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O Queermuseu: cidadãos contra citadinos na batalha dos moralismos

No filme Afterimage, de Andrzej Wajda, autoridades stalinistas fecham a Sala Neoplástica: inimiga da arte socialista.

por Rodrigo de Lemos

Vigora frequentemente em meios de arte contemporânea uma certa desconfiança quanto ao trabalhado, ao acabado. Entre uma obra que denote uma certa minúcia de feitura e uma outra que atenue o labor material, sobretudo em favor de uma eclosão do sentido, não é incomum que os iniciados pendam à segunda opção.

Com efeito, parte do que se apresenta sob esse rótulo estranho de arte contemporânea não se propõe como criação de um mundo autônomo de cor e linha e luz e volume, mas como um statement, por vezes de delgada materialidade, sobre o nosso mundo, de tensões políticas, raciais, econômicas. Outras obras ainda se apresentam como uma forma de nele interferir diretamente, despertando reações extremas (é o batido lema: não é arte se não te incomoda). Em muitos casos, não se pode dizer que a arte contemporânea não quer dizer nada, mas sim que ela diz muito, talvez demais.

A inflação da arte como cosa mentale (coisa conceitual seria mais apropriado?) em detrimento da técnica por assim dizer “artesanal” e da materialidade responde por parte do tédio, da revolta ou da estupefação do público: mas isso é arte? Também traduz uma aproximação perigosa da obra quanto ao mundo, explorando as margens para a confusão. Bem entendido, até o modernismo, o mundo sempre pôde estar presente na arte, mas transfigurado pela forma que, ao mesmo tempo, marcava a sua própria presença ao apreciador e que chamava seu julgamento. Quando a forma se faz rarefeita, é natural que os olhares se voltem, exclusivamente, para o que há de mundo na obra e que, com o tempo, essa se torne a questão total.

Talvez seja em função disso que pouco se discutiu sobre o mérito das obras censuradas no Queermuseu do Santander Cultural de Porto Alegre para além do isso não é arte. Algumas são de inegável valor como feitura, a começar por “Cena de quarto II”, tela a óleo de Adriana Varejão, uma das obras no índex da nova direita, que a acusa de apologia à zoofilia. Outro público saberia apreciar a representação achatada do espaço, a elegância do traço e a delicadeza das cores, como um sonho algo irônico de orientalismo, em contraste com o tema repugnante e brutal. Demais obras traem uma preocupação política mais nua, acompanhadas de um certo despojamento material. Pouco importa; todas foram implacavelmente julgadas pelas massas excitáveis de acordo com o assunto, ou antes de acordo com a pergunta: o que vieram fazer no mundo? O mundo na obra de arte é assim; tu escancaras a porta, e em pouco tempo ele dá as ordens na casa.

No caso do Queermuseu do Santander, quem escancarou a porta ao mundo foi, em primeiro lugar, a curadoria. Não havia unidade outra que temática (ou melhor, política) entre as mais de 250 obras. A curadoria parece haver trabalhado no limite da irresponsabilidade, adotando uma lógica de provocação e evitando acomodações razoáveis com a sensibilidade moral de parte do público. Por que não advertir sobre as obras de conteúdo explícito? Por que incluir no projeto, de acordo com relatos da imprensa, as controversas ações educativas ligadas à teoria do gênero, constantemente rejeitadas por parte da população? Por que instrumentalizar a arte dessa maneira? O próprio catálogo tende a privilegiar a narrativa política das obras frente à sua visualidade. A sensação é a de que uma oportunidade foi perdida, numa exposição de alta visitação como essa, para ilustrar os frequentadores numa visualidade que por vezes eles nem percebem existir. Como convencer o público, quando a polêmica estoura, de que a arte é um espaço social de alguma forma especial se a própria curadoria parece encara-la como arma na guerra da cultura?

Surpreende, assim, que parte da opinião informada cristã repreenda na exposição e na crítica a seu fechamento o pecado do esteticismo. É o caso do artigo “A tragédia do esteticismo”, de Elton Flaubert, publicado na Revista Amálgama, em resposta ao texto “A liberdade de expressão na arte”, de Rodrigo Cássio, publicado neste Estado da Arte. Na história da arte, o esteticismo corresponde a uma revolta de certos artistas e críticos do século XIX contra parte da crítica burguesa (em aliança com homens de justiça como o célebre promotor Ernest Pinard) que aspirava a uma arte moralizante, asséptica de qualquer conteúdo insultante, e que redundou no processo a Madame Bovary, de Flaubert, por “glorificação do adultério” e na interdição, em 1857, por “ultraje à moral pública e aos bons costumes” e por “ofensa à moral religiosa”, de seis poemas de As Flores do Mal, de Baudelaire, que tratam de temas não muito distintos daqueles que hoje causam mal-estar (satanismo, lesbianismo, sadismo). A reação a essa corrente, à frente da qual estavam os mesmos Baudelaire e Flaubert, propunha a quebra de qualquer vinculação unívoca entre arte e moral (ou ao menos a moral do dia), o que abriu um novo campo de pesquisa estética que dará em tendências do modernismo no século seguinte. Ora, é precisamente contra o modernismo, e contra o esteticismo, que uma parte importante da arte contemporânea se insurge na segunda metade do século passado, em favor de um novo engajamento ético e político. E a exposição do Santander integra essa corrente ostensivamente, militantemente moralista, a ponto de desrespeitar violentamente crenças religiosas do campo alheio e, cegamente persuadida da sua moral, de se fazer instrumento de “ações educativas” em teoria queer. Se parte dos intelectuais cristãos não reconhece o quanto há de moralismo no Queermuseu, pode ser porque eles também estejam tão persuadidos da sua própria moral que qualquer outra, por ostensiva que seja, não lhes pareça uma moral (talvez gauche, talvez pervertida), mas como sua total ausência.

Terroristas muçulmanos do Estado Islâmico destroem obras do Museu Arqueológico do Iraque: obras “ofendiam” sua moral.

No seu zelo militante, e na sua recusa a acomodações razoáveis, o Queermuseu acabou por aprofundar um fenômeno social aparente em várias sociedades, inclusive no Brasil: a clivagem crescente entre cidadãos e citadinos. Os cidadãos tendem a habitar as  profundezas de seus respectivos países, profundezas que podem ser os confins, mas também as periferias das grandes cidades ou mesmo os imensos desertos culturais metropolitanos povoados pela classe média técnico-gerencial. Eles representam a realidade mais antiga de uma cultura nacional fundada numa religião, numa língua e em uma cultura circunscrita, na medida do possível, a fronteiras geográficas e linguísticas. Já os citadinos não apenas estão em Manhattan ou no Marais, em Paris, mas também são istambulitas de Cihangir, praguenses de Zizkov e Vinohrady, cairotas de Zamalek – provavelmente estão em alguma zona da sua capital brasileira mais próxima também. Não é incomum que eles se identifiquem mais entre si de um país a outro do que com os cidadãos que os circundam, partilhando um certo laxismo religioso, uma certa liberdade de costumes e um estilo de vida relativamente homogêneo quanto às referências culturais globalizadas pelas tecnologias da informação, o que termina por compor um vocabulário de ser internacional sobreposto às velhas identidades regionais e nacionais. Entre essas referências, além dos inevitáveis cafés gourmet de que fala Charles Murray quanto aos EUA e de uma certa familiaridade com tendências de moda e comportamento das capitais globais, constam frequentemente a arte contemporânea, quando não a própria teoria de gênero.

É possível que, assim como aconteceu nos Estados Unidos com a eleição de Trump, na Rússia com a oposição entre os ocidentalistas e os putinistas, na Turquia com os embates dos “turcos negros” (populares de tendência islamista) contra os “turcos brancos” (turcos republicanos e secularistas dos centros globalizados), a catarse contra a exposição do Santander marque, no Brasil, um ponto de inflexão na guerra de ressentimentos entre os cidadãos brasileiros e os citadinos que vivem no Brasil. A revolta dos cidadãos, tornada possível nas redes sociais, parece-me o fato social profundo que explica muito do que passa por liberalismo brasileiro ou da chamada “onda conservadora”. A censura (ou boicote; na sociedade da conexão total, a diferença é obsoleta) à exposição de arte contemporânea e queer foi vivida por muitos paradoxalmente como uma vitória da democracia, como o triunfo do pagador de impostos sobre as elites culturais desenraizadas e parasitárias, como uma defesa da “família tradicional brasileira” e da “boa fé católica”. Tais expressões não foram inventadas; apareceram em vários textos e vão começar a aparecer nos comentários tão logo este seja publicado. Não sabemos se vamos acabar como a Rússia, a Turquia ou os Estados Unidos, mas provavelmente a censura à exposição transcenda o terreno da arte e tenha um impacto político, sobretudo em um regime como o democrático, que supõe a aplicação da aritmética à gestão dos interesses conflitantes. Veremos seu resultado já no fatídico ano da graça de 2018, tão próximo.

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.