apenas produto dos genes que ela carrega, mas do mundo em que vive e das histórias que constrói e mantém”[2]. Assim, “saúde e doença são estados de ser que podem moldar a identidade pessoal e não faz sentido dizer que uma tecnologia segura e eficaz que elimina a doença mitocondrial no recém-nascido não terá impacto sobre a maneira como a identidade dessa pessoa evolui.”

Seguindo esta linha de pensamento, é bastante razoável dizer que ambos os procedimentos – a doação de mitocôndrias sadias e a edição de genes – mudam, sim, a identidade do ser que surge após a intervenção. Se esta interferência é mesmo válida é difícil responder (pois há interesses mais que razoáveis em questão). De qualquer maneira, em um admirável mundo novo ela é real. O desejo dos pais de terem filhos biológicos livres de uma doença genética é, em si, natural, pois querem evitar um sofrimento para si e para a criança. Porém, como defendido por Baylis, trata-se de um desejo, não de uma necessidade e, segundo a pesquisadora, há riscos associados: “Não está claro por qual razão um desejo de ligação genética entre pais e filhos justifica a imposição de riscos para as crianças e para as gerações subsequentes”.

Brincando de Deus, ou: Uma nova raça superior

Por fim, é possível afirmar que estas modificações flertam com a eugenia? De alguma maneira, sim. O inglês Francis Galton, primo do célebre Charles Darwin, cunhou o termo na sua obra “Inquiries into Human Faculty and Its Development” (“Investigações na Faculdade Humana e seu Desenvolvimento”). Para ele, a eugenia consiste em melhorar uma espécie, física ou mentalmente, com base na seleção artificial. Habitualmente, quando pensamos em eugenia, lembramos de Mengele e o desejo do nazismo em forjar uma raça superior. Mas, seguindo à risca a definição do termo, selecionar características desejáveis, sejam elas quais forem, é um processo de triagem. Estamos falando de evitar doenças genéticas, privar uma pessoa de um possível mal, e não de alterar características como cor de olhos, estatura, composição muscular, ou a escolha do sexo. Porém, como sublinhado pelo filósofo Michael Sandel, da Universidade de Harvard, apesar do melhoramento genético visar, na maioria das vezes, a prevenção de uma doença, pode não demorar para que seja utilizado como instrumento de melhoria da espécie. E esta diferença entre curar e melhorar é de cunho moral e de distinção tênue[3].

Algumas vozes na comunidade científica demonstram preocupação com os rumos que as pesquisas estão tomando e fazem um alerta sobre a situação. É o caso do artigo “Don’t edit the human germ line” (“Não edite a linha germinal humana”), publicado por Edward Lanphier, ex-Presidente da Aliança para a Medicina Regenerativa, e outros cientistas na revista Nature[4]. Os pesquisadores falam sobre os riscos da edição de genes em células germinativas (óvulos e espermatozoides) e suas consequências.

Muitos grupos religiosos e opositores de manipulação genética em humanos afirmam que a Ciência, ao admitir tais procedimentos, está “brincando de Deus”. O Dr. Johnjoe McFadden, professor de Genética Molecular da Universidade de Surrey, Reino Unido, em seu artigo “Genetic editing is like playing God – and what’s wrong with that?” (“Edição genética é como brincar de Deus – o que há de errado com isso?”) diz que “estes grupos opositores estão corretos. Nós estamos, realmente, brincando de Deus com os nossos genes.” Ele afirma, ainda, que “isto é uma coisa boa, pois Deus, a natureza ou o que quer que nos tenha feito, muitas vezes erram; e cabe a nós corrigir esses erros.”[5] Será que conseguiremos, de fato, corrigir estes erros ou é apenas um desejo soberbo e irreal de diminuir imperfeições? Pensando assim, algumas questões não podem deixar de ser colocadas: temos a autoridade para interferir na vida humana desde seu início? O cientista do futuro é agente da seleção artificial? Um quase-Deus?

[1] Reinhardt, K. et al. (2013). Mitochondrial replacement, evolution, and the clinic. Science 341, 1345-1346.

[2] Baylis, F (2013). The ethics of creating children with three genetic parentes. Reproductive BioMedicine 26, 531-534.

[3] Sandel, M. J. (2013). Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 160 p.

[4] Lanphier, E. et al. (2015). Don´t edit the human germ line. Nature 519, 410-411.

[5] McFadden, J. Genetic editing is like playing God – and what’s wrong with that? https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/feb/02/genetic-editing-playing-god-children-british-scientists-embryos-dna-diseases. Acesso em 19/12/2016.

Flávio Romero Palma

Flávio Romero Palma é doutor em Genética pela USP.