História

A República em saltos (Parte II)

por Vinícius Müller

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Muito tempo já se passou desde que Getúlio Vargas ascendeu ao poder por meio de um golpe em 1930. E mesmo que o debate sobre se devemos usar ‘golpe’ ou ‘revolução’ para indicar aquilo que ocorreu na ocasião possa ter alguma pertinência, é mais importante entender quais foram os arranjos, as ideias, alianças e imposições do contexto que criaram, em conjunto, as condições ideais para os eventos daquele ano. Alguns deles foram destacados no artigo anterior que abriu a série que agora se completa.

Desde então muita história já correu. Uma mais que centenária trajetória republicana que, em todas estas décadas, vivenciou situações análogas. A lista é ampla e inclui a queda de Vargas em 1945, sob os efeitos do desgaste da ditadura do Estado do Novo e dos resultados da Segunda Grande Guerra (1939-1945); a crise entre o suicídio de Vargas em 1954 e a tumultuada posse de Juscelino em 1956; a renúncia de Jânio quadros em 1961, deixando o país vulnerável ao golpe que, efetivamente, ocorreu em 1964 e derrubou João Goulart. E, claro, a redemocratização do país ao longo da década de 80, anunciada pelo fim do governo militar em 1985 e pela promulgação da Constituição de 1988.

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Ulysses e a Constituição (Arquivo ABr)

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De meados da década de 80 para esta antevéspera do bicentenário da Independência, a Nova República também vivenciou uma série de eventos históricos que possibilitam abordagens análogas. E hoje, em 2020, talvez viva um de seus mais agudos momentos. A lista é longa, mas os destaques determinantes.

O próprio arranjo resultante da Constituição de 1988, em ao menos três aspectos, é um deles.  O primeiro é a estrutura partidária que estimula aquilo que se convencionou chamar de ‘presidencialismo de coalizão’. A necessidade de arranjos multifacetados com um Parlamento dividido em um sem número de partidos impôs um desafio para além da divisão ‘esquerda-direita’. Descontando o governo de transição de José Sarney, aqueles que apresentaram uma razoável combinação entre liderança, histórico pessoal e coerência em suas propostas, mesmo sob as fortes acusações de desvio de comportamento, conseguiram governar com maioria e terminar seus mandatos. É o caso de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. Já aqueles cuja combinação entre os três elementos era mais frágil sofreram processo de impeachment. São os casos de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Cada qual com suas particularidades, mas ambos imersos em escândalos de corrupção e/ou má gestão dos recursos públicos. Neste caso, o equilíbrio tênue entre a possibilidade de mínima coesão programática, de um lado, e o jogo da ‘velha política’, de outro (patrimonialismo, alianças espúrias, rent-seeking, etc.) é o cálice sagrado dificilmente encontrado pelos jogadores principais.

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(Foto: André Dusek/Estadão)

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Essas oscilações, que envolvem também a percepção e tolerância sobre o funcionamento do ‘jogo político’, da corrupção e no limite da própria democracia, impacta, como também fora na década de 1920, fundamentalmente nas camadas médias urbanas. Estas, por sua vez, potencializadas pela superação patrocinada pelo Plano Real de 1994 e, posteriormente, pelos resultados das políticas sociais do período de Lula da Silva, se viram em certo momento sob uma ampla armadilha: crise econômica resultante dos desvios da globalização e mercados internacionais a partir de 2009, e bombardeio de informações sobre escândalos de corrupção e mau uso do recurso público. Estes não só tornaram a crise econômica mais aguda, como potencializaram sentimentos variados, como o de traição (fomos traídos pelo governo), o de insegurança (precisamos de alguém que nos proteja) e o de crítica genérica a todo o sistema (contra a política, contra os políticos e, em alguns casos, contra a democracia). Tudo isso em meio a uma ampla aposta na ética do enfrentamento e da polarização que, em parte significativa, era fruto da atuação das lideranças que se viabilizam eleitoralmente a partir do estímulo a este modo de entendimento sobre a História do país. Em pouco tempo, o país estava, artificialmente, cindido entre um imenso exército fascista e degenerados comunistas.

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Atos pró e contra o impeachment na Esplanada (Wikimedia Commons)

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O segundo e o terceiro elementos derivados do arranjo promovido pela Constituição de 1988 relacionam-se com duas dificuldades que recorrentemente enfrentamos em nossa História. Uma refere-se à antiga questão de equilíbrio entre os entes federativos. Amplas demandas repassadas aos estados e municípios que, com razoável frequência, se encontram em situação de fragilidade econômica. Pressionados pela situação que não poucas vezes deriva também da má gestão, governadores e prefeitos se revezam em verdadeiras cruzadas por recursos. Tanto por meio das guerras fiscais, comum nos anos 90, como pelas renegociações junto ao governo central. A outra guarda intimidade com a persistente pobreza e desigualdade que nos assola, além de nosso mais profundo desencontro entre o desejo de garantir um estado do bem estar social em meio aos parcos recursos, à burocracia, ao patrimonialismo e à corrupção.

Associado a estes elementos de natureza econômica, outros dois itens se destacam. A globalização, em sua tendência à abertura do mercado, descortinou nossa fragilidade industrial e amplificou nossa vantagem comparativa agrícola. Por um lado, esaa constatação impactou negativamente na perspectiva que alimentamos desde os anos 30 de vivermos em um país moderno liderado pela indústria. Por outro, a reorganização da agricultura revelou uma ambiguidade muito comum na História: a convivência entre uma parcela moderna, tecnológica e capaz de transbordar seus elementos positivos; e outra, que se mantém atrasada, predatória e reincidente nas práticas do período colonial. O rearranjo econômico-produtivo que alavancou a agricultura avançou sobre o centro-oeste do país, principalmente com a cultura da soja. E, em sua parte moderna e tecnológica, redefiniu nossa participação internacional. Desaa forma, esta região viu nascer não só gerações mais ricas, como também possibilitou a ascensão de uma estética que lhe é peculiar. Esta estética, se entendida a partir de algum fio condutor em nossa trajetória, está umbilicalmente ligada ao sul do país, assim como a cultura entendida como caipira e fundamentalmente presente no interior de São Paulo e Minas Gerais. Todas elas regiões que se construíram historicamente voltadas ao interior ou ao sertão.  E, portanto, distante, na mesma medida, da cultura e da estética das capitais do litoral (Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e do modernismo elitista da São Paulo industrial. O estranhamento entre elas, respeitadas as diferenças, tem a mesma natureza daquela que impulsionou as rusgas entre Monteiro Lobato e os modernistas nos anos 20.

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“Caipira Picando Fumo”, Almeida Júnior, 1893

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Daí que, em um país que nos últimos anos intensificou a ética do enfrentamento, estes elementos também foram sugados por esta polarização. Daí também, que a ‘intelligentsia’ nacional e seus braços mais visíveis (imprensa e universidades dos grandes centros) se transformaram nos inimigos preferidos entre aqueles do ‘sertão’, e vice-versa.

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André Singer, da USP, porta-voz e secretário de imprensa de Lula entre seus dois mandatos (Acervo Agência Estado)

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Por fim, mas não menos importante, a ascensão do fenômeno evangélico nas últimas décadas caracteriza parte significativa da experiência histórica da Nova República. Se em princípio os evangélicos eram vistos com certo desdém e preconceito de classe, o surgimento dos grandes conglomerados religiosos e midiáticos e a transformação de seus representantes em lideranças políticas inverteu ou ao menos relativizou aquela perspectiva.  A rápida penetração dos evangélicos nas periferias das cidades e, analogamente, nas periferias do país, fez com que alguns dos itens mais marcantes deste fenômeno ganhassem novas interpretações.  Principalmente aqueles ligados aos valores com os quais este grupo, que representa aproximadamente um terço da população, define ‘família’, ‘riqueza’, ‘trabalho’ e ‘prosperidade’. Em geral, tais definições são opostas ou no mínimo incompatíveis com o que pensam as camadas mais endinheiradas das cidades maiores e mais centrais, assim como a ‘intelligentsia’ intelectual e cultural.

Portanto, às brechas deixadas pelo arranjo político batizado pela Constituição de 1988 somam-se as recorrentes crises que, em pouco mais três décadas, se transformaram em dois processos de impeachment. Até certo ponto, foram vistos como sinais de funcionamento das instituições. A partir de outro e para parcelas da população, notadamente depois da operação Lava-Jato, como sinais de apodrecimento delas. Além disso, a reorganização econômica interna (avanço do agronegócio pelo centro-oeste e crise da indústria) e externa (globalização, ascensão chinesa e crise de 2009) compõe o mesmo roteiro. Completa o quadro o surgimento de uma nova ética e uma nova estética, representadas pela aproximação entre uma cultura sertaneja e os grupos evangélicos. E que até hoje são recebidos com enorme desconfiança por partes significativas das elites culturais e intelectuais do país. Ou seja, fraturas no arranjo político, mudanças econômicas internas e externas e fortalecimento das reivindicações de grupos periféricos estendidas às pautas éticas e estéticas que, não obstante serem desprezadas por boa parte dos chamados ‘formadores de opinião’, arrebanham um número cada vez maior de brasileiros.

O que faltava nesse roteiro que, a depender da reação e das combinações entre os elementos pode insinuar que o arranjo da República Nova se esgotou, era uma liderança, assim como foi Vargas em 1930, que encabeçasse a transição. Nas eleições de 2018 ela apareceu. De modo intuitivo e em um ambiente tomado pela polarização, em mãos daquele que aparentemente era o menos preparado para assumir tamanha missão. Neste caso, o oposto do que representou Vargas.

A ironia é que se os novos e velhos elementos e suas combinações e velocidades apontam para o esgotamento do arranjo das últimas décadas, alguns destes elementos nos parecem não só acertados, como desejáveis e fundamentais. Portanto, diferentemente da ruptura que se deu 1930, a caminhada na qual damos passos largos aponta para a ruptura, sob a liderança do que aparenta ser o menos preparado, de um modelo que, não obstante suas falhas, nos legou aquilo que temos receio de perder: a democracia, a estabilidade econômica e a proteção social. A analogia, aqui, estabelece o seu limite. Resta-nos saber se a ruptura é inevitável.

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(Capa d’O Estado de S. Paulo, 15/10/19. Foto de Gabriela Biló)

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Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.